A Propósito do 7 de Setembro e do Fim do Nacionalismo
Não costumo ter a iniciativa de
escrever sobre essas datas cívicas no Blog. Em primeiro lugar, porque é um blog
de filosofia e, a menos que eu tenha alguma perspectiva filosófica a oferecer
sobre o assunto, festas da nação não cabem na pauta de coisas que os leitores
esperam ver por aqui. Em segundo lugar, porque é difícil abordar o assunto sem
ser meio clichê: “Independência de quê, se continuamos dependendo do
conhecimento, da tecnologia e do investimento externo e somos capachos dos EUA
e da União Europeia?”, “Comemorar o quê, se vivemos num país de políticos corruptos
e povo ignorante?”, “Essas paradas militares são apenas a celebração hipócrita
de um nacionalismo que nunca tivemos, porque nossa mentalidade sempre foi e
continua sendo colonial”, “Enchemos as ruas de militares e de estudantes
desfilando ao estilo militar e nos esquecemos do que as Forças Armadas fizeram
a esse país por vinte e um anos sem terem ainda prestado contas de todas as
suas vítimas daquele período” etc. Tudo isso tem um pouco de verdade, mas é
bastante clichê – previsível, repetitivo, um pouco rabugento e completamente inefetivo
enquanto alerta social, porque, afinal de contas, blogs não têm toda essa
influência sobre a atitude das pessoas e aquelas que leem postagens sobre essas
coisas não são as mesmas que precisariam ser alertadas a respeito delas. Tudo
isso deveria fazer com que esse feriado, como, aliás, todos os demais – com exceção
de um Dia da Mulher – que passaram ao longo da existência deste blog, fosse simplesmente ignorado aqui nesse espaço.
Contudo, no caso específico deste 7
de setembro, gostaria de levantar uma questão que, acredito, tem certo alcance
filosófico: Será que o nacionalismo, não no Brasil apenas, mas no mundo em
geral, morreu? Será que esse filho dos Séc. XVIII e XIX ainda tem lugar no Séc.
XXI?
Para discutir isso, gostaria de firmar alguns pontos:
1) Antes de tudo, temos que nos
livrar de certas bobagens que circulam por aí com facilidade com ares de
conhecimento verdadeiro e pensamento crítico a respeito do Brasil em comparação
com os outros países. Bobagens do tipo que nós
aqui não temos verdadeiro nacionalismo, amor pela pátria, respeito pelos
símbolos e datas nacionais, conhecimento de nossa própria história, admiração
por nossos heróis e estadistas, orgulho de nossas raízes e de nossos feitos
etc., enquanto que eles lá, os povos
dos países ditos desenvolvidos, têm todos esses traços, que os franceses vibram
e choram cantando La Merseillaise, que crianças, jovens e adultos norte-americanos
conhecem de cor os fatos principais da Revolução Americana, da Guerra de
Secessão, do Dia D, da Crise dos Mísseis, do Movimento dos Direitos Civis etc.,
que ingleses admiram Churchill como um herói histórico incriticável e têm um
respeito quase religioso pelas figuras da Família Real, que os japoneses
estariam dispostos a dar a vida sem hesitar para manter a grandeza e a orgulho
de sua nação etc. Isso é uma bobagem sem par, que revela, essa sim, uma
mentalidade fortemente colonial. Os povos desses países são como os de todos os
países modernos: burgueses, consumistas, ignorantes, mal informados, comedores
de fast food, reféns da grande mídia,
alienados dos problemas políticos exceto quando afetam seus interesses (ou
quando a grande mídia diz que afetam) e absolutamente indiferentes aos
símbolos, datas, heróis ou qualquer outra coisa ligada à imagem da nação. Se
alguns deles responderiam afirmativamente à pergunta sobre se têm orgulho de seu
país, é mais por ignorância e automatismo do que por reconhecimento bem
informado e verdadeira paixão por sua nação. Da mesma maneira, devemos afastar
a ideia de que o culto aos esportistas, astronautas, artistas e cientistas “nacionais”
seja manifestação de nacionalismo espontâneo: Não é, é mera reação de massa a
símbolos, ícones e personalidades cuja importância é criada e alimentada pela
grande mídia. A imagem do povo visceralmente envolvido com sua própria história
e com seus símbolos, a qual sempre foi mais propaganda que realidade, é hoje
quase que inteiramente uma peça de marketing político-militar no plano externo e
político-conservador no plano interno. Enquanto tomarmos isso por realidade,
vamos acreditar que apenas no Brasil temos um “problema” que é na verdade uma
característica do mundo moderno em geral.
