ENTREVISTAS COM OS ATLETAS LOGO APÓS SUAS DERROTAS OU DECEPÇÕES NAS OLIMPÍADAS
Ontem publiquei a seguinte nota no Facebook:
"A entrevista do tipo 'Como
você explica este resultado?' logo depois de uma derrota e decepção do atleta
nas Olimpíadas deveria ser proibida pela Convenção de Genebra"
E várias pessoas concordaram comigo. Contudo, como esta nota pode dar a entender que considero que
a imprensa não tem o direito de perguntar e o atleta não tem o dever de
responder - o que seria uma posição bem distante da minha -, resolvi hoje publicar
uma nota mais desenvolvida com as razões por trás da declaração de ontem. Faço
isso em nome da clareza, mesmo sabendo que desta forma, provavelmente, algumas
pessoas que ontem concordaram com a versão mais curta que continha apenas a
afirmação da ideia principal talvez hoje não concordem com esta versão mais
longa que traz também as minhas razões. De qualquer maneira, acredito que seja
uma contribuição para a reflexão sobre a questão.
Deixem-me tornar a minha posição
mais clara, então. Em primeiro lugar, sou favorável ao maior regime possível de
liberdade de imprensa: A menos que exista dano ou ameaça de dano a pessoas
específicas ou perigo ou ameaça de perigo à segurança nacional, a imprensa deve
ser livre para fazer o seu trabalho, tanto no que se refere à investigação e
revelação dos fatos de interesse do público como no que se refere à emissão e
discussão de opiniões para influenciação do público. Em segundo lugar,
considero que dois fatores, a saber, o investimento nacional nos atletas (por
menor e mais precário que seja) e a cobertura esportiva da imprensa sobre suas
competições (por menor e mais incompetente que seja), ou seja, o dinheiro
público e o interesse do público, têm um papel tão decisivo para que o atleta
esteja ali competindo nas Olimpíadas que o deixa, sim, na condição de alguém
que tem que responder a este mesmo público pelos seus resultados, especialmente
quando estes são abaixo ou bem abaixo do esperado. Combinados, estes dois
primeiros argumentos levam à conclusão de que sim, até certo ponto a imprensa
tem o direito de perguntar e, sim, até certo ponto, o atleta tem o dever de
responder.
Contudo, o exercício deste direito
de perguntar e a cobrança daquele dever de responder devem ter sensibilidade
para o tipo de situação que uma disputa olímpica, especialmente quando mal
sucedida, representa para o atleta. Nós, o público, ouvimos falar destes
atletas somente algumas vezes e por alguns minutos durante os quatro anos entre
uma Olímpiada e outra. Nosso interesse por eles, nossa torcida pelo seu
resultado, nossa decepção com seu fracasso, durarão apenas alguns dias,
enquanto o evento estiver registrado em nossa memória de curto prazo de
espectadores de TV e leitores de jornais e sites, memória esta que tão rápida e
facilmente é reocupada pelos assuntos, manchetes e escândalos do dia seguinte.
Já para eles, os atletas, aqueles
breves momentos da disputa olímpica foram o sonho e o projeto dos últimos
quatro anos e serão a lembrança e - em caso de derrota - a frustração dos
próximos quatro. Para o público, uma Olimpíada é um evento entre outros, um
espetáculo para assistir comendo pipoca, torcer enquanto se usa o Facebook ou Twitter, formar lealdades superficiais de alguns dias, criar ídolos artificiais
de algumas semanas, simular um envolvimento com os esportes que a maioria de
nós nem tem de verdade, ocupar de expectativas, alegrias e tristezas plásticas
e passageiras estas curtas semanas de transmissão e cobertura dos Jogos. Já
para eles, os atletas, trata-se de sua vida inteira, de centenas de dias de
sono limitado, de alimentação controlada, de exercícios repetitivos, de luta
contra o corpo, contra o cansaço, contra o limite, contra o relógio. É um tempo
investido que implica sacrifício, dedicação, alienação dos amigos e da família,
transformação constante do sonho e da expectativa em motivação para os momentos
em que a paciência e a vontade estão prestes a fraquejar e estourar num ato
desesperado de desistência.
