A Filosofia da História de Kant à Luz da Teoria Crítica
O texto abaixo foi o texto que li na apresentação de hoje de minha Comunicação no IV Encontro do Centro de Investigações Kantianas, no auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, na Universidade Federal de Santa Catarina.
A relação entre a Teoria Crítica e a Filosofia da História de Kant parece, à primeira vista, bastante improvável. De um lado, temos a Teoria Crítica, preocupada com a produção de diagnósticos de época que indiquem os potenciais de emancipação social inscritos nas estruturas sociais reais, potenciais de emancipação que estão ao mesmo tempo presentes, mas bloqueados pelas configurações sociais vigentes. Seus adversários por excelência são tanto as teorias que pretendem descrever de modo neutro como as coisas funcionam, quanto as teorias puramente normativas que concebem cenários ideais descolados de possibilidades efetivas de realização.
De outro lado, temos a Filosofia da História de Kant, que trabalha com uma teleologia segundo a qual os potenciais de racionalidade do ser humano tendem à sua completa realização, mas não na dimensão do indivíduo e de seu curto tempo de vida, e sim na dimensão da espécie e tendo em conta o curso completo da história humana; tal Filosofia da História pretende ser, entre outras coisas, uma formulação não do processo histórico que a realidade nos mostra e que pode ser apreendido pela razão teórica, mas sim do processo histórico que, (a) do ponto de vista da razão teórica, é necessário gerar mediante juízo reflexionante para preencher o golfo entre natureza e liberdade; e (b) do ponto de vista da razão prática, é necessário acreditar, para que não sejam vãs as perspectivas de realização da razão no mundo e de unidade entre virtude e felicidade e, assim, não fique a razão humana em insuperável conflito consigo mesma.
Desta relação, não seria de esperar nada além de mútua rejeição – no máximo, mútua indiferença. A despeito disto, dois autores sabidamente pertencentes à tradição da Teoria Crítica, Jürgen Habermas e Axel Honneth, dedicaram textos específicos ao tratamento da Filosofia da História de Kant: Habermas, em 1995, escreveu um famoso ensaio a propósito do bicentenário de “À Paz Perpétua”; Honneth, em 2007, dedicou um artigo ao exame da atualidade da Filosofia da História de Kant. Ambos atacaram, como era de esperar, a vinculação da teleologia racionalista de Kant a um dualismo metafísico insustentável e a um contexto ingênuo de otimismo iluminista. Contudo, o que não era de se esperar era que ambos, apesar destas críticas, considerassem que, devidamente atualizado para um contexto pós-metafísico e moderno-tardio, devidamente situado dentro de um programa genuinamente crítico da sociedade, o projeto da Filosofia da História de Kant segue tendo fertilidade e, o que é mais espantoso, potencial crítico.
De certa forma, isto não chega a ser uma completa surpresa. Por um lado, a Teoria Crítica tem, desde suas raízes marxianas, a capacidade de se apropriar e reconstruir teorias não críticas em favor de um projeto crítico. Exemplo disso ocorreu com a apropriação de elementos da Economia Política clássica e da Filosofia do Direito de Hegel para a montagem do projeto crítico do próprio Marx. Uma teoria ser identificada como não crítica não a descredencia a ser apropriada e reconstruída com propósito crítico por outra teoria. Por outro lado, a Filosofia da História de Kant, em que pese compartilhar a crença no progresso da humanidade com teorias como as de Condorcet, Comte e Spencer, tem sobre elas uma clara vantagem: Para tornar a crença na realização do ideal da razão passível de adesão pelo sujeito racional, Kant diminui as ambições do ideal esperado (por exemplo, limitando o progresso moral ao progresso jurídico) e seleciona como motores de sua realização elementos empíricos cuja influência sobre o curso da história humana seja, a seu ver, inquestionável (a insociável sociabilidade, a guerra, a economia etc.). Isso distancia a Filosofia da História de Kant das características do pensamento utópico e a torna, assim, mais atraente para apropriação e reconstrução pela Teoria Crítica.
Nesta comunicação, examinaremos como (1) o texto de Habermas a propósito do bicentenário de “À Paz Perpétua” e (2) o texto de Honneth a propósito da atualidade da Filosofia da História de Kant podem ser vistos como diferentes tipos de apropriação e reconstrução da Filosofia da História de Kant para propósito crítico.
