DEVEMOS MESMO INVESTIR MAIS NOS ESPORTES?


Do ponto de vista político, as Olimpíadas modernas estão fortemente ligadas ao momento do auge dos Estados-nacionais. Elas foram sistematicamente exploradas pelos governos estaduais para fazer propaganda nacionalista a respeito da superioridade de uma raça, de um povo, de uma tradição ou de um regime sobre os demais. (Nisso se assemelha ao que aconteceu com a corrida aero-espacial e com as artes de massa, sobretudo o cinema.) Especialmente nos tempos da Guerra Fria, eram uma oportunidade quatrienial de comparação entre o êxito das políticas esportivas e o volume de nacionalismo produzidos pelos regimes capitalista e socialista, bem como entre a hegemonia da Velha Europa e as forças emergentes de EUA, URSS, China e Cuba.

Isso justificava os elevados investimentos em estrutura esportiva para gerar atletas e grupos vencedores. Não à toa, na cerimônia de entrega das medalhas, o atleta ou grupo premiados vestem os uniformes com as cores de seus Estados de origem ou de adoção e ouvem a execução formal do hino nacional, geralmente demonstrando grende emoção e sentimento, que têm mais a ver com a história de seu esforço e vitória pessoal que com patriotismo, mas acabam, no ritual olímpico, convenientemente misturados com a lealdade a certa bandeira nacional e a gratidão ao investimento e à torcida de seu país. Do ponto de vista político, trata-se de um espetáculo de competição entre bandeiras nacionais, em que elites específicas que estão no poder exploram e se beneficiam do talento e a dedicação de atletas e grupos envolvidos num projeto esportivo genuíno.

Hoje em dia, em tempos de reorganização da ordem mundial entre países desenvolvidos e emergentes, as Olimpíadas são especialmente importantes para outros países. É importante para os EUA, não mais como força emergente, mas agora como força hegemônica, para manter sua liderança e superioridade simbólicas sobre o mundo. Mas é ainda mais importante para os regimes contra-hegemônicos em busca de apoio interno e reconhecimento externo, como Cuba, Irã, Coreia do Norte e Venezuela, e para os países emergentes e desejosos de se apresentarem ao mundo como candidatos a potências, como Rússia, China, Índia, Brasil, México, Coreia do Sul, África do Sul.

Em tempos de globalização, isto implica o seguinte paradoxo: Por um lado, a economia real se torna cada vez mais supra e transnacional, com o verdadeiro poder econômico difuso nas mãos de grandes redes de investimento que se estendem por vários países e de grandes corporações sem nenhuma fidelidade nacional a outra bandeira que não o lucro; por outro lado, a economia simbólica continua se estruturando como uma disputa entre bandeiras, neste caso não no eixo Leste capitalista versus Oeste socialista, e sim cada vez mais no eixo Norte ameaçado versus Sul emergente. O quadro geral de medalhas é o grande momento de afirmação simbólica tanto de países que querem mostram que não perderam sua superioridade quanto daqueles que mandam um recado de que devem ser notados, reconhecidos ou mesmo temidos no âmbito global.

Neste contexto, a revolta dos brasileiros com os resultados olímpicos ainda decepcionantemente medíocres da delegação brasileira acaba sendo inflamada pelo acúmulo dos seguintes fatores: (a) o clima de otimismo e de recuperação da autoestima nacional com o crescimento econômico e a afirmação política do Brasil na última década no cenário global, que as pessoas gostariam de ver refletida na arena simbólica das Olimpíadas; (b) a percepção do crescimento dos investimentos e dos resultados esportivos de potências emergentes como China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Cazaquistão, Nova Zelândia, África do Sul etc., que despertam a suspeita de que não estamos fazendo o dever de casa de quem vai receber uma Olimpíada e de que estamos fazendo menos do que deveríamos no campo dos esportes; e (c) uma imprensa esportiva de tipo nacionalista que mantém o padrão acrítico e ufanista de transmissão jornalística que se afirmou no Regime Militar e que, ao produzir audiência artificialmente criando falsas esperanças de êxitos e vitórias dos atletas e grupos brasileiros, se torna a principal produtora também de frustrações e cobranças nem sempre realistas da parte do público.

Tudo isso contribui para a formação de um discurso homogêneo e unânime de "precisamos investir mais nos esportes", "precisamos de investimento massivo e de planejamento estratégico", "precisamos transitar para um novo patamar no quadro de medalhas das Olimpíadas" etc.

Eu, sinceramente, tenho minhas dúvidas. Quando ainda nos faltam educação, saúde, saneamento, habitação, emprego e infra-estrutura, deveríamos investir mais nos esportes? Quando precisamos urgentemente de uma reforma agrária, tributária, financeira, previdenciária, política, partidária e federativa, deveríamos fazer de um grande projeto olímpico uma absoluta prioridade? Será que ao cobrarmos mais resultados, mais vitórias, mais medalhas, não estamos apenas criando o clima político mais favorável para fazer passarem por normais as insanidades políticas e econômicas que já se fazem e se farão muito mais em nome das Olimpíadas do Rio? Será que ao cobrarmos tão inflamadamente uma colocação mais elevada do Brasil no quadro olímpico de medalhas não estamos dando prioridade à grandeza simbólica em detrimento da grandeza real do país?

Mais uma vez, publico aqui as minhas opiniões para seguirmos conversando. Abraços a todos!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo