Direitos Humanos e Soberania Popular (I): O Argumento de Habermas
Exporei uma versão
bastante resumida do argumento de Habermas. Como se sabe, um dos principais
objetivos do Cap. III de Direito e
Democracia é mostrar que existe um nexo interno entre direitos humanos e
soberania popular, as duas únicas fontes de legitimação da modernidade; tal nexo
teria passado despercebido para liberais e republicanos e só se deixaria captar
pelo ponto de vista da teoria do discurso. O motivo pelo qual liberais e
republicanos só concebem direitos humanos e soberania popular submetendo um dos
termos ao outro é que, se por um lado os liberais têm uma concepção dos
direitos herdeira dos erros do jusnaturalismo e uma concepção não comunicativa
da legislação, por outro lado os republicanos têm uma concepção jurídico-positivista
dos direitos e uma concepção ético-voluntarista da legislação. Assim que tais
concepções inadequadas dos direitos e da legislação forem revistas, o nexo
interno entre direitos humanos e soberania popular resultará, segundo Habermas,
mais evidente.
Para cumprir esta tarefa,
Habermas introduz dois elementos mediadores. Um deles normativo-reconstrutivo:
o princípio do discurso. Outro histórico-sociológico: a forma jurídica. Quero
mostrar como cada um deles altera a dinâmica da relação entre direitos humanos
e soberania popular.
O princípio do discurso é o
princípio segundo o qual só podem pretender validade normas que possam ser
assentidas por todos os afetados num discurso racional prático. Este princípio
estaria implícito em nossas práticas concretas de argumentação e seria obtido
mediante reconstrução racional destas práticas. Uma vez obtido, passa a
desempenhar um papel normativo, pois se torna o referencial mínimo de
legitimidade das decisões vinculantes para todos num jurisconsórcio entre cidadãos
livres e iguais.
O princípio do discurso
modifica o modo de conceber os direitos humanos. Em lugar do jusnaturalismo,
que trata certos direitos como morais e pré-políticos, listáveis pelo filósofo
e necessitados apenas da ratificação e proteção pela lei, entra em cena o
princípio do discurso dizendo que, se tais direitos são normas e precisam ser
legítimos para seus destinatários, então, os direitos que os sujeitos devem ter
devem ser apenas aqueles que possam ser assentidos por todos os afetados num discurso
racional prático. Como a forma institucional pela qual este assentimento de
todos os afetados pode ser aferido são os procedimentos democráticos através
dos quais se expressa a soberania popular, segue-se que, para serem legítimos,
os direitos humanos precisam podem ser objeto de um consenso em formas
institucionais de exercício da soberania popular.
O outro elemento mediador é a
forma jurídica. A forma jurídica é um rol de características formais típicas do
direito moderno e que incluem a distribuição na forma de direitos subjetivos, a
positividade, a coercibilidade e a carência de legitimação. Para o argumento de
Habermas em favor do nexo interno entre direitos humanos e soberania popular,
interessa sobretudo a primeira destas quatro características, a saber, o fato
de que, para usar o medium do direito
positivo moderno, é preciso converter os indivíduos em pessoas jurídicas, isto
é, em portadores de direitos.
Deste fato, Habermas extrai
duas consequências: primeira, que a soberania popular, para servir-se do medium do direito positivo, precisa
converter os cidadãos em pessoas jurídicas, dotando-os de certo número de
direitos básicos que protejam o âmbito da autonomia privada; segunda, que a
soberania popular, para se inserir no direito positivo, deve assumir ela mesma
a forma de um direito subjetivo de participação política, que torne possível o
exercício da autonomia pública. Não haveria outra forma de exercer uma
soberania popular que respeite a forma jurídica que não atribuir aos sujeitos
direitos humanos básicos.
Resumindo: Uma vez que se
concebam os direitos humanos como tendo que ser legítimos à luz do princípio do
discurso, não haveria outro meio para sua discussão e produção que não os
procedimentos institucionais de exercício da soberania popular; por outro lado,
uma vez que se conceba a soberania popular como tendo que se servir do medium do direito positivo moderno e que
respeitar a forma jurídica, não haveria outro meio para sua realização que não
a atribuição de direitos humanos básicos aos sujeitos. A introdução dos dois
referidos mediadores – princípio do discurso e forma jurídica – tornaria
inevitável e inegável o nexo entre direitos humanos e soberania popular.
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