Processo Judicial e Discurso
O texto abaixo foi o que li na minha comunicação de ontem do Seminário Internacional Teoria Crítica e Justiça Global, na UFSC, e é, com algumas adaptações, o texto básico do projeto de tese de doutorado que apresentarei no processo seletivo desse ano:
A pergunta em torno da qual giram as considerações dessa
comunicação é: Pode o processo judicial ser considerado um tipo de discurso? O
objetivo que quero alcançar, contudo, é mais modesto: Não quero exatamente
responder à questão, e sim esboçar as etapas e pontos de uma resposta
convincente para ela. Meu roteiro para isso é: (1) informar brevemente acerca
da relevância filosófica da questão; (2) fixar preliminarmente as noções de processo
judicial e de discurso com as quais estarei trabalhando; (3) sumariar os
argumentos de Alexy, Günther e Habermas em favor da consideração do processo
judicial como um discurso; (4) listar críticas relevantes feitas por outros
teóricos contra essa tese; (5) listar as respostas dadas por aqueles autores a
estas críticas; (6) explicar por que, a meu ver, tais respostas não são
convincentes; (7) adicionar novas críticas à tese de que o processo judicial é
um discurso; e, finalmente, (8) listar as etapas e pontos que considero que uma
resposta convincente (afirmativa ou negativa) à questão não poderia deixar de
ter.
(1) Quando falo do processo judicial, é normal que os filósofos
no recinto não o vejam em princípio como um tema com pedigree filosófico. Afinal, ele não conta com uma longa história
de discussão filosófica, não tendo sido abordado nas obras clássicas da ética e
da política senão de passagem. Nesses raros casos, foi em geral retratado de
dois modos igualmente desestimulantes: ora, como na Apologia de Sócrates, de Platão, como ocasião dramaticamente
teatral em que a manipulação, a retórica e a esperteza sacrificam a verdade e a
justiça no altar do puro interesse; ora, como em O Espírito das Leis, de Montesquieu, como ocasião puramente executiva
de aplicação da lei geral ao caso concreto, em que as partes só intervêm
informando os fatos e o juiz, redizendo a lei. Em ambos os casos, não seria de
espantar que o filósofo não o considerasse merecedor da sua atenção, visto que,
no primeiro caso, numa concepção por assim dizer sofística do processo judicial, ele figuraria como o completo Outro
da discussão filosófica, concebida, essa sim, como procura séria e
desinteressada da verdade e da justiça; já no segundo caso, numa concepção por
assim dizer mecânica do processo
judicial, toda virtude ou defeito da decisão a ser tomada nele dependeria da
virtude ou defeito da lei geral, devendo ser esta, e não o processo pelo qual é
aplicada, o verdadeiro objeto de preocupação filosófica. Podemos dizer que
estas duas foram as concepções prevalecentes do processo judicial na grande
tradição filosófica e, juntamente com outros tantos fatores histórico-sociais,
ajudam a explicar por que ele foi por tanto tempo afastado do foco das
discussões filosóficas mais agudas e clássicas.
Não é, portanto, nem descabido nem desnecessário que me seja
pedida uma justificação do tema do processo judicial como tema filosófico.
