Há um paradoxo entre generosidade e justiça?


Essa postagem pretende compartilhar com todos um paradoxo (pelo menos, aparente) a que cheguei pensando acerca da relação entre generosidade e justiça, do ponto de vista das relações individuais. Vou primeiro expor o paradoxo e depois fazer comentários a respeito. O referido paradoxo se estrutura sobre três considerações:

1) Se, numa relação entre os indivíduos A e B, A deve a B uma quantia x, então, caso A dê a B apenas x e nada mais, deu a ele apenas o que devia, e nesse caso diremos que A foi justo; mas, caso A dê a B x e alguma coisa a mais, digamos, (x + n) (sendo n > 0), deu a ele mais do que devia, e nesse caso diremos que A foi generoso. (Se A deu a B certa quantia sem que lhe devesse nada, aplica-se a isso a mesma lógica de (x + n), com a diferença de que, neste caso, x = 0).

2) Contudo, sempre que n > 0, será verdade que (x + n) > x, logo, será verdade que (x + n) é diferente de x, de modo que poderemos dizer que A deu a B algo diferente (visto que maior) do que lhe devia, ou ainda que A não deu a B o que lhe devia (e sim outra coisa, maior). Pois, na medida em que (x + n) é diferente de x, é verdade que (x + n) = não-x. E, na medida em que A deu a B um não-x, é verdade que A não deu x a B. Como A teria sido justo apenas se tivesse dado x a B, podemos dizer que, ao dar x + n a B, A não foi justo com B. Como, por outro lado, ter dado x + n a B é exatamente no que consiste A ter sido generoso com B, podemos dizer que, porque A foi generoso com B, A não foi justo com B.

3) Além disso, a justiça é bilateral. Logo, na medida em que A deve x a B e dá a B exatamente x, não apenas dá a B o que lhe deve, mas também não se priva a si mesmo de mais do que deve. Seja TA tudo que A possui e TB tudo o que B possui, podemos dizer que, se A deve x a B, então, B deve receber x e A deve ser privado de x, de modo que TB deve se converter em TB + x e TA deve se converter em TA - x. Ora, na medida em que A, que deve x a B, dá x + n a B, converteu TB não em TB + x, mas em TB + (x + n), o que equivale a dizer que deu a B mais do que devia (fato cujas consequências já examinamos na consideração 2). Da mesma forma, ao fazer aquilo, converteu TA não em TA - x, mas em TA - (x + n), o que equivale a dizer que se privou a si mesmo de mais do que devia. Sendo assim, quando A dá x + n a B, ele não apenas é, de acordo com o que se viu em 2, injusto com B, mas é, à luz do que agora vimos, também injusto com A, isto é, consigo mesmo.

Como seria possível escapar desse paradoxo?

Uma solução, bastante intuitiva, seria estipular especificações adicionais sobre o que significa ser injusto com alguém. Se A deve x a B, podemos estipular, contra a consideração 2, que A só será injusto com B se der a ele x - n, mas não será injusto com B tanto se lhe der apenas x quanto se lhe der x + n. Assim, se A deve x a B, para que A seja injusto com B, não basta que lhe dê um não-x, mas é preciso que lhe dê um não-x tal que não-x < x. Nesse caso, a consideração 2 estaria afastada.

Da mesma maneira, se A deve x a B, podemos estipular, contra a consideração 3, que A só será injusto consigo mesmo se se vir privado de x + n contra a sua vontade, mas não se ele mesmo o fizer de modo livre e deliberado. Nesse caso, a consideração 3 estaria afastada. Assim, seja (L) o símbolo para uma ação praticada de modo livre e deliberado e (não-L) para uma ação praticada de modo despercebido, irrefletido, enganado ou coagido, podemos dizer que, se A deve x a B, só será injusto consigo mesmo se se privar de x + n (não-L), mas não o será se se privar de x + n (L).

No entanto, tais estipulações adicionais, que são, à primeira vista, bastante conformes às nossas intuições cotidianas, terão, por outro lado, certas consequências bastante contraintuitivas. Por exemplo, se aceitarmos que, se A deve x a B, para que A seja injusto com B, não basta que lhe dê um não-x, mas é preciso que lhe dê um não-x tal que não-x < x, disso se seguirá que, ao dar a B um não-x tal que não-x > x, isto é, ao dar a B mais do que lhe devia (não só x, mas x + n), A foi justo com B. Se A foi justo com B ao lhe dar x + n, então, era justo que A desse x + n a B. Se era justo que A desse x + n a B, então, A, ao dar x + n a B, não fez a B mais do que o que era justo que fizesse, de modo que, ao fazer isso, que era apenas o justo, não foi de modo algum generoso. Para que A tenha sido generoso com B ao lhe dar x + n, é preciso que x seja o que era justo que A desse a B e que (x + n) > x. Do contrário, trata-se apenas de justiça, e se anula a generosidade envolvida no ato. Dessa forma, parece que é simplesmente impossível que A seja generoso com B sem que A seja, ao mesmo tempo, injusto com B.

