Abordagem Hermenêutica e Abordagem Argumentativa no Direito

Essa postagem se presta a dois objetivos. O primeiro é distinguir entre duas abordagens teóricas a respeito de nossas crenças compartilhadas no Direito, uma delas (a abordagem hermenêutica) mais preocupada com os processos de formação que deram origem a essas crenças e que tornaram possível seu compartilhamento em nossas sociedades, e a outra (a abordagem argumentativa) mais preocupada com os processos de justificação dessas crenças com base em razões e em sua capacidade de fazer frente aos desafios do ceticismo e do pluralismo. O segundo objetivo é defender que, pelo menos no Direito, a abordagem hermenêutica, embora dotada de grande relevância histórico-sociológica, não tem em si mesma nenhuma relevância teórica-argumentativa, pois o conhecimento do processo de formação de nossas crenças não informa nada acerca de sua aceitabilidade racional (o que se apoia na forte distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação). Vou fazer isso ao longo de certa lista de pontos importantes a serem abordados.

1) Em primeiro lugar, gostaria de fazer um esclarecimento que pode ajudar a evitar possíveis mal-entendidos: Falar de abordagem hermenêutica e de abordagem argumentativa no Direito não é o mesmo que falar de interpretação jurídica e de argumentação jurídica. Interpretação (entendida genericamente como um processo de atribuição de sentido a conceitos e enunciados, bem como à relação entre conceitos, entre conceitos e enunciados e entre enunciados) e argumentação (entendida, também genericamente, como um processo de justificação de enunciados com base em razões) são duas operações básicas sem as quais não há estudo nem aplicação possíveis do Direito. Não é possível abrir mão de nenhuma das duas operações para ficar apenas com a outra e não faria o menor sentido pretender que uma delas fosse mais importante que a outra, precisamente porque cada uma cumpre uma função diferente, que a outra não seria capaz de prover. Além disso, é possível desenvolver uma teoria da argumentação que tenha forte influência da abordagem hermenêutica (um exemplo é a compreensão da argumentação jurídica em Ricoeur), assim como é possível desenvolver uma teoria da interpretação que tenha forte influência da abordagem argumentativa (um exemplo é a teoria da interpretação do Direito como Integridade de Dworkin). Por isso, não é da diferença entre interpretação e argumentação que essa postagem se ocupa.

2) Aquilo de que ela de fato se ocupa é de duas abordagens teóricas das quais é possível servir-se tanto ao interpretar quanto ao argumentar com enunciados em Direito. Essas duas abordagens correspondem a duas ênfases distintas no conteúdo de nossas crenças. Ora, crenças são o tipo de coisa que, sob certas circunstâncias, se formam, se sustentam e se desenvolvem, se modificam, se adaptam, se ampliam, se limitam, se misturam a outras crenças e dão origem a crenças novas etc. Crenças são, em certo sentido, o produto de processos de formação e transformação ao longo do tempo e em razão de certas circunstâncias mais ou menos contingentes. Enfatizar esse aspecto das crenças é enfatizar sua dependência em relação a certos contextos sociais, econômicos, históricos, culturais etc. em particular e o modo como só puderam vir a existir do modo como atualmente existem a partir de uma rede de relações com outras crenças e com circunstâncias contextuais. Contudo, crenças não são apenas isso. Crenças são também conteúdos passíveis de serem defendidos com razões. Na verdade, é exatamente na medida em que podem ser defendidas com razões que as crenças adquirem importância para a justificação de nossas práticas, isto é, para que tais práticas não sejam produto do acaso e do arbítrio, mas sejam, ao contrário, práticas justificadas e legítimas, passíveis de serem racionalmente aceitas por quaisquer sujeitos racionais que levem seriamente em conta as circunstâncias existentes e as alternativas disponíveis. Como vou mostrar agora, o aspecto das crenças como conteúdos que se formam e se transformam ao longo do tempo em razão de fatos e circunstâncias concretas é enfatizado pela abordagem hermenêutica. Já o aspecto das crenças como conteúdos que podem ser criticados e defendidos com razões é enfatizado pela abordagem argumentativa.