Gostaria de alegar para isso quatro motivos bastante simples: (a) O processo
judicial é uma ocasião cotidiana e institucional de interpretação de textos e
de tentativa de conexão entre enunciados abstratos e casos concretos, sendo,
assim, de interesse para qualquer abordagem da Epistemologia, da Hermenêutica,
da Filosofia da Linguagem e da Teoria da Decisão; (b) O processo judicial
envolve a pretensão de obter um conhecimento verdadeiro dos fatos de cada caso
e de realizar uma aplicação correta da lei: Nesse caso, caberia ao filósofo
perguntar-se se o modo como o processo judicial está constituído é ou não apto
a alcançar essas pretensões, o que faz parte das preocupações da Epistemologia,
da Ética e da Filosofia Política; (c) O processo judicial funciona como momento
de aplicação das normas jurídicas, sendo, assim, pelo menos tão importante
quanto elas na concepção de um Estado justo: Basta pensar, por exemplo, em como
seria um Estado em que as leis fossem igualitárias, mas o judiciário as
aplicasse de modo discriminatório, torcendo-as para benefício de certos grupos
em detrimento de outros, donde se segue que o filósofo político que queira
pensar um Estado justo precisa definir que tipo de processo judicial permitiria
alcançar esse fim; (d) O processo judicial gera uma decisão final dotada de
autoridade e passível de ser feita cumprir-se pela coerção: Disso se conclui
que ele é um dos modos através dos quais se autoriza e se exerce a coerção do
Estado sobre os cidadãos, sendo difícil negar a relevância, em Ética e em
Filosofia Política, com atenção à realização da justiça e à preservação da
liberdade, de discutir se tal autorização e tal exercício estão se dando de
modo justificado. Todos esses são, espero eu, motivos suficientes pelos quais a
Filosofia tradicional deveria rever seu histórico desinteresse pelo processo
judicial e dar-se conta da riqueza de discussões que poderia resultar de sua
incorporação à pauta das discussões importantes seja da chamada Filosofia
Teórica, seja da Filosofia Prática.
(2) Feita essa digressão para justificar a entrada desse tema por
assim dizer injustamente plebeu na corte de um evento de Filosofia, gostaria de
retornar ao meu problema central, que é, vale lembrar: Pode o processo judicial
ser considerado um discurso? Gostaria de esclarecer os sentidos com que emprego
as expressões processo judicial e discurso.
Quanto ao processo judicial, vou defini-lo, grosso modo, como
um conjunto de atos, realizados por pelo menos duas partes, o autor e o réu, e
um terceiro, o juiz, em que, por parte das partes, certas alegações serão
feitas e sustentadas com base em provas e argumentos e, por parte do juiz, uma
sucessão de decisões fundamentadas será tomada, culminando numa decisão final,
também fundamentada, que se imporá como obrigatória para as partes. Em Direito,
fala-se de uma situação de pretensão resistida: O autor levanta uma pretensão
(por exemplo, o pagamento de uma dívida pelo réu ou a condenação do réu a uma
pena), à qual o réu contrapõe uma segunda pretensão, que resiste à primeira
(por exemplo, o não pagamento da dívida em questão ou a absolvição do réu
daquela acusação). A essa situação de pretensão resistida o Direito chama
litígio ou lide. Processo judicial, poderíamos dizer, é o desenvolvimento
procedimentalizado de uma lide, com vista à sua solução por um ato de decisão
do juiz. Nisso se vê que me refiro aqui ao processo judicial em geral, sem
fazer distinção entre processo civil, penal, trabalhista ou constitucional, nem
tampouco fazer distinção entre os sistemas jurídicos anglo-saxão, chamado Common Law, e o europeu-continental,
chamado Civil Law. O que é certo é
que me refiro ao processo judicial moderno, de um Direito estatal, positivo,
laico e racional, existente num Estado de Direito formal e constitucional, com
normas geradas democraticamente e no pleno respeito por direitos fundamentais
dos cidadãos. É acerca desse processo judicial que examinarei se ele pode ou
não ser considerado um tipo de discurso.
Para isso, contudo, é preciso esclarecer também do que se trata
o discurso de que estou falando. Trata-se do discurso a partir da perspectiva
das teorias do discurso de Apel e Habermas. Dessa perspectiva, se algum
processo de tomada de decisão pode ser caracterizado como um discurso, então
isso significa que podemos esperar que suas decisões sejam suficientemente
racionais e justificadas para serem consideradas verdadeiras quanto a fatos e
corretas quanto a normas. Habermas explica que o discurso pode ser considerado
em três dimensões distintas (servindo-se, aqui, do clássico cânon
aristotélico): na dimensão lógica dos seus produtos, um discurso é um processo
capaz de gerar razões consistentes que sustentem a aceitação ou rejeição de um
ou mais enunciados; na dimensão dialética dos procedimentos, um discurso é uma
situação em que os falantes podem examinar, livres da pressão do tempo ou da
experiência, as pretensões de validade de certo enunciado ou conjunto de
enunciados com vista à sua aceitação ou rejeição com base em razões; por fim,
na dimensão retórica dos procedimentos, um discurso é um processo que precisa
realizar, na maior medida possível, certos pressupostos altamente idealizados,
como a liberdade de qualquer coerção, a igualdade estrita entre os
participantes, a inteligibilidade dos argumentos etc. Apenas uma prática de
discussão e decisão que contemple essas três dimensões ao mesmo tempo é que
poderia ser chamada de discurso.