Já se aceitarmos a segunda estipulação adicional, isto é, que, se A deve x a B, só será injusto consigo mesmo se se privar de x + n (não-L), mas não o será se se privar de x + n (L), seguir-se-á daí que A, ao converter TA não em TA - x, mas em TA - (x + n), desde que (L), não foi injusto. Se A, ao converter TA não em TA - x, mas em TA - (x + n), desde que (L), não foi injusto, então, era justo que A convertesse TA não em TA - x, mas em TA - (x + n), de modo que, ao fazer isso, absolutamente não foi generoso, mas apenas justo. Para assumirmos que A foi de fato generoso com B, é preciso que não fosse justo que ele convertesse TA em TA - (x + n). Dessa forma, para que A tenha sido de fato generoso com B, é preciso que, além de ter sido injusto com B, tenha sido também injusto com A, isto é, consigo próprio.

E então? O paradoxo é mesmo insolúvel (ou seja, só é possível para A ser generoso com B na medida em que A seja injusto tanto com B quanto com A) ou vocês teriam novas sugestões de solução?

Comentários

Posso afirmar que há um cheiro do imperativo categórico kantiano ?
Anônimo disse…
Justifique sua pergunta, meu caro.
Perdido disse…
Caramba, odeio matemática! Pensando que damos esperando alguma coisa em troca (nem que seja autosatisfação) e que a devolução vai levar tempo, não falta adicionar números nessa equação?
Professor, creio que as soluções sugeridas por você mesmo, e que por fim acaba as rejeitando, por considerar que geram consequências contra-intuitivas, estão de fato corretas,e o caráter contra-intuitivo das implicações é apenas aparente.

Primeiro, temos que esclarecer uma diferença fundamental, expressa no próprio modo de uso da linguagem, entre ser justo e ser generoso. Dizemos de um A, que A é justo com B, se A age de maneira a dar a B aquilo que B merece. Nesse caso, diríamos que A DEVE dar a um x a B. O verbo DEVER indica aqui que a justiça é uma vittude deontológica, isto é, uma ação justa não é facultada ao agente, mas, do ponto de vista moral, ela se impõe a ele.

A generosidade, como a justiça, também é uma virtude moral, mas se diferencia desta útlima pelo fato de não ser deontológica. Normalmente falamos de um A, que ele é generoso com B, se A concede a B um benefício que A não está obrigado a dar B. Ser generoso, é, portanto, do ponto de vista moral, facultativo, ou pelo menos não é deontológico em grau tão elevado quanto a justiça.

Você pode criticar este meu apontamento de que a generosidade não é facultativa apresentando contra-exemplos a partir também do uso da linguagem. Se é verdade que dizemos usamos o verbo dever para questões de justiça, da mesma forma também dizemos "Você deve ser uma pessoa mais generosa". Responderia essa objeção dizendo que nesse último exemplo o verbo dever é utilizado num sentido muito mais fraco do que em expressões como "Você deve ser justo com B dando a ele um x (sendo x algo de que B é merecedor). Nos possíveis contra-exemplos o verbo dever é usado apenas para comunicar ao interlocutor o que o falante considera uma conduta louvável, aprovável, embora não obrigatória.

Até aqui falei de justiça e generosidade, mas nada sobre o paradoxo. Tal paradoxo não é formalmente um paradoxo, mas é apenas contra-intuitivo.

Pelo que você colocou, a relação entre justiça (mais precisamente o tipo de justiça que Aristóteles chama de comutativa) e generosidade é necessariamente contraditória. Mais elegantemente, ele pode ser reduzido a dois condicionais:

(1) Se A é justo com B, então é A não é generoso com B e A é justo com si mesmo.

(2) Se A é generoso com B, então A não é justo com B.

O paradoxo se desfaz, no entanto, tendo em vista a diferença semântico-moral entre justiça e generosidade e uma correção de natureza lógica quando se fala de (x+n). A é justo com B se A dá a B o x que B merece, ou o x que deve dar a B.

O fato de A ser justo se vincula somente ao x que ele dá a B, e o fato de A ser generoso com B se vincula ao n tal que (x+n)>x. Ora, se A dá a B, de maneira deliberada e consciente, x+n, então A é, ao mesmo tempo justo e generoso. Justo, porque deu um x (e não porque deu x+n, tal como vc sugere no final). E generoso, porque deu, além de x, um n>0 , que A não era obrigado a dar, ou seja, era facultado a A dar um valor n adicional.

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