O "Método" de Hércules: Fenomenológico ou Apofântico?
(Esta postagem aprofunda um tópico específico da postagem de ontem. Eu disse ontem que o fato de que Dworkin formule um método de interpretação/decisão, o método do juiz Hércules, era um ponto antigadameriano de sua teoria. Após discussão com amigos, especialmente o Ricardo Evandro e o Felippe Davi, vi que a afirmação precisava ser mais desenvolvida. Pois existe um tipo de método, situado no nível puramente fenomenológico-hermenêutico, que é compatível com a hermenêutica filosófica, enquanto existe outro tipo, situado no nível apofântico, que não é. Resta-me, então, tentar provar que o método de Hércules se qualifica como esse segundo tipo de método.)
De fato, não basta apontar que em Dworkin existe um "método" para que Dworkin seja qualificado, automaticamente, como antigadameriano neste ponto. É preciso investigar de que método falamos. Se o método de que falamos é um conjunto de regras que dirigem a interpretação em certa direção contingente a fim de que se alcancem propósitos que vão além do êxito da própria interpretação, então, temos um método situado no nível apofântico, isto é, no nível da apropriação do mundo em termos de dizer sobre o ser e o não ser. Se, em vez disso, o método de que falamos é um conjunto de pressupostos e operações mais ou menos inevitáveis para qualquer intérprete que queira chamar o que faz de "interpretação" e ser bem sucedido nela, então, temos um método situado num nível anterior ao apofântico, no nível neste caso verdadeiramente fenomenológico-hermenêutico, o nível daquelas atos da intencionalidade da consciência pelos quais ela torna presente para si mesma uma atividade de interpretação.
Aqui, para manter a minha tese de que a recomendação de um método por Dworkin, o método de interpretação/decisão do juiz Hércules, é antigadameriano, tudo que preciso é mostrar que este método se situa no nível apofântico. Para isso, basta mostrar que o método de Hércules não representa os pressupostos e operações sem os quais uma atividade não pode ser qualificada como interpretação, mas representa, em vez disso, uma forma de interpretação entre outras, a qual, segundo o autor, no caso, Dworkin, é superior às demais em vista de razões políticas. Isso, a meu ver, é uma tarefa bastante simples. Basta indicar os pontos em que o próprio Dworkin exclui possibilidades alternativas ao método do Direito como integridade, não porque elas não se qualificariam como interpretação genuína, e sim porque, embora sejam interpretação, são um tipo de interpretação que temos motivos de moralidade política para considerar inferior ao Direito como integridade.
(Aqui uma observação complementar: Para ser realmente "apofântico", um método tem que ter a pretensão de apreender como o mundo de fato é, ou seja, tem que ser do tipo descritivo-explicativo. Ora, o método de Hércules não é descritivo-explicativo, e sim prescritivo-político. Por isso, stricto sensu, não se qualifica como um método situado no nível apofântico. Contudo, estamos aqui empregando os termos que Gadamer usou em seu debate contra as ciências naturais e as ciências do espírito de sua época, debate no qual opor ao método fenomenológico um método "apofântico" fazia muito sentido, porque as ciências em questão de fato querem encontrar um método que seja capaz de lhes dizer como o mundo é, seja o mundo natural num dos casos, seja o mundo humano no outro. Para estendermos esta terminologia ao debate com Dworkin, é preciso dar a "apofântico" um sentido heterodoxo de simples contraste com "fenomenológico", isto é, o sentido de "aquilo que acrescenta aos elementos mínimos do método fenomenológico outros critérios e propósitos, que não são necessários para que a atividade em questão se qualifique como interpretação, e sim para que a interpretação toma certa direção, em vez de outra". Ou seja, "apofântico" aqui significa "não-fenomenológico", "metafenomenológico". Neste sentido, por assim dizer, "ampliado" de apofântico é que tentarei situar o método de Hércules.)