Há, contudo, um elemento complicador na consideração de se
certo processo real é ou não um discurso. Habermas adverte que a noção de
discurso é puramente abstrata e altamente carregada de idealizações, de modo
que qualquer prática concreta e real sofrerá pelo menos duas ordens de
restrição que precisam ser levadas em conta: Uma é a ação de dispositivos de institucionalização dos
discursos, isto é, uma série de regras, critérios, papeis e ritos particulares
que tornarão o discurso viável no espaço e no tempo, em certo contexto institucional
e para certo fim; a outra é que, devido à quantidade limitada de tempo e de
informação, devido à ação dos preconceitos e do autointeresse dos participantes
e devido às pressões do meio e das circunstâncias, os pressupostos altamente
idealizados do discurso só poderão se realizar em discursos reais numa medida
gradual e aproximada. Por causa dessas duas ordens de restrição, o filósofo que
queira definir se determinado processo real é ou não um discurso precisa saber
distinguir entre dispositivos de institucionalização que tornam o discurso
viável e aqueles que comprometem seu caráter discursivo, bem como entre
realização parcial, mas ainda satisfatória, dos pressupostos idealizantes do
discurso e realização parcial, mas já insatisfatória, desses pressupostos,
capaz de levantar suspeitas sobre a racionalidade da decisão final. A esse
respeito, não há nem pode haver regras prévias, sendo necessária um exame
refletido e crítico da comparação entre discurso ideal e discurso real de caso
a caso.
Aqui convém fazer a importante observação de que atribuir a um
processo o status de discurso tem, do ponto de vista de uma teoria do discurso,
consequências práticas para o quão justificados estaríamos em acreditar e
aceitar as decisões que ele gera ao longo do tempo. Por conseguinte, atribuir
falsa ou equivocadamente o status de discurso a um processo decisório pode ter
a consequência de tomar como decisão racional o que é na verdade puro arbítrio,
erro, manipulação ou violência. Não tenho ocasião e tempo suficientes aqui para
argumentar em favor da tese de que apenas um processo decisório que seja
discursivo pode ser considerado adequado para produzir decisões justificadas.
Pedirei, para fins dessa comunicação, que meus ouvintes aceitem essa premissa
controversa, mesmo que seja apenas hipoteticamente e por amor ao debate. Se me
fazem essa concessão, concluirão, tal como eu, que não pode haver, com relação
ao processo judicial, outra questão mais relevante a ser feita do que esta de
se pode ele ser considerado um discurso ou não. Disso depende toda a
legitimidade da decisão que ele produz e da coerção que com base nela se
autoriza e se exerce.
