Kant: Direito de Punir e Pena de Morte


Na sua Metafísica dos Costumes (Ak. 331-337), Kant trata do direito de punir em geral e da pena de morte em especial. Nesta postagem, resumiremos os argumentos de Kant sobre ambos os tópicos e examinaremos cada um de seus pontos analítica e criticamente. Procederemos em quatro passos: (1) a caracterização kantiana do direito de punir, do crime, da pena, de sua justificação e de seu critério; (2) o argumento de Kant quanto à pena de morte como único castigo justo para o assassinato; (3) a discussão de Kant com Beccaria quanto à aceitabilidade da pena de morte em geral; e (4) o rol de casos excepcionais em que a pena de morte não se seguiria do assassinato. Distinguiremos entre o resumo do que Kant diz e nossos comentários de análise e crítica colocando ao início de cada parágrafo a marcação “resumo” ou “comentário”. Assim, quem estiver interessado apenas em saber o que diz Kant, pode ler apenas os parágrafos com a marcação “resumo”.

(1) Caracterização geral

Resumo: Kant define o direito de punir como o direito do soberano de infligir castigo ao súdito que cometeu um delito. Define crime como a infração de lei pública que incapacita a ser cidadão. Distingue os crimes em privados e públicos, conforme seja a pessoa individual ou a comunidade que o crime ponha em perigo. Distingue ainda os crimes públicos em crimes de índole abjeta (que não envolvem violência) e crime de índole violenta (que envolvem).

Comentário: A definição do direito de punir tem em vista três objetivos: (a) excluir a ideia de punição do soberano (o qual não pode ser punido, mas apenas retirado de seu cargo), (b) excluir a ideia de punição do súdito por outro súdito e (c) vincular o castigo como reação/consequência ao delito como ação/causa. A definição do crime, por sua vez, não é material, e sim formal: crime não é o ato que ofende algum bem em particular, mas sim o ato que infringe a lei pública e que incapacita a ser cidadão. Por infringir a lei pública se entende fazer o que ela proíbe ou não fazer o que ela comanda. Kant não parece pensar que o crime seja uma infração de um tipo especial de lei ou uma infração de tipo mais grave que outras, sendo, assim, possível converter em crime todo ato que infrinja qualquer tipo de lei. O ponto sobre incapacitar a ser cidadão parece apontar para a ideia de que o criminoso deixou de ser um cidadão pleno, no sentido de que se tornou vulnerável em algum direito que para o cidadão pleno está protegido. Já a distinção entre crimes privados e públicos e entre crimes públicos de índole abjeta e de índole violenta, além de dar continuidade a uma tradição romana já superada no próprio tempo de Kant, não parece desempenhar papel importante em sua argumentação posterior.

Resumo: Distingue entre pena natural e pena judicial. A pena natural é o mal que se segue do delito e pelo qual o delito se pune a si mesmo. Esta jamais deve ser levada em conta pelo legislador. Pena judicial é aquela imposta por um juiz. Esta jamais pode ser meio par fomentar outro fim, seja ele o bem da comunidade, seja o bem do próprio infrator. Deve ser imposta pelo motivo exclusivo de que o infrator cometeu um crime, pois a personalidade inata do infrator impede que ele seja usado como mero meio. A lei penal é um imperativo categórico e sua aplicação é obrigatória, escapando de considerações de utilidade ou felicidade. Jamais pode ser mitigada ou afastada em nome de outro fim, qualquer que ele seja, sob pena de perecer a justiça.

