TRANSMISSÃO DAS OLÍMPIADAS PELA REDE RECORD: ENTRE COMEMORAÇÕES, RECLAMAÇÕES E INDIFERENÇAS
Vamos partir de de três fatos incontestáveis:
(1) No Brasil, existe um oligopólio da comunicação de TV: Na TV aberta, podemos contar nos dedos das mãos as emissoras que existem, apontar quem são seus donos e quais são seus padrões de programação e de cobertura jornalística. Longe de ser local e pulverizada, a comunicação de TV é predominantemente nacional e concentrada;
(2) Dentre estes grandes grupos da TV, a Globo conta com poder econômico e político inigualavelmente maior, sendo a emissora mais assistida em praticamente todos os dias e horários, ditando, com sua programação e cobertura, o padrão com que o público se acostumou a assistir TV no Brasil; e
(3) Na última década, o volume de investimento das emissoras concorrentes da Globo têm crescido consideravelmente, ao mesmo tempo em que os antigos orçamentos estratosféricos daquela emissora nos anos 70 e 80 têm dado lugar, nos anos 90 e 2000, a versões mais modestas e supervisadas. É isso que permite a migração de jornalistas, atores, diretores, técnicos etc. dos quadros da Globo para os de suas concorrentes, criando um maior igualamento de produção e programação, embora ainda não consistentemente de qualidade nem de audiência. Trata-se, contudo, de um processo em curso.
Destes três fatos decorrem algumas consequências. A Globo acumula admiradores e detratores, aqueles que são pró-Globo num extremo e os que são anti-Globo no outro extremo, com uma grande massa de indecisos e indiferentes no meio que tendem a ir para onde a audiência ou o hábito comandam ir, o que, na maioria das vezes, quer dizer em favor da emissora. Quase todos os membros de qualquer destes grupos, contudo, assiste muito mais à programação da Globo que a de qualquer outra emissora da TV aberta, sendo o padrão de programação e de cobertura desta emissora o critério de julgamento mesmo daqueles que a criticam. As TV's a cabo, mesmo que tenham grande audiência das classes A, B e C, não chegam a constituir para estas pessoas um "novo parâmetro" a não ser em domínios específicos, como na comparação entre filmes da TV fechada e da TV aberta ou entre séries estrangeiras e novelas nacionais - talvez algo semelhante ocorra na comparação dos reality shows. No que se refere a intervalos comerciais, programas de auditório, programas jornalísticos e eventos esportivos, ainda é a TV aberta, e particularmente a Rede Globo, que determina o padrão de avaliação mesmo dos que são assinantes e espectadores habituais da TV a cabo.
Tudo isso se reflete nos juízos que vemos ditos pelas pessoas no dia-a-dia e publicados nas redes sociais sobre a transmissão das Olímpiadas de Londres pela Rede Record. Esta emissora, como a Globo, conta com admiradores e detratores. Não, como no caso da Globo, por ser uma líder de audiência, mas sim por sua direta associação com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e com a não pouco controversa figura do Bispo Edir Macedo. Os anti-Globo se dizem aliviados por estarem livres da transmissão da emissora líder, embora nada os obrigasse nas Olímpiadas anteriores a acompanharem o evento por via desta emissora. O que comemoram, na verdade, é o que consideram ser uma importante derrota da emissora, lida como sinal no horizonte da possibilidade de constestação de sua longa hegemonia. Já os pró-Globo, geralmente também anti-IURD, e os numerosos não extremistas que acabam apenas revelando o quanto estão habituados à transmissão da Globo, não se cansam de reclamar do que interpretam como sendo um patentemente baixo padrão jornalístico de cobertura das Olimpíadas pela Rede Record, reclames geralmente acompanhados de piadas e gozações sobre a incapacidade de qualquer outra emissora de competir com o padrão ditado pela Globo. Espectadores pró-Globo ou simplesmente acostumados ao seu padrão e que têm acesso à programação da TV a cabo se revelam publicamente como indiferentes a esta controvérsia, pois, afinal, dizem, não são obrigados a acompanhar o evento pela TV aberta e podem fazê-lo a partir do padrão mais elevado de alguma emissora da TV fechada. No geral, isto costuma ser outra maneira de dizer que o padrão de cobertura da Rede Record não é digno da sua audiência, cabendo o problema de acompanhar o evento mais importante dos esportes mundiais por uma má cobertura ao restante da população que não tem as mesmas oportunidades de acesso a programação.
Cercado por comemorações apocalípticas, reclamações comodistas e indiferenças elitistas, gostaria de expressar alguns juízos pessoais sobre esta situação:
1) A perda dos direitos de transmissão exclusiva das Olimpíadas pela Globo em favor da Record ao mesmo tempo é e não é um fato digno de comemoração.