(3) Robert Alexy (1978), Klaus Günther (1988) e Jürgen Habermas
(1992) avançaram a tese de que o processo judicial poderia, sim, ser
considerado como um tipo de discurso. O argumento de Alexy consiste em dizer
que no processo judicial se visa à resposta correta, mesmo que, neste caso,
“correta” signifique correta a partir das normas jurídicas vigentes. Günther
distingue, tanto na argumentação moral quanto na jurídica, entre discurso de
fundamentação e discurso de aplicação. O discurso de fundamentação visaria
verificar se a norma é válida do ponto de vista de sua aceitabilidade racional,
enquanto o discurso de aplicação visaria verificar se a norma em questão é
adequada para ser aplicada a certo caso concreto, levando-se em conta as
circunstâncias particulares do caso, outras normas concorrentes e consequências
fáticas de sua aplicação ao caso. Para Günther, no que se refere às normas
jurídicas, o processo legislativo seria o momento por excelência do discurso de
fundamentação, enquanto o processo judicial seria o momento por excelência para
o discurso de aplicação. Na medida em que, no processo judicial, estaria em
jogo a aplicação da norma adequada, ele seria, para Günther, um discurso, no
caso, do tipo discurso de aplicação de normas jurídicas. Habermas, por sua vez,
concorda com a distinção de Günther entre discurso de fundamentação e discurso
de aplicação, bem como concorda com o assinalamento do discurso de aplicação ao
processo judicial. Habermas, contudo, não considera que o judiciário está, por
assim dizer, confinado ao discurso de aplicação. Pelo contrário, sempre que a
simples aplicação das normas vigentes a certos casos levar a conclusões
inaceitáveis do ponto de vista da correção, os juízes estarão, para Habermas,
na obrigação de reconstruir argumentativamente o sistema jurídico como um todo
com vista à procura da resposta correta, assumindo, neste ponto, as teses
interpretativistas de Dworkin. Contudo, mesmo com diferenças em relação a
Günther, em Habermas permanece a conclusão de que o processo judicial, na
medida em que se baseia em argumentos e visa tanto a uma resposta correta
quanto adequada, é, sem dúvida alguma, um discurso.
(4) Essa tese, no entanto, não demorou a ser criticada. Logo
depois de ter sido levantada por Alexy, Alan Kaufman e Ulfrid Neumann dirigiram
uma série de ataques àquela pretensão, embora mantendo a perspectiva interna da
teoria do discurso. O que esses autores negavam não era que o processo judicial
precisaria ser um discurso para gerar resultados válidos. Com isso,
concordavam. O que eles negavam era que o processo judicial de fato
satisfizesse os requisitos necessários para ser considerado um discurso. Suas
críticas se concentravam em três focos: (a) o primeiro era a pretensão de
correção, aquela que, segundo Alexy, tornava o processo judicial um discurso:
Kaufman e Neumann diziam que, na medida em que o processo judicial estava
limitado às normas vigentes, não podia pretender alcançar a resposta correta a
não ser sob a condição, de resto bastante contingente, de que as normas fossem
justas; quando, ao contrário, as normas vigentes fossem injustas, a pretensão
de dar ao caso uma resposta correta e dar a ele uma resposta conforme ao Direito
entrariam em choque, com a obrigação, da parte do processo judicial, de dar
preferência a essa última, em detrimento da correção; (b) o segundo foco da
crítica de Kaufman e Neumann eram dispositivos institucionais do processo
judicial que eram, a seu ver, incompatíveis com um caráter discursivo: a
desigualdade entre partes e juiz, o status especial de promotores e
procuradores, o uso de provas padronizadas e de presunções formais, a pressão
de uniformização da jurisprudência etc.; para eles, um processo que fosse de
fato um discurso não teria nenhuma daquelas particularidades; e (c) o terceiro
e último foco de crítica era a atitude dos participantes, ou seja, das partes
do processo, as quais, longe de estarem interessadas em contribuir para a
descoberta da resposta correta, estariam, antes, interessadas apenas na vitória
de sua própria pretensão jurídica, vitória para a qual não hesitarão em
sacrificar a verdade e a justiça, toda vez que puderem fazê-lo sem serem
descobertas; Neumann acrescenta ainda que, mesmo que elas argumentem invocando a
verdade e a correção, seu real interesse nelas não passaria de forma exterior
ou de condição estratégica para o êxito, não podendo ser levada a sério por
ninguém que examinasse o processo judicial com um mínimo de senso crítico.
(5) Cada um dos três autores citados elaborou suas próprias
respostas para esses desafios. Alexy respondeu à primeira crítica (de que o
processo judicial não visaria à correção) distinguindo entre correção moral,
que pode ser fundada em quaisquer argumentos relevantes e não está vinculada a
normas vigentes, e correção jurídica, que está limitada tanto a argumentos
juridicamente aceitáveis quanto ao conteúdo do direito vigente. Assim, o
processo judicial estaria comprometido com a resposta correta, mas não com a
moralmente correta, e sim com a juridicamente correta. Já com relação à segunda
crítica (de que o processo judicial tem dispositivos institucionais que
comprometem seu caráter discursivo), Alexy diz que isso é verdade, mas perde
importância diante do fato de que, no fim das contas, tais dispositivos
institucionalizam uma busca da resposta correta. Por fim, quanto à terceira crítica
(da atitude estratégica das partes), Alexy enfatiza que o importante é que elas
precisam argumentar como se tivessem interesse pela resposta correta, e que é
desse ponto de vista que suas alegações e argumentos serão levados em conta
pelo juiz.