Comentário: Kant não chega a esclarecer de modo satisfatório o que entende como pena natural. Pode se referir à ideia estoica de que o mal já é, em certo sentido, punição de si mesmo (seja em termos de ausência de felicidade, honra ou virtude, seja em termos de experiência de culpa, remorso e arrependimento). Ou pode se referir a consequências extrínsecas da má ação, como perda de credibilidade, abalo da reputação, incapacidade para associação e amizade duradoura etc. De qualquer modo, nenhuma dessas consequências (intrínsecas ou extrínsecas) do crime deve ser levada em conta pelo legislador. Assim, se ao cometer um crime o criminoso se feriu gravemente, ou perdeu um companheiro, ou foi rejeitado pela família, ou perdeu crédito no mercado, ou teve enorme prejuízo etc., nada disso é substituto nem diminuidor da pena, pois a pena judicial deve ser inteiramente independente da pena natural. A pena judicial, por sua vez, prevista pela lei e imposta pelo juiz, tem fundamento não instrumental e não consequencialista, e sim deontológico: neste caso, puramente punitivo e retributivo. Não serve para impedir que o criminoso volte a delinquir (prevenção especial), nem para desestimular crimes na comunidade (prevenção geral), nem para reeducar o criminoso (recuperação ou ressocialização), e sim apenas para aplicar ao criminoso a consequência que com seu ato ele mesmo atraiu para si. Apenas desta forma se respeita a dignidade do criminoso, porque se trata o mesmo como agente responsável por seu ato, e não como mero meio para atingir algum outro fim (segurança, paz, socialidade).

Resumo: Quanto à espécie e ao grau da punição, a pena deve seguir um princípio de igualdade entre delito e castigo e se orientar pela estrita retribuição (lei de talião), sendo esta imposta pelo juiz, com indicação precisa de quantidade e qualidade, e não pelo ofendido. Em exemplo, diz que a ofensa a outrem não pode ser punida com multa, mas deve, antes, ser punida com um pedido obrigatório de desculpas e um ato que rebaixe o ofensor perante o ofendido (por exemplo, beijar-lhe a mão). Assim, o mal que o infrator comete a outrem, comete também contra si mesmo. Em exemplo, diz que quem rouba atenta contra a propriedade; torna, pois, toda propriedade insegura; não pode, pois, ter propriedade; não pode, pois, sustentar-se a si mesmo; precisa, pois, ser sustentado pelo Estado; o Estado não pode, contudo, sustentá-lo sem contrapartida; como contrapartida, pois, o Estado pode obrigá-lo a trabalhar para ele; desta forma, liga-se o roubo ao castigo de trabalho forçado. Isto prepara o caminho para o mesmo tipo de raciocínio no que se refere à pena adequada para o assassinato.

Comentário: Para Kant, do fundamento da punição (a retribuição) se segue o critério de que o legislador se deve servir para prever a punição de cada crime (a igualdade ou proporção entre crime e castigo). Isto se segue do argumento de que o criminoso deve experimentar apenas o mal que atraiu para si e do argumento de que o criminoso deixa de ser cidadão pleno quanto ao direito que ele mesmo desafiou: Ora, se o caluniador ofendeu a honra, é apenas quanto à sua honra que pode sofrer punição. Puni-lo, por exemplo, em seu patrimônio, seria aplicar-lhe um castigo que nada tem que ver com seu ato (quebrando o nexo retributivo entre pena e crime) e que ataca um direito que, não sendo aquele que ele violou em outrem, deveria permanecer protegido para ele próprio (fazendo a pena deixar de ser coerção legítima e tornar-se, em vez disso, mera violência). Este argumento parece correto à luz das premissas, mas Kant vai longe demais com ele. Pois tudo que o argumento provaria é que a pena deveria recair sobre o mesmo direito que o crime violou; disso não se segue que o crime indica a pena exata que deve ser imposta. O nexo entre roubo e trabalho forçado indica o quanto de imprecisa a relação entre pena e crime ainda tem: neste exemplo, Kant não fala em multa nem confisco de propriedade (os quais recairiam sobre o mesmo direito que o roubo viola), e sim na redução do criminoso ao estatuto de absoluto não proprietário, o que implica sua incapacidade para sustentar-se sozinho, atingindo sua autonomia e, com a consequência do trabalho forçado, sua liberdade externa. Ora, que a pena de um crime contra a propriedade possa ameaçar a liberdade (rompendo o nexo retributivo) deveria ser uma razão para rejeitar esta pena como legítima. Kant, ao contrário, a usa como exemplo de nexo perfeitamente retributivo entre pena e crime.