É digno de comemoração porque de fato abala, mesmo que em medida modesta, uma longa hegemonia da Globo em não apenas dar cobertura aos eventos esportivos mais importantes, mas também em investir seu poder econômico e político para tornar suas coberturas exclusivas. Ao usar seu recém-reforçado poderia econômico para cobrir o evento com exclusão da Globo, a Record faz a emissora dominante provar de sua própria fórmula fascista de cobertura jornalística. Por outro lado, se é digno de comemoração que o eixo da hegemonia tenha se movido alguns centímetros da Globo, não é nada digno de comemoração que o tenha feito na direção da Record. Mesmo que não entremos no mérito altamente controvertido sobre como o gigantesco patrimônio da Record foi adquirido e a serviço de quem sua programação é pensada, mesmo que deixemos estes pontos (importantíssimos, mas polêmicos) inteiramente de lado, teríamos que reconhecer, no mínimo, que a Record é apenas outra grande corporação da comunicação, uma concorrente da Globo que segue a mesma fórmula que ela e que ambiciona ter a mesma influência que ela. A Record é uma rede de TV na forma de grande corporação privada, concentrada e de âmbito nacional, que investe no mesmo tipo de programação que a Globo, que está, tal como a Globo, disposta a fazer o que for preciso por audiência, que controla, tal como a Globo, com mão de ferro a programação de suas retransmissoras locais, que em momento algum se abre, tal como a Globo não se abre, para a participação de grupos de setor público, de movimentos sociais ou de organizações comunitárias e que tem, tal como a Globo, um plano de hegemonia baseado no binômio audiência-propaganda. Se algum deslocamento de hegemonia devesse ser comemorado, este não seria da Globo em favor de uma aspirante a Globo.
2) O padrão significativamente menos elevado de cobertura jornalística das Olimpíadas pela Record ao mesmo tempo é e não é um fato digno de reclamação.
Por um lado, é, sim, digno de reclamação que o maior evento esportivo mundial não receba cobertura jornalística mais bem qualificada da emissora de TV que se propôs a deter os direitos exclusivos de sua transmissão na TV aberta. Esta Rede de TV é o canal através do qual a maioria dos brasileiros terá acesso a um evento deste porte e esta maioria mereceria uma cobertura mais qualificada do evento. Por outro lado, devemos lembrar que a Globo jamais converteu as Olimpíadas em sua absoluta prioridade no passado. Em época de Olimpíada, continuavam a ser exibidos normalmente, além dos jornalísticos, os programas de auditório, os reality shows e as novelas de todos os tipos. A Globo jamais se propôs a ser, durante um mês, o "canal das Olímpiadas", investindo, em vez disso, em transmitir disputas e competições específicas, capazes de dar maior audiência, e limitando a flashes durante a programação as notícias e coberturas das participações brasileiras nos vários esportes. O verdadeiro espírito das Olimpíadas, que está em se afastar por um tempo dos esportes que você já acompanha para dar uma chance a outros, menos badalados, e se afastar por um momento do campo estreito das fidelidades nacionais para honrar aqueles que são os melhores do mundo em cada esporte, não importa de onde sejam, nunca foi a proposta principal da Globo. E nunca foi pelo mesmo motivo que agora não é a da Record: porque foge do esquema audiência-propaganda, a partir do qual ambas as emissores se regem.
Não esqueçamos também que boa parte dos melhores profissionais de TV estão nos quadros da Globo, trancados por contratos com altas multas rescisórias e por ameaças de bloqueio e sabotagem de seus contatos e oportunidades profissionais. Este procedimento, digno dos piores momentos da máfia e do fascismo, sempre foi conduta normal na postura contratual da Globo. Isto faz com que a Record precise trabalhar com o melhor que pode fazer com pessoal dos níveis B, C e D em cada ramo da cobertura esportiva e jornalística.
3) Tanto os que comemoram como aqueles que reclamam não estão tocando nos que, a meu ver, são os verdadeiros dois pontos principais.
O primeiro é que eventos esportivos deveriam ser celebrações do esforço e do talento dos atletas, não passíveis de serem tratados como programações entre outras, submetidas ao binômio audiência-propaganda. Tais eventos não deveriam poder ser transmitidos com exclusividade por emissora alguma, em situação alguma. Seus direitos de transmissão deveriam ser postos em patamares alcançáveis para as emissoras em geral e deveriam ser financiados pelo Estado para a transmissão do evento por pequenas redes de TV locais e comunitárias. Se o evento celebra a união dos povos e a diversidade de suas raças, línguas e culturas, a própria ideia de transmissão exclusiva, a partir de um só ponto de vista e servindo aos interesses de um só grupo econômico, é incompatível com o evento.
O segundo é que a hegemonia a ser quebrada não é apenas a da Globo em particular, mas a das grandes corporações da comunicação. O que precisa ser desfeito não é a liderança isolada da emissora dominante em relação às suas concorrentes, mas o modelo de emissora que tanto a Globo como as suas concorrentes representam. A comunicação em TV é um veículo poderosíssimo de trocas de informação, de cultivo e preservação da cultura, de confronto de ideias e pontos de vista, de formação de opinião e de vontade coletivas, de educação popular etc. Este veículo poderosíssimo, em vez de estar nas mãos dos mais diversos grupos sociais, que pudessem exercer o direito de tornarem públicas suas mais diversas vozes, vontades e visões de mundo, está nas mãos de uma dezena de grupos empresariais, que não têm outro compromisso que não com audiência-propaganda nem outra ideologia social ou visão de mundo que não a influência política e o poder econômico. Sem uma transformação do quadro oligárquico da TV, as emissoras farão com que os espectadores rejeitem uma delas apenas para cair nas mãos da outra, sem perceberem que suas boas intenções estão sendo postas a serviço da mudança de poder das mãos de um senhor do capital para outro, sem ganho social, político nem cultural real. A Record não é uma alternativa interessante à Globo. A TV realmente aberta, pulverizada em centenas de canais representando centenas de grupos sociais, com programação fortemente local e servindo à formação de poder simbólico, social e político: isto, sim, seria uma verdadeira alternativa ao modelo atual.
São estas, modestamente, as minhas opiniões a respeito.
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