O Império do Direito (1986), a obra em que Dworkin faz a descrição mais detalhada do método de Hércules |
Comecemos pelos capítulos de "O Império do Direito" dedicados ao convencionalismo e ao pragmatismo. Como sabemos, estas teorias são constructos do próprio Dworkin para representarem, respectivamente, a visão que os conservadores e a visão que os liberais radicais teriam da interpretação uma vez que já tivessem superado as deficiências da abordagem baseada no aguilhão semântico. Pois bem, o convencionalismo seria uma teoria do Direito segundo a qual a interpretação que torna uma norma a melhor peça de política é aquela que a considera como isenta de conteúdo moral, como simples regra de um jogo, cuja utilidade e valor consistem apenas em determinar de antemão como as coisas vão funcionar e proporcionarem, assim, certeza e segurança. A argumentação de Dworkin contra o convencionalismo é de que ele conseguiria explicar a maior parte das decisões judiciais ordinárias, mas não as decisões que os juízes tomam nos casos difíceis, e de que ele não é capaz de nos convencer de que certeza e segurança são fins em nome dos quais deveríamos abrir mão de uma multidão de fins sociais que o Direito também se compromete a assegurar. Trata-se, portanto, de uma refutação política, e não fenomenológica. Não se mostra que a interpretação recomendada pelo convencionalismo viola algum dos pressupostos e operações básicas que associamos com a atividade de interpretação e que, por isso, não se qualifica como interpretação em absoluto. O que se mostra é que, embora o convencionalismo seja de fato uma teoria interpretativa, é uma teoria interpretativa politicamente menos atraente do que o Direito como integridade.
Do outro lado, o pragmatismo seria uma uma teoria do Direito segundo a qual a interpretação que torna uma norma a melhor peça de política é aquela que a considera como ferramenta de engenharia social, um meio nas mãos dos juízes para tornar a sociedade em que vivemos um pouco mais próxima da sociedade que desejamos e proporcionar, assim, progresso nas causas do bem-estar e da justiça. Aqui, novamente, a refutação de Dworkin não será mostrar que a interpretação recomendada pelo pragmatismo viola pressupostos e operações que associamos com a atividade de interpretação e que, por isso, não se qualifica como interpretação. Será, novamente, uma refutação política. (O fato de que neste capítulo Dworkin faça referência ao pragmatismo como uma teoria interpretativa muito mais atraente que o convencionalismo e muito mais difícil de ser refutada pelo defensor do Direito como integridade reforça a minha ideia de que Dworkin considera a interpretação proposta pelo pragmatismo como sendo interpretação genuína, e aduz motivos para não abraçá-la que não são de ordem fenomenológica, e sim de ordem política.) Dworkin recorrerá a uma certa interpretação da divisão de poderes e mostrará que uma sociedade está em melhores condições se suas metas sociais de amplo alcance foram definidas em instituições majoritárias e os juízes de ocuparem unicamente com questões de justiça, e não de engenharia social.
A meu ver, o simples fato de que Dworkin reconheça como teorias interpretativas genuínas duas teorias que são concorrentes com o Direito como integridade já é prova o bastante de que o Direito como integridade não é uma descrição fenomenológica dos pressupostos e operações sem os quais uma interpretação jurídica não se qualifica como interpretação genuína, mas é, ao contrário, a indicação de certo método particular de interpretar e de decidir que está ao lado de outros. Se não estamos falando do que está inevitavelmente implicado em toda interpretação que se qualifique como tal, e sim de qual forma de interpretação é politicamente superior às outras, então, não tenho outra alternativa que não concluir que a recomendação do Direito como integridade como método se situa no nível apofântico, e não fenomenológico.
No mesmo patamar se situam várias outras escolhas de Dworkin. A interpretação que não contemplasse os princípios como sempre superior às políticas, seria, para Dworkin, politicamente inferior, mas ainda seria, sem dúvida, interpretação genuína. A interpretação que leve em conta os resultados econômicos da decisão seria, para Dworkin, politicamente inferior, mas ainda seria, sem dúvida, interpretação genuína. A interpretação da lei que não levasse em conta os debates legislativos da época de sua elaboração seria, para Dworkin, politicamente inferior, mas ainda seria, sem dúvida, interpretação genuína. A interpretação da Constituição que atribuísse peso absoluto às convicções e vontades dos Fundadores seria, para Dworkin, politicamente inferior (neste caso, quase politicamente absurda), mas ainda seria, sem dúvida, interpretação genuína. Em todos estes casos, como não estamos decidindo, com critérios fenomenológicos, entre algo que é interpretação e algo que não, mas sim, com critérios políticos, entre algo que é interpretação e algo que também é interpretação, é inegável que o nível em que estamos nos movendo aqui é o apofântico.
E, finalmente, em conclusão: Recomendação de um método de interpretação em detrimento de outros no nível apofântico é - agora sim, podemos dizer com todas as letras - um traço profundamente antigadameriano.
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