3) A abordagem hermenêutica se pergunta: Como foi possível que viéssemos a ter essas crenças que temos, e não outras? Se hoje concordamos que certas coisas são de certo modo, e não de outro, o que tornou possível que compartilhássemos dos mesmos sentidos e critérios, de modo que se criassem as condições desse consenso? A resposta para isso em geral será um relato histórico-social e histórico-cultural detalhado, com épocas e etapas diferenciadas, com rica interação entre influências múltiplas e opostas, com avanços e recuos de certas crenças, com formação e transformação de seu conteúdo ao longo do tempo. A conclusão de um relato desse tipo, caso ele seja completo e bem sucedido, seria algo como: “E é porque foi essa a nossa trajetória até aqui e é porque é essa a nossa situação atual que cremos no que cremos e pensamos como pensamos”. Isso não quer dizer que dessa forma aquilo que se compreende esteja legitimado, nem quer dizer que devamos nos conformar com as crenças que temos hoje apenas porque é possível entender que elas se formaram ao longo de um processo histórico. Trata-se apenas de entender porque pensamos como pensamos, e não se temos ou não razões para seguir pensando assim. Nesse caso, se, por exemplo, ainda predomina entre os juristas brasileiros a crença de que o texto das leis encerra o verdadeiro conteúdo do Direito e é o critério último de orientação e decisão em casos concretos, é possível adotarmos a abordagem hermenêutica e nos perguntarmos que relato histórico-social e histórico-cultural sobre a formação e transformação do pensamento jurídico brasileiro é capaz de nos fornecer a compreensão de que por que os juristas locais creem naquilo. Esse relato provavelmente terá que remeter à influência portuguesa e espanhola sobre o Brasil e a influência francesa sobre Portugal e Espanha, à imagem do Direito criada pela Escola da Exegese e reproduzida pelas Faculdades de Direito de Coimbra e de Salamanca, mais tarde incorporada pelas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda durante os Períodos Colonial e Imperial, avançando daí para o papel que o Bacharelismo desempenhou na cultura político-administrativa local e para o tipo de prática jurídica que, inspirada pelos juristas do Rio de Janeiro e de São Paulo, predominou no Brasil da República Velha e do Estado Novo. O relato seguiria pelos avanços e recuos do pensamento jurídico de tendência legalista no Brasil durante a República Populista, na Ditadura Militar e na Nova República, com a recepção das influências estrangeiras sempre devidamente coloridas com tonalidades locais e adaptadas ao temperamento, aos interesses e às circunstâncias do Brasil. Esse relato histórico-social e histórico-cultural do pensamento jurídico legalista no Brasil nos daria um panorama bastante claro das influências e circunstâncias que contribuíram para o nascimento, para o desenvolvimento e para as seguidas transformações desse tipo de pensamento no Brasil. Isso serve de ilustração do que seria encarar o legalismo segundo uma abordagem hermenêutica, isto é, mais preocupada com os processos de formação e transformação das crenças ao longo do tempo.

4) A abordagem argumentativa se pergunta: Com base em que critérios e razões é possível defendermos contra críticas certas crenças, em vez de outras? Quando confrontadas umas com as outras, quais crenças são mais racionalmente aceitáveis que as outras e quais razões apoiam essa superioridade? A resposta a essas perguntas não será um relato histórico-social e histórico-cultural detalhado, mas sim uma lista de teses principais e teses secundárias, apoiadas por argumentos e exemplos, contra-argumentos e contraexemplos, na tentativa de convencer qualquer leitor bem informado, racional e sensato de que uma das alternativas é melhor que a outra ou de que um dos lados da controvérsia tem mais razão que o outro. Em relação ao mesmo exemplo que dei no item anterior, o da crença que predomina entre juristas brasileiros de que o texto das leis encerra o verdadeiro conteúdo do Direito e é o critério último de orientação e decisão em casos concretos, adotar a abordagem argumentativa não é se perguntar que processos históricos explicam que os juristas brasileiros pensem assim, mas sim se perguntar se eles estão – no fim das contas, considerados todos os argumentos a favor e em contrário – certos ou errados em pensar assim. Já não importa como veio a se formar a imagem que esses juristas têm do Direito, mas sim se, considerados os argumentos e contra-argumentos mais decisivos, os exemplos e contraexemplos mais relevantes, tal imagem é, em comparação com outras possíveis, a melhor imagem do que o Direito realmente é e de como ele realmente funciona. As possíveis causas de nossas crenças já não são importantes, mas apenas os argumentos capazes de sustentá-las. Isso é assim porque, como explicarei agora, a causa de uma crença não interfere nem positiva nem negativamente sobre sua validade.