(1) Em 1995 Habermas publicou o texto “A ideia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos”, com o triplo objetivo de (1º) fixar as linhas principais da proposta kantiana de um direito cosmopolita capaz de proscrever definitivamente a guerra, (2º) avaliar criticamente esta proposta à luz dos ganhos cognitivos que a história nos proporcionou nos duzentos anos que nos separam de sua publicação e (3º) visualizar perspectivas e propor reformas no cenário existente das Nações Unidas, dos direitos humanos e do direito internacional com vista a dotar de atualidade e efetividade o ideal normativo que inspirou a proposta kantiana. Queremos, a propósito deste texto, afastar uma interpretação que, se fosse verdadeira, enfraqueceria nossa tese da apropriação e reconstrução crítica por Habermas da Filosofia da História de Kant. A interpretação referida é constituída de duas partes: A primeira é de que neste texto Habermas não estaria interessado na ideia da paz perpétua dentro do quadro mais amplo da Filosofia da História de Kant, mas apenas na abordagem de Kant da temática da ordem cosmopolita; a segunda é que Habermas neste texto teria explicitamente refutado Kant, provando que ele estava errado e que seu projeto teria que ser substituído por outro, mais realista nos meios empíricos e mais ambicioso nos fins normativos. Cremos, porém, que esta interpretação pode ser afastada ao tentarmos responder às perguntas: Por que Habermas elege Kant como interlocutor? Que peso tem Kant na proposta de Habermas?
A seleção do interlocutor poderia ser, claro, remetida a certa constelação de contingências relativas ao bicentenário do texto de Kant e ao interesse de Habermas de tratar do tema da ordem cosmopolita. Em desfavor disto, contudo, queremos tratar a escolha de Kant como interlocutor não como fruto de coincidência, e sim como parte do método reconstrutivo que Habermas assinala como o adequado para a realização da tarefa da Teoria Crítica. Habermas, ao tratar de qualquer tema de sua teoria social – e podemos ver seu cosmopolitismo como a versão mais ampliada de sua teoria social –, procura partir dos autores e abordagens em que, em sua opinião, mais se podem colher os diagnósticos empíricos e as intuições normativas a partir das quais seja possível fazer uma teoria social crítica do objeto em questão. Habermas raramente escolhe seus interlocutores por mero acaso, ele geralmente tem em vista um autor ou porque ele representa o ponto de partida obrigatório para uma teoria social crítica a respeito do objeto em questão ou porque ele representa, pelo contrário, exatamente o tipo de teorização que uma teoria social crítica deveria evitar. Acreditamos que uma leitura atenta do texto indicará que Kant funciona como ponto de partida obrigatório, enquanto a posição de adversário a ser combatido é ocupada pelas teorias realistas das relações internacionais, especialmente certo tipo de cinismo do poder cuja figura representativa eleita por Habermas é Carl Schmitt. O texto é uma tentativa de mostrar que é possível reatualizar os diagnósticos empíricos e as intuições normativas de Kant sem ter que cair em puro derrotismo da razão e submissão do direito ao poder como em Schmitt.
Na opinião de Habermas, os três motores em que Kant teria apostado: a democracia interna, a economia externa e a opinião pública, continuam sendo, às vezes no mesmo sentido pretendido por Kant, às vezes num novo sentido, elementos estruturantes de qualquer projeto cosmopolita. Na interpretação tradicional deste texto de Habermas, estes três seriam precisamente os três “erros” de Kant, que Habermas teria refutado. Mas uma leitura atenta do texto revela que a relação que cada um dos três mantém com os duzentos anos de história do texto e com o cenário contemporâneo está longe de poder ser descrita como de simples desmentido histórico. Habermas diz que os desenvolvimentos históricos dos séculos XIX e XX têm com os pressupostos de Kant uma “dialética peculiar” (IO, 192) de falseação e reafirmação histórica: Por um lado, o pacifismo das repúblicas teria sido desmentido pelos efeitos beligerantes do nacionalismo; por outro, no quadro atual, Estados democráticos tendem a fazer guerras em nome da expansão da democracia e dos direitos humanos, e não da autoimposição militar de seus interesses; por um lado, a caráter agregador do mercado teria sido desmentido pelos efeitos beligerantes das lutas de classes internas e do imperialismo internacional; por outro, no quadro atual, a economização das relações internacionais após os êxitos do Estado de bem-estar de fato favorece a manutenção de relações pacíficas e da primazia do soft power sobre a investida militar; por um lado, a opinião pública se mostrou muito frágil e impotente diante das grandes guerras e violações em massa; por outro, no quadro atual, na era dos riscos globais compartilhados e dos movimentos sociais transnacionais, a intuição normativa de Kant sobre o papel da opinião pública volta a ganhar plausibilidade.