(2) Assassinato e pena de morte

Resumo: Passa, então, a tratar do castigo para o assassinato e afirma de modo inequívoco: “Mas, se matou, então, deve morrer”. Primeiro, porque não há similitude entre a morte e a vida: a vida mais miserável a que se condenasse o assassino ainda seria muito melhor que a morte, de modo que nenhuma outra pena seria proporcional ao crime que ele cometeu. Se a comunidade não pune o assassino com a morte, torna-se cúmplice de seu crime e indiretamente responsável pelo sangue derramado. A morte a que se deve condenar o assassino, contudo, não pode estar associada a nenhum mau tratamento que pudesse degradar monstruosamente a humanidade do apenado.

Comentário: A relação entre assassinato e pena de morte pode ser estabelecida em Kant de várias maneiras: (a) quanto ao direito violado: quem mata torna insegura a proteção à vida, deixando de ter sua vida protegida e expondo-se, assim, precisamente neste direito, agora inexistente, à aplicação da pena (matar é tornar-se juridicamente matável); (b) quanto ao nexo retributivo entre pena e crime: em vários tipos de crime, não é possível ou não é moralmente admissível fazer ao infrator o mesmo que ele fez à vítima, exigindo-se, assim, uma espécie de talião indireto ou adaptado, como no caso do pedido de desculpas como pena para a ofensa, da castração como pena para o estupro e do trabalho forçado como pena para o roubo; no caso do assassinato, contudo, o talião se oferece como alternativa direta e simples, porque se torna perfeitamente possível e moralmente admissível infligir ao infrator o mesmo mal que seu crime infligiu à vítima, isto é, a morte; ora, mas toda vez que for possível e moralmente admissível o talião direto e igual, este é preferível ao talião indireto e adaptado, devendo ser tomado como pena o equivalente do crime; sendo este o caso com o assassinato, não se justifica que a pena seja outra que não a morte; e, finalmente, (c) quanto à severidade da pena em vista do tipo de crime: uma vez que “não há similitude entre a morte e a vida”, toda pena que mantivesse o assassino vivo ficaria aquém da severidade necessária com que este deve ser punido, deixando, assim, o crime parcialmente impune e tornando a comunidade cúmplice dele. É bom lembrar que Kant exclui a possibilidade de exposição a maus tratos, de sessões recorrentes de tortura, de trancafiamento com animais selvagens, de uso para experiências científicas ou como objeto sexual, entre tantas outras alternativas terríveis que a imaginação humana foi capaz de conceber e em comparação com as quais a morte pode não parecer a pena mais severa. Kant exclui estas alternativas como degradantes da humanidade tanto do apenado que as sofresse quanto da comunidade que as aplicasse. Assim, alternativas cruéis e degradantes estão excluídas, sendo admissíveis apenas as penas aplicadas de modo direto e respeitoso. Neste horizonte, a severidade da pena passa a depender inteiramente do direito do qual ela alija o apenado, justificando-se, assim, a conclusão de que a morte seria a mais severa das penas, apenas porque a vida é o mais básico dos direitos, enquanto condição para todos os demais. Por isso, o talião, isto é, a equivalência entre pena e crime, deve se restringir ao direito violado, neste caso, a vida, e não deve se estender para a modalidade de morte. Assim, para o assassino que tivesse tirado a vida de sua vítima de maneira fria, demorada, planejada e cruel, a pena seria igualmente severa em relação ao crime se o privasse do mesmo direito, isto é, da vida, não sendo necessária (nem moralmente admissível) a reprodução do mesmo tipo de crueldade no modo de execução da morte do apenado.  