Günther e Habermas enriqueceram esses contra-argumentos.
Günther, ao distinguir entre discurso de fundamentação e discurso de aplicação,
fez com que não apenas passasse a existir, ao lado da procura da norma correta
em abstrato, também a procura da norma adequada ao caso, mas fez também com que
essa última procura, no caso das normas jurídicas, só pudesse ter lugar no
processo judicial. Este não visa à correção, mas à adequação, sendo, inclusive,
a instância especialmente responsável pela aplicação da norma adequada. Quanto
aos dispositivos institucionais e à atitude das partes, Günther os atribuía ao
fato de que o discurso jurídico, ao contrário do discurso moral, precisa
satisfazer também às necessidades dos sistemas (no sentido habermasiano dos
âmbitos sociais autonomizados de ação estratégica, a economia e o Estado). Já
Habermas, além de mostrar o processo judicial como comprometido ao mesmo tempo
com correção e adequação, considerou os dispositivos institucionais apontados
como problemáticos por Kaufman e Neumann como simples condições de viabilidade
espaciotemporal e institucional do discurso jurídico. Já com relação à atitude
das partes, Habermas usou um argumento da intercambialidade das perspectivas:
mesmo que as partes estejam movidas pelo autointeresse, terão que verter suas
reivindicações na forma de argumentos que contribuam para uma decisão
imparcial, sendo, nesse caso, a perspectiva do juiz, e não a das partes, a
fundamental para chegarmos à conclusão que o que entre elas se desenvolve deve
ser considerados como um discurso.
(6) Tais respostas, não obstante, estão longe de serem suficientemente
convincentes, pelas razões seguintes: (a) No que se refere à pretensão de
correção, distinguir, como faz Alexy, entre correção moral e correção jurídica
ou distinguir, como fazem Günther e Habermas, entre correção e adequação não é
mais do que dar nomes diferentes para aquilo que constitui, precisamente, a
dificuldade a ser enfrentada, a saber: Se um processo judicial levanta uma
pretensão (seja ela de correção, de correção jurídica, de adequação, não
importa) que implica a conformidade com normas jurídicas que podem ser
patentemente injustas, limitando a extensão em que os participantes, que são
capazes de reconhecer que a norma é injusta, estão autorizados a colocar essa
injustiça em questão e obrigando-os a aceitar, para os fins do processo
judicial, o que é irracional como se racional fosse, ainda merece esse processo
o nome de discurso? Dizer: Mas no Direito o que se busca não é a correção em
si, mas a correção jurídica ou a adequação, é apenas reconhecer a dificuldade e
dar-lhe um nome diferenciador, não é resolvê-la, de modo algum.