Sendo assim, como ponto de partida, Kant é especialmente atual não a despeito de sua Filosofia da História, mas, em certo sentido, exatamente por causa de sua Filosofia da História. Por um lado, a vinculação do projeto cosmopolita de Kant a uma teleologia da realização da razão assumida com propósito prático é o que faz pesar sobre todo o projeto a marca de um otimismo iluminista e de suposições metafísicas das quais, se se quer fazer com que ele se preste a uma teoria social crítica, é indispensável afastá-lo. Por outro lado, é exatamente a tentativa de Kant de dar ao progresso moral como progresso jurídico uma base empírica racionalmente crível que o fez identificar motores históricos deste processo que, mesmo dois séculos mais tarde, ainda se mostram, quando devidamente atualizados, úteis para a abordagem da situação. É neste sentido que nos parece precipitado julgar que o uso que Habermas faz do texto de “À Paz Perpétua” deva ser entendido como destacado do quadro geral da Filosofia da História de Kant, pois é a Filosofia da História de Kant que obriga a ideia da paz perpétua a assumir uma forma que a afasta do pensamento utópico tradicional e a aproxima da Teoria Crítica.
2) Em 2007, Honneth publicou o artigo “A irredutibilidade do progresso: a abordagem de Kant da relação entre moralidade e história”, anunciando os seguintes objetivos: (1º) reconstruir as diferentes justificações de Kant para a pressuposição do progresso; (2º) explicar a apresentação que Kant faz do processo mesmo do progresso; e (3º) mostrar que, em ambos os casos, pode-se distinguir entre versões ortodoxas e heterodoxas do progresso, sendo apenas a combinação das versões heterodoxas que pode voltar a conferir sentido sistemático à Filosofia kantiana da História.
Honneth atribui a Kant duas diferentes justificações para a pressuposição do progresso. A primeira justificativa, do ponto de vista da razão teórica, é preencher, mediante juízo reflexionante, o golfo que separa natureza e liberdade, olhando retrospectivamente para o processo causal que levou a humanidade até seu estado presente e atribuindo a este processo a forma de um progresso moral e um propósito natural de realização da liberdade humana. Neste primeiro modelo, temos um progresso gerado pela natureza, apresentado como a construção que nossa faculdade de juízo reflexionante usa para reagir à dissonância cognitiva entre a natureza governada por leis e a liberdade. A segunda justificativa, do ponto de vista da razão prática, é considerar o imperativo categórico como algo apto a se realizar no mundo entre todos os sujeitos do passado, do presente e do futuro, ideia que leva à consequência de considerar que as ações boas do passado não podem ficar sem efeito, e seu efeito seria o de levar a um crescimento progressivo da realização do bem no mundo. Neste segundo modelo, o progresso é uma pressuposição do agente moral vinculado ao imperativo categórico, mas deixa um espaço de dúvida acerca da efetividade prática de suas ações para a realização do bem moral no mundo. Devido a esta dúvida, teria que recorrer ao primeiro modelo como seu complemento teórico, fazendo dos dois dependentes do juízo reflexionante e do argumento do “propósito da natureza”. Contudo, Honneth assinala que é possível notar em Kant também um terceiro modelo em formação.
Tal terceiro modelo – que Honneth chama de hermenêutico ou explicativo – começa a aparecer em Teoria e Prática, quando Kant alega sobre Mendelssohn que ele também devia acreditar no progresso da humanidade, visto que tentara influenciar com seus escritos para o esclarecimento e bem-estar de sua nação, afirmação com que Kant parece querer dizer que qualquer um que se engaje na atividade de contribuir para uma melhora da humanidade precisa assumir uma visão da história consequente com esta tarefa, uma em que os feitos do passado nos tenham levado até um nível superior e o futuro acene com novas possibilidades de progresso. Até mesmo a tendência de ver os costumes em constante decadência moral seria um indício da mesma coisa, porque seria sinal de que o ponto de vista com que julgamos os costumes está sempre avançando com o tempo. Tal modelo aparece também nos textos O Que É o Esclarecimento? e no Conflito das Faculdades, situados, afirma Honneth, a uma distância razoável, anterior e posterior, em relação à Crítica do Juízo para não serem influenciados pelo modelo de progresso com que esta lida.