Resumo: Usa um exemplo da rebelião da Escócia para mostrar que a pena de morte para todos os rebeldes seria mais proporcional que a escolha entre pena de morte e trabalho forçado deixada aberta para cada um dos apenados. Os que se rebelaram em nome da fidelidade ao Rei anterior (doravante, pela honra) escolheriam, valorando a honra mesma, a morte, enquanto os que se rebelaram em nome dos ganhos que poderiam ter com o golpe (doravante, por interesse) escolheriam, desprezando a honra, o trabalho forçado. Para Kant, isso tornaria a pena dos menos culpados (os que lutaram pela honra) mais severa que a pena dos mais culpados (os que lutaram por interesse). Ao contrário, se todos fossem condenados à morte, então, agora sim, os menos culpados receberiam pena menos severa (pois a morte é para eles menos má que o trabalho forçado), enquanto os mais culpados receberiam pena mais severa (pois a morte é para eles pior que o trabalho forçado). Diz também que seria ridículo o assassino que reclamasse que a pena de morte aplicada a ele fosse pena excessiva, pois isso suporia que o legislativo não estivesse autorizado a impor tal tipo de pena. Isto remete diretamente à discussão com Beccaria sobre a aceitabilidade da pena de morte.

Comentário: Em primeiro lugar, é bom chamar a atenção para o fato de que neste exemplo a pena de morte é usada como pena não para o assassinato, mas para outro crime: a rebelião contra o Rei. Kant considera que o exemplo é útil mesmo assim porque, embora todo assassinato deva ser punido com a morte, não é apenas o assassinato que é passível desta pena, mas também outros crimes. Isto, em princípio, parece ser contraditório com o argumento da não similitude entre vida e morte. Se, como Kant afirmou, nenhum crime que implique morte pode ter noutra pena que não a morte sua resposta proporcional, deveria seguir-se disto que nenhum crime que não implica morte pode ter na pena de morte uma resposta proporcional. Deveria seguir-se, portanto, que apenas a morte pode ser punida com a morte. Kant, porém, concede que outros crimes possam ser punidos com a morte, dando aqui o explícito exemplo da revolta política, sem dar para isso justificativa bastante nesta seção. Contudo, na seção dedicada à proscrição da desobediência, Kant formulará o argumento que aqui faz falta: Quem se revolta contra o soberano, revolta-se contra a lei que o protege e deixa de estar protegido por ela em todos os direitos, incluindo, neste caso, a vida. Quanto ao exemplo em si, é importante perceber sete coisas: (a) que Kant distingue entre agentes mais e menos culpados pelos crimes; (b) que o critério de distinção é o motivo que moveu o agente, sendo menos culpado o agente com melhor motivo e mais culpado o agente com pior motivo; (c) que o que torna um motivo melhor ou pior não é sua justificabilidade racional ou a capacidade de resistência do agente contra ele, e sim certa escala de nobreza e vilania acerca dos motivos; (d) que Kant considera que, entre honra e interesse, a honra é um motivo mais nobre, que torna o agente menos culpado, enquanto o interesse é um motivo mais vil, que torna o agente mais culpado; (e) que disto se segue que o agente mais culpado deve receber pena mais severa e o menos culpado, pena menos severa (o que não deixa de ser curioso, dada a definição que dá do Direito como regulando apenas a conduta exterior e sendo indiferente em relação aos motivos da conduta); (f) que a severidade da pena não é medida segundo o direito sobre o qual ela recai, mas segundo os padrões de preferência dos apenados entre penas alternativas (para quem prefere o trabalho forçado à morte, a morte é pena mais severa, mas, para quem prefere a morte ao trabalho forçado, o trabalho forçado é pena mais severa); e, finalmente, (g) que a morte é uma pena com o condão de dar ao agente honrado (menos culpado) pena menos severa e ao agente interesseiro (mais culpado) pena mais severa, sendo, então, a única realmente proporcional à culpa do agente. O exemplo denuncia como a teoria da imputação pela motivação, que Kant aplica na ética, também repercute sobre suas concepções jurídicas, apesar de sua insistência em dizer o contrário. Por outro lado, permanece a distinção entre a imputação ética e a jurídica, pois quem leva em conta a motivação em abstrato de agentes hipotéticos (no caso, se a morte seria ou não pena proporcional tanto para o agente honrado quanto para o interesseiro), é o legislador, e não o juiz, cuja aplicação da pena, pelo menos no exemplo em questão, não precisará levar em conta a motivação concreta de agentes reais (no caso, quais agentes eram honrados e quais eram interesseiros), mas apenas sua conduta de infração da lei (tendo todos eles se revoltado, devem todos eles morrer). Este ponto certamente exigiria maior análise.