5) As teorias contemporâneas da argumentação traçam uma distinção que pode nos ajudar a compreender por que os possíveis resultados alcançados por uma investigação a partir da abordagem hermenêutica não têm importância para as preocupações da abordagem argumentativa. Essa distinção é entre contexto de descoberta e contexto de justificação. A comparação que se faz é entre enunciados argumentativos e enunciados científicos. Por exemplo, nas Ciências Naturais, é perfeitamente possível que uma teoria elaborada por um cientista bastante criterioso ao longo de um cuidadoso processo de anos de estudo, observação, construção de modelos, confronto com teorias já estabelecidas etc. seja, no fim das contas, quando submetida aos testes empíricos a que deveria resistir, simplesmente falsa. É possível, em contrapartida, que uma teoria baseada num simples palpite, elaborada a partir da sugestão intuída num sonho ou colhida do folclore local ou a partir de uma analogia aparentemente transloucada seja, no fim das contas, quando submetida aos testes empíricos, verdadeira. Isso ocorre porque o contexto de descoberta de uma teoria (o modo como o cientista veio a crer que aquela teoria poderia ser verdadeira e deveria ser submetida ao teste da experiência) e o contexto de sua justificação (isto é, o conjunto de critérios que ela deve satisfazer e de testes ao qual deve resistir para ser considerada uma teoria verdadeira ou aceitável) são duas coisas muito distintas. Mais ainda: Conhecendo o contexto de descoberta da teoria não é possível saber nada sobre sua justificação. Contextos de descoberta bastante racionais podem gerar teorias falsas e contextos de descoberta bastante exóticos podem gerar teorias verdadeiras. Para uma teoria científica, ser verdadeira ou falsa não depende de como ela veio a ser elaborada, mas sim do quanto consegue satisfazer aos requisitos de justificação de teorias verdadeiras.

6) Da mesma maneira, em questões argumentativas, podemos distinguir entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação de teses ou enunciados. (Contexto aqui não significa contexto social, e sim âmbito lógico.) O contexto de descoberta tem a ver com o processo pelo qual o proponente daquela tese ou enunciado chegou até ele e veio a crer que ele seria convincente. Já o contexto de justificação tem a ver com os critérios, argumentos e exemplos que aquela tese ou enunciado pode oferecer em seu favor e com as críticas que pode fazer aos critérios, argumentos e exemplos da tese ou enunciado adversário. Sendo assim, por exemplo, um participante da argumentação não pode ter desqualificada de saída sua tese contra o aborto pelo simples fato de tratar-se de um cristão piedoso, porque, mesmo que sua convicção religiosa tenha desempenhado um papel importante ou até decisivo na formação de sua crença de que o aborto é errado, isso não prova que a tese não é sustentável à luz de argumentos aceitáveis para todos, inclusive para não cristãos ou para cristãos que pensem que tal questão deve ser decidida com base em argumentos laicos. Da mesma forma, a tese de que decisões políticas são melhores quando são tomadas a partir de abordagens e contribuições de vários grupos sociais não pode ser qualificada de saída como verdadeira simplesmente porque é uma crença que se formou e se consolidou ao longo do tempo em todas as democracias modernas. O processo de formação de uma crença não tem nada a dizer a respeito de sua validade. O relato de sua formação e transformação não pode contar como argumento em favor nem de sua aceitação nem de sua rejeição. Isso porque uma crença formada pelo processo mais irracional pode, quando sustentada por argumentos adequados, mostrar-se válida, ao passo que outra, formada pelo processo mais racional, pode, se sustentada por razões que não conseguem resistir à crítica em contrário, mostrar-se inválida. A racionalidade de uma crença não habita no seu processo de formação, e sim no seu potencial de justificação com base em razões em seu favor e em face de razões em contrário.