Honneth considera que esta mudança está também associada à mudança do público que Kant tem em vista: não mais o observador da história natural que se encontra em dúvida teórica, nem o agente moral situado fora do tempo e do espaço, mas sim um público esclarecido, que participa de um modo ou de outro de um processo de transformação política e moral. Isto dá a Kant o papel de observador desinteressado e esclarecido que indica aos partícipes dos processos de transformação quais pressuposições implícitas eles veriam em suas falas e ações se tomassem a posição de observadores de si mesmos. O esquema teleológico que Kant pôde explicar previamente apenas por meio do truque de um propósito da natureza agora se torna o princípio narrativo organizacional da autoafirmação histórica no processo politicamente dirigido de esclarecimento. Honneth vê na mudança do papel dos princípios morais – de serem princípios situados fora do espaço e do tempo para serem, nos processos de transformação, orientações de mudanças institucionais, princípios situados em certo tempo histórico – um tipo de destranscendentalização moderada que move Kant em direção a Hegel, captando a ideia deste último de realização da razão na história sem assumir o ônus de uma teleologia necessária da história, pois o progresso não é um fato objetivo, e sim uma perspectiva que o partícipe da transformação histórica assume para dotar de sentido seu próprio engajamento transformador.
No que se refere à descrição do processo mesmo do progresso, Honneth diz que, ao contrário no que acontece nos textos em que a construção heurística do “propósito da natureza” é assumida, onde Kant dá asas à imaginação para revelar o plano secreto da natureza que esteve agindo em favor do progresso moral mesmo por trás dos mais terríveis e atrozes eventos da história, nos textos em que assume o modelo hermenêutico ou explicativo, Kant descreve o mecanismo do progresso não em termos de teleologia natural, mas como produto de um processo humano de aprendizado. Ali se destranscendentaliza a razão prática ao encarná-la na história.
Nos textos dominados pelos modelos do “propósito da natureza” Kant atribui o mecanismo pelo qual a natureza tem educado a espécie humana a alguma forma de antagonismo. Em alguns escritos, o motor do antagonismo é a insociável sociabilidade (e aqui a vaidade e o desejo de distinção se sobressaem). Noutros, este papel é tomado pela guerra (e aqui é o sentido de honra que se sobressai). Devido ao seu quase insolúvel conflito com o papel da lei moral, Kant dá muito menos destaque e importância a este segundo modelo. É quase sempre o modelo do antagonismo por meio da distinção que prevalece nos escritos em que aparece o argumento do “propósito da natureza”.
Já nos textos em que há a presença do modelo hermenêutico ou explicativo, a ideia de aprendizado toma papel central. A natureza dotou os seres humanos com uma inclinação e vocação para pensar livremente, a qual leva, no nível ontogenético, a que o indivíduo, desde sua infância, assimile dos conteúdos de saber de que sua comunidade dispõe, mas leva também a espécie, no nível filogenético, a levar sempre adiante a acumulação de novos conteúdos de saber. Mas este processo está longe de ser linear e contínuo, pois sofre ação contrária de dois poderosos obstáculos: algumas disposições desfavoráveis da natureza humana, como a preguiça e a covardia intelectual, as quais hão de serem evitadas por uma cultura que favoreça a aquisição dos hábitos e virtudes intelectuais adequados e pelo uso público da razão nos espaços políticos; e os instrumentos de que grupos dominantes se servem (violência, perseguição, censura) para favorecer o pensamento conformista e convencional e impedir que os demais grupos sociais façam pleno uso de suas capacidades intelectuais. Esses obstáculos tornam bastante descontínuo, na medida em que sujeito ao predomínio de um lado ou de outro do antagonismo, o processo de aprendizado da humanidade.
Mas há um remédio para isso, que se encontra no fato de que conquistas morais da humanidade com validade universalista deixam traços na memória social, eventos que afetam aos interesses da humanidade como um todo não podem mais cair em esquecimento no processo de aprendizado da humanidade. Eles marcam avanços no progresso da humanidade que são, de então em diante, irredutíveis.
Honneth considera que, embora não compondo uma Filosofia da História sistemática, essa doutrina não oficial da história, baseada no modelo hermenêutico, apostando num processo de aprendizado da humanidade e destacando certos avanços irredutíveis do progresso, que ocupa um papel marginal em alguns textos e escritos de Kant, aponta talvez uma via alternativa com que ainda se possa dotar de sentido para o presente a Filosofia da História de Kant.