(Observação: Ainda nesta seção, Kant comenta sobre o caso em que o número de assassinos – incluindo mandantes, executores e cúmplices – é grande demais. Mas deste caso falaremos junto com os demais casos excepcionais, no fim do texto.)


(3) Discussão com Beccaria

Resumo: Segundo Kant, a posição de Beccaria (que ele ataca como sendo sentimentalista e falaciosa) seria esta: A pena de morte é sempre ilegítima, porque sua previsão não poderia estar contida no contrato social que dá origem à sociedade civil, uma vez que ninguém consentiria em que lhe fosse tirada sua própria vida. Para Kant, o argumento apresenta vários problemas: (a) exige que o criminoso queira que lhe seja aplicada a punição, o que não é o caso nem é preciso, bastando verificar-se que ele quis cometer um ato punível; (b) no nível da legislação penal, confunde o eu legislador criador da lei (homo noumenon), que é sempre racional e justo, com o eu súdito a quem a lei se aplica (homo phaenomenon), que pode ser não racional e injusto; e (c) no nível da aplicação da pena, confunde a aplicação da pena pelo juiz ou tribunal (pelo Estado) com a aplicação da pena pelo povo (cada cidadão, incluindo o próprio criminoso). Feitas estas distinções, nada há de contraditório em supor que o legislador tenha querido punir certos crimes com a morte como pena justa e que o súdito, ao querer cometer um ato punível com a morte, aceitou a morte como consequência possível de seu ato, pena que lhe será aplicada não por ele mesmo, mas pelo Estado.

Comentário: Kant claramente não compreende a posição de Beccaria e faz dela uma caricatura. Beccaria não disse que a pena de morte seria ilegítima porque nenhum criminoso consentiria em ser morto. Se tivesse dito isto, a prisão e a multa teriam sido consideradas tão ilegítimas quanto. Beccaria disse, em vez disso, que, num contrato social, a vida não é o tipo de direito que os sujeitos colocariam à disposição do Estado para possível pena. Dada a concepção instrumental do Estado para conservação da vida e alcance da felicidade, os sujeitos só abririam mão dos direitos necessários para tornar este fim possível, sendo, então, a decisão de abrir mão da vida contraditória com os próprios motivos pelos quais se cria um Estado. Para refutar o argumento neste forma mais forte, Kant teria que ter afastado a concepção meramente instrumental do Estado e defendido a superioridade de seu modelo de contrato social (com base no único direito inato à liberdade) sobre o modelo de Beccaria (com preservação de vários direitos residuais do estado de natureza). Tal argumentação teria sido bastante elucidadora sobre o contrato social de Kant e sobre os direitos inatos. Infelizmente, ela nunca ocorreu. Contudo, na argumentação que Kant de fato fez, contra o espantalho de Beccaria que ele próprio criou, é possível destacar três coisas importantes: (a) a distinção entre querer a pena e querer um ato punível, que é importante para preservar o sentido de autonomia do sujeito, que atrai para si mesmo a pena ao querer o ato que tem a pena como resposta justa; (b) a distinção entre homo noumenon e homo phaenomenon, que, embora se servindo do vocabulário dualista de Kant, pode talvez ser comparada com o juízo dos agentes com e sem o véu de ignorância de Rawls (com o véu, isto é, julgando sobre o justo em geral, de uma perspectiva totalmente imparcial, sem se ater a um caso em particular; e sem o véu, isto é, julgando sobre um caso particular, estando situado e envolvido com a situação); e (c) a distinção entre aplicação da pena pelo juiz em vez de pelo povo mostra que a aplicação da lei é diferente da criação da lei: a aplicação da lei está sujeita apenas a um juízo imparcial de legalidade, e não mais às possíveis flutuações da vontade de cada um dos integrantes do povo.