Em resumo: Tanto a expectativa que a
disputa olímpica representa quanto a decepção que uma eventual derrota produz
têm medidas e implicações incomparavelmente maiores para os atletas que para o
público. Nós, o público, somos visitantes eventuais, turistas entusiasmados,
daqueles com trajes típicos comprados em aeroporto, de dicionário de
conversação e máquina fotográfica na mão, que estamos apenas de passagem
rapidissíma por um universo esportivo e olímpico que é a casa e o dia-a-dia
destes homens e mulheres.
Por isso, em razão da gigantesca
diferença pessoal e emocional do envolvimento do atleta e do público com aquela
competição e com aquele momento de frustração da derrota, deveríamos, em nome
da humanização do tratamento, ter um respeito especial pela ocasião de derrota
ou decepção do esportista, em vez de massacrar e tripudiar de sua dor de
maneira que se assemelha à indiferença impiedosa da tortura e da crueldade.
Nós, o público, acabamos de sofrer uma pequena e passageira decepção que nos
faz querer perguntar, mas ele acaba de sofrer uma duradoura e enorme decepção
que o faz querer não ter que responder. É dever dele, como atleta financiado e
acompanhado pelo público, responder ao público e prestar contas de sua derrota
em algum momento. Mas é dever nosso, como seres humanos sensíveis à dor do
outro, exercer nosso direito de perguntar com bom-senso e responsabilidade,
escolhendo o melhor momento e a melhor maneira de perguntar.
Alguns dias depois, passada a dor
dilacerante da derrota imediata, sarada a ferida mais superficial da
expectativa e da autoimagem do atleta, podemos fazer nossas perguntas e obter
dele suas respostas. Até porque também é mais provável que a esta altura ele já
tenha uma avaliação mais clara, mais fria e mais informada do que realmente
aconteceu, dos motivos reais de sua baixa performance.
Mas, é sempre bom perguntar, o que é
que faz a imprensa querer extrair logo depois da derrota ou da decepção do
atleta uma declaração prestando contas de seu rendimento? São três motivos, os
três igualmente sórdidos e desumanos: (1) prolongar a tensão do momento em que
o público assiste à competição, convertendo a expectativa do resultado em
expectativa de justificação do resultado, convertendo a torcida pelo atleta em
cobrança sobre o atleta, mantendo, assim, o público interessado pela
transmissão, menos prediposto a mudar de canal ou desligar a TV; (2) colocar o
atleta na posição mais desconfortável possível num momento que já é de
sofrimento e tristeza bastantes, aumentando a possibilidade de uma explosão de
raiva ou de lágrimas, que possa converter o interesse do público em indignação
com o mau perdedor ou em compaixão pelo perdedor arrependido, em ambos os casos
aumentando o potencial de audiência da transmissão; e, finalmente, (3) explorar
um ato final de explicação da performance ainda durante o curto espaço de tempo
em que dura o interesse superficial e artificial do público que ela mesma, a
imprensa, produziu e sabe ser instável e passageiro, pois de nada adiantaria
extrair do atleta uma declaração sobre sua derrota quando ele já tiver caído de
novo no mesmo anonimato de que a transmissão das Olimpíadas o havia tirado por
curtos instantes. E pensar que é em nome deste frágil, insignificante,
passageiro e artificial interesse do público que nos julgamos no direito de
profanar o sofrimento alheio em seu momento mais vulnerável para obter nossas
respostas que por alguma razão parecem não poder esperar. Na verdade, elas não
podem mesmo esperar, mas não porque o interesse é grande demais, e sim porque é
pequeno demais para esperar.
Perguntar na hora, enfiar o
microfone intruso por dentro da carne ainda aberta da derrota, é exercício da
liberdade de imprensa, sim, mas de algum ser insensível e despido de qualquer
empatia, respeito e solidariedade, apenas de avidez de audiência, de sede por
manter o espetáculo por mais alguns instantes. Se quisermos ser seres humanos
razoáveis, devemos saber o momento e a forma razoáveis de exercitar nossos
direitos também.
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