Florianópolis, 12/6/2012
A relação entre a Teoria Crítica e a Filosofia da História de Kant parece, à primeira vista, bastante improvável. De um lado, temos a Teoria Crítica, preocupada com a produção de diagnósticos de época que indiquem os potenciais de emancipação social inscritos nas estruturas sociais reais, potenciais de emancipação que estão ao mesmo tempo presentes, mas bloqueados pelas configurações sociais vigentes. Seus adversários por excelência são tanto as teorias que pretendem descrever de modo neutro como as coisas funcionam, quanto as teorias puramente normativas que concebem cenários ideais descolados de possibilidades efetivas de realização.
De outro lado, temos a Filosofia da História de Kant, que trabalha com uma teleologia segundo a qual os potenciais de racionalidade do ser humano tendem à sua completa realização, mas não na dimensão do indivíduo e de seu curto tempo de vida, e sim na dimensão da espécie e tendo em conta o curso completo da história humana; tal Filosofia da História pretende ser, entre outras coisas, uma formulação não do processo histórico que a realidade nos mostra e que pode ser apreendido pela razão teórica, mas sim do processo histórico que, (a) do ponto de vista da razão teórica, é necessário gerar mediante juízo reflexionante para preencher o golfo entre natureza e liberdade; e (b) do ponto de vista da razão prática, é necessário acreditar, para que não sejam vãs as perspectivas de realização da razão no mundo e de unidade entre virtude e felicidade e, assim, não fique a razão humana em insuperável conflito consigo mesma.
Desta relação, não seria de esperar nada além de mútua rejeição – no máximo, mútua indiferença. A despeito disto, dois autores sabidamente pertencentes à tradição da Teoria Crítica, Jürgen Habermas e Axel Honneth, dedicaram textos específicos ao tratamento da Filosofia da História de Kant: Habermas, em 1995, escreveu um famoso ensaio a propósito do bicentenário de “À Paz Perpétua”; Honneth, em 2007, dedicou um artigo ao exame da atualidade da Filosofia da História de Kant. Ambos atacaram, como era de esperar, a vinculação da teleologia racionalista de Kant a um dualismo metafísico insustentável e a um contexto ingênuo de otimismo iluminista. Contudo, o que não era de se esperar era que ambos, apesar destas críticas, considerassem que, devidamente atualizado para um contexto pós-metafísico e moderno-tardio, devidamente situado dentro de um programa genuinamente crítico da sociedade, o projeto da Filosofia da História de Kant segue tendo fertilidade e, o que é mais espantoso, potencial crítico.
De certa forma, isto não chega a ser uma completa surpresa. Por um lado, a Teoria Crítica tem, desde suas raízes marxianas, a capacidade de se apropriar e reconstruir teorias não críticas em favor de um projeto crítico. Exemplo disso ocorreu com a apropriação de elementos da Economia Política clássica e da Filosofia do Direito de Hegel para a montagem do projeto crítico do próprio Marx. Uma teoria ser identificada como não crítica não a descredencia a ser apropriada e reconstruída com propósito crítico por outra teoria. Por outro lado, a Filosofia da História de Kant, em que pese compartilhar a crença no progresso da humanidade com teorias como as de Condorcet, Comte e Spencer, tem sobre elas uma clara vantagem: Para tornar a crença na realização do ideal da razão passível de adesão pelo sujeito racional, Kant diminui as ambições do ideal esperado (por exemplo, limitando o progresso moral ao progresso jurídico) e seleciona como motores de sua realização elementos empíricos cuja influência sobre o curso da história humana seja, a seu ver, inquestionável (a insociável sociabilidade, a guerra, a economia etc.). Isso distancia a Filosofia da História de Kant das características do pensamento utópico e a torna, assim, mais atraente para apropriação e reconstrução pela Teoria Crítica.
Nesta comunicação, examinaremos como (1) o texto de Habermas a propósito do bicentenário de “À Paz Perpétua” e (2) o texto de Honneth a propósito da atualidade da Filosofia da História de Kant podem ser vistos como diferentes tipos de apropriação e reconstrução da Filosofia da História de Kant para propósito crítico.