2) Tendo agora consciência de que o
desvanecimento do espírito nacionalista não é um fenômeno apenas local, e sim global,
podemos discutir suas raízes. O nacionalismo foi uma estratégia, não espontânea,
e sim criada por longo e intenso estímulo político e financeiro, de criação de
um espírito de unidade histórica e cultural para legitimar as fronteiras
artificiais dos Estados-Nacionais do Séc. XVIII e XIX. Foi obra de artistas,
escritores, músicos, historiadores, jornalistas e políticos que se apropriaram
da história à sua maneira, adaptando-a nos pontos convenientes para criar para
o povo a impressão de que aqueles grupos sociais agora reunidos sob a mesma
fronteira sempre tinham sido o mesmo
povo, sempre tinham tido muito em comum e deviam se ver como verdadeiros
irmãos, enquanto que aqueles que caíram do lado de lá da fronteira, esses não,
esses sempre tinham sido outro povo, falado
outra língua, crido noutro Deus, vivido sob outros costumes, cantado outras
canções, invejado nossa grandeza e nossa forma de vida superior. Dessa forma, a
ideia de que devíamos nos defender uns aos outros no plano interno e competir e,
se necessário, guerrear com os outros no plano externo ganhava plena
legitimação. O motivo pelo qual conflitos no plano interno deviam buscar o
acordo, enquanto conflitos no plano externo poderiam terminar em guerra era
agora muito claro: entre nós o entendimento é possível, porque falamos a mesma língua,
partilhamos a mesma história e cultura, enfim, somos da mesma comunidade, temos
a mesma identidade, sabemos quem somos e nos queremos bem nessa igual pertença.
E tudo isso era muito artificial, porque ligava entre si grupos sociais que
tinham na verdade sido histórica e culturalmente diferentes ou até mesmo rivais
(basta pensar nas regiões da França, da Alemanha, da Suíça, dos próprios EUA
etc.), enquanto separava pelo marco da fronteira política grupos sociais que
tinham fortes raízes comuns e partilhavam mais ou menos a mesma forma de vida (basta
pensar na relação da Alsácia com a Alemanha, do Sul da Áustria com a França, do
Leste de Portugal com a Espanha, da Holanda com a Espanha etc.). Mas, apesar de
muito artificial, essa estratégia foi muito bem sucedida, tendo sido uma das
maiores responsáveis pela manutenção da unidade nacional dos recém criados
Estados e pela legitimação de seus governos, de sua política interna e externa
e sobretudo de suas guerras durante todo o Séc. XIX e o início do XX.
3) Porém, como se sabe, a partir do
final do Séc. XIX, o nacionalismo sofrerá uma série de reveses históricos.
Sendo uma política agregadora no nível interno e desagregadora no externo, o
nacionalismo teve muito a ver com os motivos que levaram à Primeira Guerra
Mundial (ou, pelo menos, com os motores manipulados politicamente para torná-la
possível), esteve no centro da política dos Estados totalitários que levaram à
Segunda Guerra mundial, foi amplamente propagandeado e usado como arma
ideológica durante a Guerra Fria e voltou com toda a força à cena internacional
durante a Descolonização africana e asiática no meio do século e durante o
processo de autonomização das antigas repúblicas socialistas da URSS e do Leste
Europeu no fim do século. Continua tendo lugar, não apenas nos movimentos
separatistas espalhados pelo mundo (Irlanda, País Basco, Catalunha, Chechênia, Curdistão,
Caxemira etc.), mas também na política interna, principalmente nos discursos incendiários
da extrema-direita, denunciadora dos males da imigração, da miscigenação, do
multiculturalismo e da “perda das tradições nacionais”. Mas eu disse que ele
tinha sofrido reveses, e só listei o que parecem ser confirmações de sua plena
vida ativa. Mas apenas parecem. No curso de todos esses usos políticos, econômicos,
militares e estratégicos, o nacionalismo foi se tornando um discurso cada vez
mais banalizado e cada vez menos crível num mundo fortemente globalizado,
interdependente, multicultural e cada vez mais preocupado com o metal das moedas,
e não com os panos das bandeiras. Unido por um sistema capitalista global, por uma
forma de vida consumista, por uma língua inglesa com vocação universal, por uma
indústria internacional do entretenimento, por uma rede mundial de computadores
e por uma constante realocação de capitais, de pessoas e de culturas, o mundo a
que o Séc. XXI deu suas boas vindas já não parece mais um mundo para
nacionalismos. É um mundo em que o nacionalismo aparece, sim, em focos
isolados, usado em momentos estratégicos, geralmente tendo que ser estimulado e
inflamado por grupos específicos com interesses específicos, mas sempre com
aquela aparência de antiquário, de coisa fora do seu tempo, de estranho
deslocado num mundo que já não é mais a sua casa. Os habitantes do mundo comum da
Google e da Apple, da FOX News e da BBC, da Coca-Cola e da McDonald’s, da Nike
e da Dolce & Gabana – os habitantes desse mundo consumista globalizado não
se reconhecem nesses discursos nacionalistas fora de moda, eles dão de ombros
para símbolos nacionais, histórias e heróis locais e festas de celebração da
nação.