7) Só se pode sustentar que a abordagem hermenêutica tem alguma importância para as questões com que se preocupa a abordagem argumentativa quando se parte da perspectiva cética segundo a qual nenhuma crença pode se justificar apenas com base em razões ou se parte da perspectiva contextualistas de que razões só são mais ou menos aceitáveis a partir de consensos não reflexivos de fundo compartilhados entre os participantes de uma discussão. Não tenho nenhuma intenção de usar o espaço dessa postagem para tentar refutar nenhuma das duas perspectivas. Mas quero mostrar, sim, que ambas implicam a ideia de que só existem causas de crer, mas não razões para crer. Ou seja, de que nossas controvérsias não têm respostas corretas (mas apenas respostas que processos histórico-sociais e histórico-culturais construíram como sendo corretas), de que não há respostas que sejam melhores que outras (mas apenas respostas que processos histórico-sociais e histórico-culturais construíram como sendo melhores que outras) etc. Acredito firmemente que isso é falso, mas, como já disse, não tentarei provar isso aqui. Apenas indico que acreditar nisso implica minar toda a base de justificação racional e entregar as crenças e decisões ao arbítrio – se não ao arbítrio do indivíduo, ao arbítrio da história e das comunidades. Acreditar nisso é a única razão para o partidário da abordagem hermenêutica pensar que, para saber se uma crença é ou não é aceitável, o que ele deve fazer é investigar cuidadosamente todo o processo de sua formação e transformação em sua comunidade. Ora, mas esse tipo de investigação não é capaz de mostrar se essa crença consegue ou não consegue se sustentar com base em razões. Mas o partidário da abordagem hermenêutica não se deteria diante dessa objeção, porque, para ele, as tais “razões” que podem ser dadas em favor ou em contrário a qualquer crença que seja nada mais são que outras “crenças” a serem também elas explicadas e compreendidas à luz de processos históricos de formação e transformação. Isso implica o ponto de vista a partir do qual não existem verdadeiras razões, só o que existem são razões “para nós”, isto é, razões que assumem o valor de serem aceitáveis como resultado de uma trajetória e de uma situação particular que certa comunidade tem. É exatamente na medida em que implica nessa “desistência da razão”, nessa visão derrotista ou particularista, que a abordagem hermenêutica acredita que pode substituir argumentação racional por relato histórico. É também por esse motivo que essa abordagem nada tem a contribuir com a solução dos problemas propostos pela abordagem argumentativa.

Comentários

Flávio Rezende disse…
André,
Mais uma vez me vejo na obrigação de parabenizá-lo pela sua incrível capacidade de traduzir em termos "palatáveis" temas tão intricados como esse.
Quanto ao tópico de encerramento do post (nº 7), quais obras você indicaria em que se podem encontrar refutações às perspectivas céticas e contextualistas?
A fim de guiar eventuais aprofundamentos que seus leitores queiram fazer sobre temas que você trabalha no blog, aproveito para deixar a sugestão para que vc indique as referências bibliográficas (ainda que de maneira simplificada) dos argumentos que você utiliza nos posts.
Anônimo disse…
Eu gosto da valiosa informação que você forneceu nos aquitemfilosofiasim.blogspot.com. Vou marcar o seu blog e verifique novamente aqui regularmente. Tenho certeza de que vou aprender muitas coisas novas aqui mesmo! Melhor da sorte para os próximos!
Anônimo disse…
Na verdade, André, esta diferença entre contexto de descoberta e contexto de justificação é expressão mesma da racionalidade que você afirma logo no final do primeiro parágrafo.
Para a hermenêutica, como para Hegel, assim como para os comunitaristas, o contexto de descoberta é o próprio contexto de justificação.
Esta diferenciação que você fez é expressão mesma da racionalidade kantiana, rawlsiana, liberal etc.

Quanto ao post de um leitor sobre a presença de Deus no livro Ser e Tempo de Heidegger, há sim total pertinência. Há um livro em inglês sobre o tema. http://www.amazon.com/Question-God-Heideggers-Phenomenology/dp/0810108518/ref=sr_1_6?ie=UTF8&qid=1325600913&sr=8-6

No mais, parabéns pelo blog!

Adalberto

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