(b) Quanto aos dispositivos institucionais que ameaçam o
caráter do discurso, dizer que eles não importam diante da busca da resposta
correta, como faz Alexy, é simplesmente absurdo: A forma como um discurso se
institucionaliza sempre importa, pois o tipo e o grau das restrições que a
institucionalização impõe a um discurso afeta até que ponto ainda estamos
falando de um discurso ou apenas de algo que gostaria de passar-se por um
discurso, sem conseguir fazer jus a essa ideia. Já atribuir aqueles
dispositivos institucionais potencialmente ameaçadores do caráter discursivo do
processo judicial às necessidades dos sistemas, como faz Günther, não é
diminuir, mas é, ao contrário, aumentar as suspeitas de que eles não são
compatíveis com uma prática que se pretenda discursiva. Dizer que o discurso
jurídico, diferentemente do moral, tem que atender a necessidades sistêmicas,
por exemplo, de tempo de exame, de padronização dos argumentos, de uniformidade
das decisões etc., é, à primeira vista, dizer que o tempo do processo judicial
não é o requerido pela questão em pauta, mas pelos interesses em jogo, que o
padrão dos argumentos não é o aceitável em vista do objeto da discussão, mas
sim o já aceito numa prática constituída, que a unidade entre a decisão nova e
decisões anteriores não é aquela que se baseia no tratamento igual de casos
iguais segundo uma regra de justiça, mas sim a que se baseia na coerência
interna de um sistema jurídica que precisa, para permanecer sistema,
reconhecer-se como sempre idêntico a si mesmo etc. Günther torna o argumento
dos adversários da sua tese ainda mais poderoso ao fazer tamanha concessão. Por
sua vez, Habermas coloca aquelas restrições institucionais na conta da
viabilidade do discurso jurídico. Mas restaria provar, caso a caso, que cada
uma delas é capaz de justificar-se, do ponto de vista dos próprios
participantes, como uma restrição necessária e fundada em razões. Habermas não
pode fazer uma afirmação genérica com relação a isso e esperar que tal
afirmação conte como uma resposta aos críticos. A única resposta apropriada a
quem listou, ponto por ponto, peculiaridades do processo judicial que o tornam
difícil de conciliar com a ideia de discurso é oferecer uma teoria discursiva
do processo judicial, desenvolvida passo a passo, desde um modelo ideal de
discurso jurídico até as fórmulas existentes de processo judicial,
justificando, em cada etapa de uma concretização progressiva, por que os
dispositivos e restrições institucionais assumidos ou são justificados por
razões normativas ou, se não o são, não são incompatíveis com a ideia mesma de
discurso. Habermas não faz isso, mas é preciso que algum teórico do discurso o
faça, porque só aí o fantasma dessas críticas de Kaufman e Neumann estarão
devidamente exorcizados.
(c) Por fim, quanto à atitude dos participantes, a resposta de
Günther é coloca-la na conta das concessões sistêmicas do discurso jurídico,
alternativa cujo caráter mais problematizador que solucionador já ressaltamos
no item anterior. Já a estratégia comum de Alexy e Habermas é se apoiar no fato
de que as contribuições das partes terão que assumir ao menos a forma exterior
do discurso e de que terão que ser tomadas, ao menos do ponto de vista do juiz,
como contribuições para a resposta correta (ou correta e adequada). O argumento
da intercambialidade das perspectivas, de Habermas, por mais engenhoso que
seja, não se dá conta de que, se a forma do discurso for apenas uma forma
exterior de uma atitude que, no fundo, é estratégica, as partes estarão não
apenas violando o pressuposto de sinceridade, que a versão ideal do discurso
carrega, pois estarão afirmando como verdadeiras ou corretas coisas que não pensam
o serem, ou, se de fato as julgam verdadeiras e corretas, pelo menos coisas que
elas afirmariam do mesmo modo ainda que pensassem não sê-lo, como também
romperão com a expectativa de cooperação na busca da melhor resposta, pois se
recusarão a reconhecer qualquer parcela de razão no argumento da outra parte,
omitirão uma porção de fatos ou os relatarão de modo enganoso e sabidamente
distorcido, apresentarão provas que sabem serem falsas toda vez que sua
falsidade não puder ser provada no processo, instruirão clientes e testemunhas
a dizerem apenas o que beneficia suas respectivas teses etc. Diante de tamanha
ruptura com a ideia de busca cooperativa da verdade, fica difícil atribuir
qualquer peso ao mero fato de que suas contribuições terão que assumir a forma
exterior do discurso e de que seus argumentos terão que mostrar-se como aptos a
gerar uma decisão imparcial, porque as partes, torcendo a verdade e torcendo os
argumentos, já fizeram tudo que podiam para impedir uma decisão realmente
informada e imparcial da questão. E não adianta creditar a solução desse
problema ao formato em contraditório do processo judicial, dizendo que, dados
os interesses opostos de autor e réu, se espera que toda omissão, distorção ou
engano de uma parte seja denunciado e caracterizado como tal pela outra, pois é
preciso que a outra saiba o que a primeira fez, tenha os meios de provar isso e
consiga fazê-lo de modo convincente dentro do jogo de argumentos e provas
padronizadas do processo, o que absolutamente não provê nenhuma garantia da
tese otimista de que, no final, a verdade ou a correção virão à tona e
triunfarão. Dessa perspectiva, o fato de que o juiz precisará tomar em conta as
alegações, provas e argumentos das partes como se fossem contribuições para a
resposta correta (ou correta e adequada) parece ser apenas mais uma ficção
necessária do processo judicial na qual o investigador crítico não deveria se
envolver.