(1) Em 1995 Habermas publicou o texto “A ideia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos”, com o triplo objetivo de (1º) fixar as linhas principais da proposta kantiana de um direito cosmopolita capaz de proscrever definitivamente a guerra, (2º) avaliar criticamente esta proposta à luz dos ganhos cognitivos que a história nos proporcionou nos duzentos anos que nos separam de sua publicação e (3º) visualizar perspectivas e propor reformas no cenário existente das Nações Unidas, dos direitos humanos e do direito internacional com vista a dotar de atualidade e efetividade o ideal normativo que inspirou a proposta kantiana. Queremos, a propósito deste texto, afastar uma interpretação que, se fosse verdadeira, enfraqueceria nossa tese da apropriação e reconstrução crítica por Habermas da Filosofia da História de Kant. A interpretação referida é constituída de duas partes: A primeira é de que neste texto Habermas não estaria interessado na ideia da paz perpétua dentro do quadro mais amplo da Filosofia da História de Kant, mas apenas na abordagem de Kant da temática da ordem cosmopolita; a segunda é que Habermas neste texto teria explicitamente refutado Kant, provando que ele estava errado e que seu projeto teria que ser substituído por outro, mais realista nos meios empíricos e mais ambicioso nos fins normativos. Cremos, porém, que esta interpretação pode ser afastada ao tentarmos responder às perguntas: Por que Habermas elege Kant como interlocutor? Que peso tem Kant na proposta de Habermas?
A seleção do interlocutor poderia ser, claro, remetida a certa constelação de contingências relativas ao bicentenário do texto de Kant e ao interesse de Habermas de tratar do tema da ordem cosmopolita. Em desfavor disto, contudo, queremos tratar a escolha de Kant como interlocutor não como fruto de coincidência, e sim como parte do método reconstrutivo que Habermas assinala como o adequado para a realização da tarefa da Teoria Crítica. Habermas, ao tratar de qualquer tema de sua teoria social – e podemos ver seu cosmopolitismo como a versão mais ampliada de sua teoria social –, procura partir dos autores e abordagens em que, em sua opinião, mais se podem colher os diagnósticos empíricos e as intuições normativas a partir das quais seja possível fazer uma teoria social crítica do objeto em questão. Habermas raramente escolhe seus interlocutores por mero acaso, ele geralmente tem em vista um autor ou porque ele representa o ponto de partida obrigatório para uma teoria social crítica a respeito do objeto em questão ou porque ele representa, pelo contrário, exatamente o tipo de teorização que uma teoria social crítica deveria evitar. Acreditamos que uma leitura atenta do texto indicará que Kant funciona como ponto de partida obrigatório, enquanto a posição de adversário a ser combatido é ocupada pelas teorias realistas das relações internacionais, especialmente certo tipo de cinismo do poder cuja figura representativa eleita por Habermas é Carl Schmitt. O texto é uma tentativa de mostrar que é possível reatualizar os diagnósticos empíricos e as intuições normativas de Kant sem ter que cair em puro derrotismo da razão e submissão do direito ao poder como em Schmitt.
Na opinião de Habermas, os três motores em que Kant teria apostado: a democracia interna, a economia externa e a opinião pública, continuam sendo, às vezes no mesmo sentido pretendido por Kant, às vezes num novo sentido, elementos estruturantes de qualquer projeto cosmopolita. Na interpretação tradicional deste texto de Habermas, estes três seriam precisamente os três “erros” de Kant, que Habermas teria refutado. Mas uma leitura atenta do texto revela que a relação que cada um dos três mantém com os duzentos anos de história do texto e com o cenário contemporâneo está longe de poder ser descrita como de simples desmentido histórico. Habermas diz que os desenvolvimentos históricos dos séculos XIX e XX têm com os pressupostos de Kant uma “dialética peculiar” (IO, 192) de falseação e reafirmação histórica: Por um lado, o pacifismo das repúblicas teria sido desmentido pelos efeitos beligerantes do nacionalismo; por outro, no quadro atual, Estados democráticos tendem a fazer guerras em nome da expansão da democracia e dos direitos humanos, e não da autoimposição militar de seus interesses; por um lado, a caráter agregador do mercado teria sido desmentido pelos efeitos beligerantes das lutas de classes internas e do imperialismo internacional; por outro, no quadro atual, a economização das relações internacionais após os êxitos do Estado de bem-estar de fato favorece a manutenção de relações pacíficas e da primazia do soft power sobre a investida militar; por um lado, a opinião pública se mostrou muito frágil e impotente diante das grandes guerras e violações em massa; por outro, no quadro atual, na era dos riscos globais compartilhados e dos movimentos sociais transnacionais, a intuição normativa de Kant sobre o papel da opinião pública volta a ganhar plausibilidade.