(4) Casos Excepcionais

Resumo: Kant aborda dois casos que constituem dilemas para a justiça penal. O do infanticídio de criança nascida fora do casamento e o do assassinato de companheiro militar em duelo. Em ambos, está em jogo uma forma de honra: a honra sexual da mulher e a honra militar do soldado, ambas sendo tais que, uma vez maculadas pelo nascimento da criança bastarda ou pela ofensa de um companheiro de armas, são impossíveis de serem restabelecidas pela lei. A questão é saber se tais crimes, embora certamente puníveis, podem ser punidos com a morte. Isso constitui um dilema porque, não sendo a lei capaz de restituir a honra maculada, os infratores se encontram num tipo de estado de natureza. A criança nascida fora do casamento pode ser ignorada pela lei, uma vez que nasceu fora da lei. A morte do soldado em duelo ocorreu com consentimento das partes, embora com pesar delas. Puni-los com a morte seria declarar nulo o conceito de honra, o que seria cruel demais. Puni-los com menos que a morte seria fechar os olhos ao homicídio perpetrado, o que seria indulgente demais. Para sair desse dilema, há que perceber o seguinte: Ocorre um desencontro entre a lei do Estado (sempre racional, movida pelo imperativo categórico penal, que exige a punição do homicídio com a pena capital) e a lei do povo (contaminada por costumes bárbaros, capaz de associar um crime de homicídio com a honra e ser indulgente com ele). Tal desencontro tende a seguir existindo enquanto os costumes não se tornarem outros.

Comentário: É surpreendente a concessão de Kant em relação a estes dois casos. Mesmo dizendo que o imperativo categórico penal exigiria a morte dos assassinos (Kant não nega isso) e criticando a barbaridade dos costumes que são indulgentes com a morte em nome da honra (Kant claramente não concorda com este juízo), Kant dá ao suposto dilema um peso que não seria de esperar do teórico de uma metafísica dos costumes, concebida como estrutura de princípios a priori do direito racional. Dobrar o imperativo categórico a costumes qualificados como bárbaros parece, de fato, inaceitável. Contudo, algo que devemos deixar claro é a exata medida desta concessão de Kant, para que não se suponha que ela teve um tamanho maior do que de fato teve: (a) Kant não disse que o infanticídio e a morte em duelo não são verdadeiros crimes nem disse que não deveriam ser punidos; isto sequer constitui objeto do dilema, sendo este, antes, o de saber se a punição devida – visto que alguma é, sem dúvida, devida – é a morte ou é outra menos severa; (b) Kant nem sequer disse que tais crimes não deveriam ser punidos com a morte, pois assumiu que seria isso o que exigiria o imperativo categórico penal, sendo o desencontro deste com os costumes ainda bárbaros o que constitui o dilema; (c) Kant também não disse que tais costumes são corretos, mas, ao contrário, os condenou como bárbaros e previu que no futuro haveriam de ser superados; (d) Kant também não disse que a justiça deve sempre dobrar-se aos costumes, e sim que existe um dilema neste caso porque certo direito reputado importante pelos costumes (a honra, sexual num caso, militar no outro) não tem como ser restabelecido pela lei a não ser com a morte da criança bastarda e do soldado ofensor; trata-se, portanto, de casos em que aquilo que a lei visa a ser, uma protetora da liberdade, restituidora do direito violado, ela não tem como ser, apresentando-se, ao contrário, não como meio, mas como obstáculo para a recuperação da honra. Kant poderia, claro, ter feito de novo a distinção entre homo noumenon e homo phaenomenon e ter dito que esse apego à honra segundo costumes bárbaros é próprio apenas do último, e não do primeiro, motivo por que a legislação não se deveria dobrar aos costumes, e sim seguir, nisto como em tudo mais, o imperativo categórico penal. A concessão de Kant consiste em não ter feito isto, mas ter dado ao caso valor de verdadeiro dilema e ter legado a um futuro com costumes menos bárbaros (em outras palavras, ao sucesso futuro do processo de esclarecimento) a solução do problema. Disse, enfim, que era dilema a ser dissolvido não pela teoria, mas pela história.