(7) Antes de esboçar o que considero serem as etapas e pontos
necessários para uma resposta à questão sobre se o processo judicial pode ou
não ser considerado um discurso, gostaria de acrescentar à lista de críticas
ainda não satisfatoriamente respondidas de Kaufman e Neumann as seguintes três
outras, que me intrigam igualmente: (a) O problema de que a contratação de
advogados, a produção de provas, a descoberta e alocação de testemunhas
dependem de um esforço financeiro da parte envolvida, motivo pelo qual, quando
as partes envolvidas não são financeiramente paritárias, elas não têm como ser
argumentativamente paritárias, o que compromete o pressuposto idealizante da
igualdade das partes; nesse caso, como em muitos outros, não basta que as
partes tenham igual oportunidade formal de produzir provas e argumentos, quando
não têm igual oportunidade material de fazê-lo; (b) o problema de que, embora
na fase instrutória, quer dizer, a fase em que as alegações das partes são
sustentadas com provas e argumentos, o juiz funcione como uma espécie de
mediador cuja autoridade é usada para tornar possível a discussão em termos
moral e legalmente aceitáveis, na fase final, quando será produzida a decisão,
esta não é o produto de um consenso entre os participantes, livremente aceito
por eles como resultado de seu processo de descentramento e mútuo aprendizado,
mas é, ao contrário, uma decisão tomada por um terceiro e que, embora
fundamentada em argumentos, terá sobre as partes não apenas a força do
argumento, mas também e principalmente a força da autoridade e da coerção;
nesse caso, como conciliar isso com o pressuposto idealizante da livre
aceitação consensual pelos participantes da resposta que se impõe como mais
racional apenas pela força do melhor argumento?; e (c) o problema de que o
Direito é um ofício e uma linguagem de especialistas, de modo que as partes,
cujos interesses estão mais diretamente em jogo no processo, são as que menos
decidem sobre alegações, provas e argumentos, que elas não seriam competentes
para escolher e sequer seriam capazes de entender plenamente, mesmo que sejam
pessoas instruídas e bem informadas, de modo que os termos da discussão que
transcorre diante delas permanecem para elas ao longo de todo o processo
absolutamente intransparentes e parcialmente impenetráveis; nesse caso, não é
claro de que modo um processo que transcorre dessa maneira ainda poderia honrar
o pressuposto idealizante de inteligibilidade, sem o qual não se pode
considerar que os participantes envolvidos estejam de fato se comunicando e
aprendendo mutuamente.
(8) Em conclusão, gostaria de dizer que, ao contrário do que
possa parecer depois de tudo que aleguei, não considero as críticas à tese de
que o processo judicial é um discurso como decisivas, como tendo razão e como
desacreditando aquela tese por completo. Considero, sim, que o tipo que teria
sido necessário de tentativa adequada, completa e sistemática de responder a
elas ainda não foi feita. A meu ver, é tarefa do teórico do discurso que queira
submeter a tese do processo judicial como discurso a um teste sério e
definitivo construir um modelo de justificação, que, como já acenei antes, faça
a transição, por etapas sucessivas, do discurso jurídico ideal para os
processos judiciais reais, sendo capaz de justificar, em cada passo, do ponto
de vista de sua aceitabilidade racional, as restrições contextuais e
dispositivos institucionais assumidos. Creio que, para isso, o teórico do
discurso deve partir de algo como uma estrutura mínima do processo judicial
moderno, algo que se suponha estar presente nos vários tipos de processo
judicial (civil, penal, trabalhista, constitucional etc.), nos distintos
sistemas jurídicos (Common Law e Civil Law) e nos distintos ordenamentos
jurídicos nacionais e que tenha os elementos essenciais do processo judicial
como discurso, estrutura mínima a partir da qual se possa mostrar cada uma das
diferentes modalidades de processo judicial como variantes especializadas em
função do objeto, do campo teórico, do sistema jurídico ou da cultura jurídica
nacional. Esse recurso permitiria a construção de uma teoria unitária do
processo judicial como discurso.