Sendo assim, como ponto de partida, Kant é especialmente atual não a despeito de sua Filosofia da História, mas, em certo sentido, exatamente por causa de sua Filosofia da História. Por um lado, a vinculação do projeto cosmopolita de Kant a uma teleologia da realização da razão assumida com propósito prático é o que faz pesar sobre todo o projeto a marca de um otimismo iluminista e de suposições metafísicas das quais, se se quer fazer com que ele se preste a uma teoria social crítica, é indispensável afastá-lo. Por outro lado, é exatamente a tentativa de Kant de dar ao progresso moral como progresso jurídico uma base empírica racionalmente crível que o fez identificar motores históricos deste processo que, mesmo dois séculos mais tarde, ainda se mostram, quando devidamente atualizados, úteis para a abordagem da situação. É neste sentido que nos parece precipitado julgar que o uso que Habermas faz do texto de “À Paz Perpétua” deva ser entendido como destacado do quadro geral da Filosofia da História de Kant, pois é a Filosofia da História de Kant que obriga a ideia da paz perpétua a assumir uma forma que a afasta do pensamento utópico tradicional e a aproxima da Teoria Crítica.
2) Em 2007, Honneth publicou o artigo “A irredutibilidade do progresso: a abordagem de Kant da relação entre moralidade e história”, anunciando os seguintes objetivos: (1º) reconstruir as diferentes justificações de Kant para a pressuposição do progresso; (2º) explicar a apresentação que Kant faz do processo mesmo do progresso; e (3º) mostrar que, em ambos os casos, pode-se distinguir entre versões ortodoxas e heterodoxas do progresso, sendo apenas a combinação das versões heterodoxas que pode voltar a conferir sentido sistemático à Filosofia kantiana da História.
Honneth atribui a Kant duas diferentes justificações para a pressuposição do progresso. A primeira justificativa, do ponto de vista da razão teórica, é preencher, mediante juízo reflexionante, o golfo que separa natureza e liberdade, olhando retrospectivamente para o processo causal que levou a humanidade até seu estado presente e atribuindo a este processo a forma de um progresso moral e um propósito natural de realização da liberdade humana. Neste primeiro modelo, temos um progresso gerado pela natureza, apresentado como a construção que nossa faculdade de juízo reflexionante usa para reagir à dissonância cognitiva entre a natureza governada por leis e a liberdade. A segunda justificativa, do ponto de vista da razão prática, é considerar o imperativo categórico como algo apto a se realizar no mundo entre todos os sujeitos do passado, do presente e do futuro, ideia que leva à consequência de considerar que as ações boas do passado não podem ficar sem efeito, e seu efeito seria o de levar a um crescimento progressivo da realização do bem no mundo. Neste segundo modelo, o progresso é uma pressuposição do agente moral vinculado ao imperativo categórico, mas deixa um espaço de dúvida acerca da efetividade prática de suas ações para a realização do bem moral no mundo. Devido a esta dúvida, teria que recorrer ao primeiro modelo como seu complemento teórico, fazendo dos dois dependentes do juízo reflexionante e do argumento do “propósito da natureza”. Contudo, Honneth assinala que é possível notar em Kant também um terceiro modelo em formação.
Tal terceiro modelo – que Honneth chama de hermenêutico ou explicativo – começa a aparecer em Teoria e Prática, quando Kant alega sobre Mendelssohn que ele também devia acreditar no progresso da humanidade, visto que tentara influenciar com seus escritos para o esclarecimento e bem-estar de sua nação, afirmação com que Kant parece querer dizer que qualquer um que se engaje na atividade de contribuir para uma melhora da humanidade precisa assumir uma visão da história consequente com esta tarefa, uma em que os feitos do passado nos tenham levado até um nível superior e o futuro acene com novas possibilidades de progresso. Até mesmo a tendência de ver os costumes em constante decadência moral seria um indício da mesma coisa, porque seria sinal de que o ponto de vista com que julgamos os costumes está sempre avançando com o tempo. Tal modelo aparece também nos textos O Que É o Esclarecimento? e no Conflito das Faculdades, situados, afirma Honneth, a uma distância razoável, anterior e posterior, em relação à Crítica do Juízo para não serem influenciados pelo modelo de progresso com que esta lida.