4) Isso não quer dizer que a
afirmação de identidades particulares e locais tenha perdido importância. Pelo
contrário, os movimentos sociais e políticos são cada vez mais reverberações
das preocupações com identidade social, com diferença cultural, com
singularidade local, com a exaltação e reconhecimento de microcosmos culturais
historicamente ignorados e silenciados. Mas esses fortes envolvimentos locais e
sociais não se confundem mais com as fronteiras e bandeiras nacionais. O
nacionalismo não é uma aliado, mas antes um inimigo, um obstáculo ou no mínimo
uma sombra a ser afastada pelas novas políticas de identidade e de
reconhecimento. São grupos menores, mais seletivos e restritos, sem território,
sem bandeira e sem exército, que reivindicam afirmação nesse mundo que se torna
cada dia mais homogeneizante sob a hegemonia do capitalismo global e do liberalismo
cosmopolita. Tal como aconteceu na montagem do nacionalismo, na montagem dessas
identidades locais e de grupo também há muito de artificial, de história
mutilada segundo as conveniências, de manipulação em favor de interesses
específicos. Por isso, não há nessa postagem nenhuma insinuação de que a
transição da nacionalidade para a identidade tenha sido algo como um progresso,
como se essas novas identidades fossem mais genuínas, mais espontâneas e menos
manipulativas que as antigas nacionalidades – em geral, aliás, não o são. Há
apenas a sugestão de que a separação entre o “nós” e o “eles” hoje já não se
fez em termos do velho padrão “língua, bandeira, história e cultura”, mas sim
em termos de marcação de uma espaço de possibilidade da diferença num mundo que
pressiona cada vez mais para uma igualdade cinzenta, vazia, fútil e estéril.
Por tudo isso, o 7 de setembro
talvez seja a comemoração de um cadáver: Não do supostamente subdesenvolvido nacionalismo brasileiro, mas do nacionalismo em geral, onde quer que seja nesse
nosso estranho e temível mundo novo.
Comentários
Mais uma vez, você suscitou em mim uma nova visão sobre um assunto que eu julgava conhecer. Obrigada!
O que me chama mais atenção, por outro lado, é na artificialidade das construções identitárias (como este nacionalismo, o patriotismo, ou mesmo a formação de ídolos). A meu ver é uma característica mais moderna, talvez por uma super-idealização do mundo antigo da minha parte, talvez porque eu entenda como o "não-artificial" aquela construção identitária que se forma condizente com as necessidades, tradição e pano de fundo cultural de uma comunidade humana (fugindo daquelas visões antropológicas ou marxistas o máximo que eu posso hehe).
Então, assumindo a artificialidade do que chamei de 'construção identitária', me pergunto se para o mundo de hoje é possível uma identidade "não-artificial" ou ainda se é possível construir, ainda que artificialmente, uma identidade humana mais próxima do que seria o ideal para o mundo moderno... a princípio, eu acho que não =/
Fernanda, acho que o complemento que você cobrou seria ter mencionado o patriotismo constitucional como substituto do nacionalismo e como núcleo de sustentação das demandas identitárias mais fragmentadas dentro das sociedades. É um ponto em que a resposta adequada à sua provocação coincidiria em parte com a resposta à do Davi Silva, que me perguntou por que não destacar os ganhos normativos obtidos com o nacionalismo e a forma de levá-los para além da fronteira do Estado-nação no mundo contemporâneo. Talvez eu faça uma postagem complementar para compor uma resposta comum às duas provocações. Quanto à identidade moderna, parece-me necessário assumir duas coisas: que ainda se estão buscando identidades pós-nacionais; e que, se queremos a implantação de uma ordem global que respeite os direitos humanos, é em relação a estes, e não às identidades que o exercício refletido do civismo deve caminhar acima de tudo.