Em seguida, penso que seria necessário que a justificação do
processo judicial como discurso enfrentasse os desafios críticos em duas
rodadas: na primeira rodada, tentaria dar conta dos problemas do processo
judicial que podemos chamar de estruturais, porque estariam presentes mesmo que
o processo transcorresse do início ao fim do modo mais ou menos idealizado como
está previsto nas normas vigentes: nesse caso se contam a mitigação da
pretensão de correção, as limitações espaciotemporais do processo, as restrições
e pressões sistêmicas internas e externas, os papeis institucionais e sociais
assimétricos das partes, o recurso à autoridade e à coerção na decisão final e
a opacidade da linguagem técnico-jurídica; na segunda rodada, tentaria dar
conta de outros problemas, aqueles que surgem quando as coisas ocorrem de modo
muito distinto do que as normas pretenderiam que ocorresse: nesse caso se
contam o problema da aplicação de normas patentemente injustas ou incompatíveis
com o caráter discursivo do próprio processo, a ação de partes dispostas ao
agir fracamente estratégico, torcendo provas e argumentos, omitindo, mentindo,
fraudando e enganando dentro do processo, o problema dos juízes que não atuam
como mediadores imparciais, porque são ideologicamente comprometidos, moral e
funcionalmente corruptos, política e socialmente manipuláveis, suscetíveis à
sedução ou à intimidação etc. e, por fim, o problema de culturas jurídicas que
se cristalizam em torno de ideias que não apenas não favorecem a
discursividade, mas inclusive podem impedi-la em alguma medida, como é o caso
de convicções e pressupostos legalistas, cartorarialistas, hierarquialistas,
conservadores, elitistas e religiosos.
Suponho que a teoria discursiva do processo judicial resultante
desse esforço assumiria a forma de uma reconstrução crítica, de uma
justificação por etapas sucessivas de concretização de um modelo ideal e de uma
série de estipulações condicionais das circunstâncias culturais, históricas,
sociais, políticas, econômicas, técnicas e jurídicas indispensáveis para se
falar plausivelmente do processo judicial como discurso. Considero que se trata
de uma tarefa trabalhosa, espinhosa, complexa e dificilmente recompensadora na
mesma medida em que exaustiva, mas à qual um teórico do discurso que queira
levar o processo judicial filosoficamente a sério não pode se furtar, sob pena
de assumir de modo precipitado posições dogmáticas ou céticas a respeito do que
sequer ainda foi adequadamente formulado para a compreensão e o julgamento
críticos.
Comentários
P.s sou mestranda em filosofia e sempre apareço aqui para ler as coisas legais que vc escreve. Prometo não colocar mais um monte de pseudônimos!
Gostaria muito de te mostrar minha dissertação. Apesar de nao me apresentar como alinhado a pragmática linguistica, tentei revisitar o raciocínio probatório fazendo um paralelo entre os elementos que o constituem e a dogmática processual. Assim, pude tentar sustentar uma dogmática mais afinada com o discurso prático. Eu gostei muito do resultado, onde revisito vários conceitos importantes para o processo como ônus da prova, presunções, máximas de experiência, etc. Enfim, acho que o trabalho ficou digno e busca solucionar um pouco das dificuldades institucionais criadas pelas tradições jurídicas que apontaste no texto.
Se puderes me manda tua bibliografia. Se quiseres te mando o meu.
Teus textos são excelentes, permita-me o elogio.
Grande Abs, Daniel Silveira