Honneth considera que esta mudança está também associada à mudança do público que Kant tem em vista: não mais o observador da história natural que se encontra em dúvida teórica, nem o agente moral situado fora do tempo e do espaço, mas sim um público esclarecido, que participa de um modo ou de outro de um processo de transformação política e moral. Isto dá a Kant o papel de observador desinteressado e esclarecido que indica aos partícipes dos processos de transformação quais pressuposições implícitas eles veriam em suas falas e ações se tomassem a posição de observadores de si mesmos. O esquema teleológico que Kant pôde explicar previamente apenas por meio do truque de um propósito da natureza agora se torna o princípio narrativo organizacional da autoafirmação histórica no processo politicamente dirigido de esclarecimento. Honneth vê na mudança do papel dos princípios morais – de serem princípios situados fora do espaço e do tempo para serem, nos processos de transformação, orientações de mudanças institucionais, princípios situados em certo tempo histórico – um tipo de destranscendentalização moderada que move Kant em direção a Hegel, captando a ideia deste último de realização da razão na história sem assumir o ônus de uma teleologia necessária da história, pois o progresso não é um fato objetivo, e sim uma perspectiva que o partícipe da transformação histórica assume para dotar de sentido seu próprio engajamento transformador.
No que se refere à descrição do processo mesmo do progresso, Honneth diz que, ao contrário no que acontece nos textos em que a construção heurística do “propósito da natureza” é assumida, onde Kant dá asas à imaginação para revelar o plano secreto da natureza que esteve agindo em favor do progresso moral mesmo por trás dos mais terríveis e atrozes eventos da história, nos textos em que assume o modelo hermenêutico ou explicativo, Kant descreve o mecanismo do progresso não em termos de teleologia natural, mas como produto de um processo humano de aprendizado. Ali se destranscendentaliza a razão prática ao encarná-la na história.
Nos textos dominados pelos modelos do “propósito da natureza” Kant atribui o mecanismo pelo qual a natureza tem educado a espécie humana a alguma forma de antagonismo. Em alguns escritos, o motor do antagonismo é a insociável sociabilidade (e aqui a vaidade e o desejo de distinção se sobressaem). Noutros, este papel é tomado pela guerra (e aqui é o sentido de honra que se sobressai). Devido ao seu quase insolúvel conflito com o papel da lei moral, Kant dá muito menos destaque e importância a este segundo modelo. É quase sempre o modelo do antagonismo por meio da distinção que prevalece nos escritos em que aparece o argumento do “propósito da natureza”.
Já nos textos em que há a presença do modelo hermenêutico ou explicativo, a ideia de aprendizado toma papel central. A natureza dotou os seres humanos com uma inclinação e vocação para pensar livremente, a qual leva, no nível ontogenético, a que o indivíduo, desde sua infância, assimile dos conteúdos de saber de que sua comunidade dispõe, mas leva também a espécie, no nível filogenético, a levar sempre adiante a acumulação de novos conteúdos de saber. Mas este processo está longe de ser linear e contínuo, pois sofre ação contrária de dois poderosos obstáculos: algumas disposições desfavoráveis da natureza humana, como a preguiça e a covardia intelectual, as quais hão de serem evitadas por uma cultura que favoreça a aquisição dos hábitos e virtudes intelectuais adequados e pelo uso público da razão nos espaços políticos; e os instrumentos de que grupos dominantes se servem (violência, perseguição, censura) para favorecer o pensamento conformista e convencional e impedir que os demais grupos sociais façam pleno uso de suas capacidades intelectuais. Esses obstáculos tornam bastante descontínuo, na medida em que sujeito ao predomínio de um lado ou de outro do antagonismo, o processo de aprendizado da humanidade.
Mas há um remédio para isso, que se encontra no fato de que conquistas morais da humanidade com validade universalista deixam traços na memória social, eventos que afetam aos interesses da humanidade como um todo não podem mais cair em esquecimento no processo de aprendizado da humanidade. Eles marcam avanços no progresso da humanidade que são, de então em diante, irredutíveis.
Honneth considera que, embora não compondo uma Filosofia da História sistemática, essa doutrina não oficial da história, baseada no modelo hermenêutico, apostando num processo de aprendizado da humanidade e destacando certos avanços irredutíveis do progresso, que ocupa um papel marginal em alguns textos e escritos de Kant, aponta talvez uma via alternativa com que ainda se possa dotar de sentido para o presente a Filosofia da História de Kant.
Florianópolis, 12/6/2012
Comentários
apesar de eu geralmente não curtir filósofos moralistas, acho importantíssimo ler muitos deles, especialmente Kant. Acho fantástico o texto dele "O que é o esclarecimento?". Inclusive, diferente de outros escritos do mesmo autor. Particularmente, gosto e acho útil a contemporaneidade apropriação feita pelo Habermas. Seu texto tem boas reflexões.
Abraço!
Tenho estudado a filosofia da história do Kant.
Onde eu poderia encontrar o seu texto completo para leitura?
Grato
Abr.
João.