Resumo: Devemos acrescentar entre os casos excepcionais um caso que Kant discute antes da polêmica com Beccaria: o caso em que o número de assassinos a serem punidos – incluindo mandantes, executores e cúmplices – é grande demais e sua execução se torna uma ameaça para o Estado. O motivo da ameaça pode ser ou a possibilidade de dissolução da sociedade civil, com consequente retorno ao estado de natureza, ou o embotamento do sentimento do povo, perante uma carnificina de magnitude considerável. Kant aceita a possibilidade de abrir mão da pena de morte nestes casos, convertendo-a, por exemplo, em pena de deportação, pois considera que, neste caso, não se trata de abrir mão da justiça em nome de outro fim, mas de abrir mão da justiça mais estrita em nome de evitar uma injustiça muito maior. Mesmo assim, Kant tenta manter a coerência com sua teoria da legislação penal e diz que não caberia tal decisão ao juiz, pois a lei penal, vinculada que está ao imperativo categórico da pena, não poderia prever tal possibilidade, que só poderia ocorrer, então, pelas mãos do poder executivo, por meio não de lei geral, mas de decreto particular, exercendo, neste caso, seu direito de concessão de graça.

Comentário: Este caso parece ser uma patente concessão a considerações de tipo consequencialista. Trata-se de abrir mão da justiça estrita em nome de evitar um mal ainda maior – o tipo de raciocínio que o retributivismo estrito do começo desta seção parecia condenar como ilegítimo em todos os cenários. Contudo, aqui novamente convém colocar em perspectiva a real natureza e o real tamanho da concessão de Kant: (a) Kant não disse que a não dissolução da sociedade civil e o não embotamento do sentimento social de justiça são fins que prevalecem sobre a justiça estrita da pena de morte porque seu sacrifício seria grave demais em termos eudaimonistas ou utilitários, e sim porque implicaria uma injustiça ainda maior que a da não aplicação da pena de morte aos assassinos (o estado de natureza e uma sociedade com sentimento de justiça embotado são o cenário da máxima injustiça concebida); (b) Kant também não disse que nesta situação o legislador está autorizado a prever uma exceção ou o juiz está autorizado a fazer uma exceção não prevista, e sim que o chefe do executivo, usando de seu poder de majestade, isto é, usando da prerrogativa que já possui de conceder graça e converter penas mais severas em menos severas, poderia, por meio de decreto (não lei, nem sentença), converter a pena de morte em, por exemplo, pena de deportação; a sentença continua adstrita à lei e a lei continua adstrita ao imperativo categórico penal, que manda punir com a morte. Contudo, isto apenas desloca o problema do núcleo do legislativo para o núcleo do executivo: Pode o executivo usar seu poder para afastar o imperativo categórico penal e desequilibrar a relação entre crime e pena? Não seria isso o mesmo tipo de injustiça do povo que não exige a punição dos assassinos, deixando, assim, o Rei como cúmplice do assassinato em questão? Se pode, e isto é justo, por que não pode a lei mesma prever a hipótese, devendo ela ocorrer pela via transversa e discricionária de um decreto? Se pode, mas é injusto, trata-se, então, apenas da razão de Estado (poder do governante de fazer o que é preciso fazer, mesmo afastando-se da lei e da justiça), que, surpreendentemente, teria lugar mesmo numa concepção de Estado que se pretende racional e apriorista? Aqui, como em vários outros pontos, as questões ficam abertas, tanto para a interpretação quanto para a crítica.

Comentários

Andre disse…
Muito bom.
É um assunto adverso na obra Kantiana. Você saberia me dizer sobre a possível existência de uma carta onde Kant se posiciona a favor da pena de morte? procuro muito este testo, mas pelo que vejo, ou não existe, ou é inacessível.

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