O Que É Mundo da Vida em Habermas?
Mundo da vida é um dos conceitos mais famosos de Habermas.
Criado por Husserl como parte de seu argumento sobre o afastamento das ciências
modernas em relação ao horizonte de experiência e de sentido dos indivíduos
comuns (tal horizonte cotidiano de experiência e de sentido era o significado
original do conceito), o termo “mundo da vida” (Lebenswelt) foi depois incorporado por Heidegger ao projeto de Ser e Tempo, usado ocasionalmente por
Sartre e Gadamer e tornado uma categoria central da sociologia fenomenológica
de Schultz. Em Habermas, o termo ganha novas conotações e marcada relevância
tanto em sua pragmática universal quanto em seu diagnóstico da modernidade.
Vamos agora esboçar de modo sumário o que o conceito significa na Teoria da Ação Comunicativa, de 1981.
Para tanto, devemos distinguir entre dois sentidos de “mundo da vida” em
Habermas: o sentido pragmático-linguístico e o sentido sociológico.
1) Mundo da vida em
sentido pragmático-linguístico
Num primeiro sentido, “mundo da vida” é um estoque de
sentidos (de crenças, critérios, valores, definições etc.) compartilhados entre
falantes (e não problematizados por eles) que serve de pano de fundo para sua
comunicação. Toda vez que os falantes problematizam algo no mundo, é preciso
que algo outro esteja não problematizado, mais ou menos como, para caminhar sem
cair, o pé que se coloca em movimento precisa do pé que está fixo no chão. Este
algo outro, não problematizado, implícito na comunicação, pode ou já ter sido
objeto de problematização anterior, caso em que agora se tornou não
problemático porque os falantes já previamente formaram um consenso reflexivo a
seu respeito, ou pode jamais ter sido problematizado, caso em que pertence ao
conjunto daquelas coisas em que os falantes acreditam de modo pré-reflexivo,
sem sequer se darem conta nem de que se trata de uma crença mantida em comum
nem de que aquilo que tal crença enuncia não é nem óbvio nem necessariamente
verdadeiro, podendo, portanto, ser objeto de uma problematização.
Por exemplo, se dois falantes discutem, cada um defendendo
uma posição contrária à do outro, sobre se o Estado deveria ou não punir
indivíduos que usam os meios de comunicação para fazer piadas ou comentários
racistas, o fato de que discutam tal coisa (isto é, de que a tornem
problemática em sua fala) já mostra que consideram muitas outras coisas como
não problemáticas. Creem que há Estados, indivíduos, meios de comunicação,
piadas, comentários e racismo; que o Estado pode punir certas coisas, que piadas
e comentários podem falar sobre certas coisas e que o racismo é uma coisa
errada; creem que certos conteúdos de piadas e comentários feitos nos meios de
comunicação poderiam ser justificativa para uma ação punitiva do Estado (apenas
divergem sobre se racismo, mesmo sendo errado, é um destes conteúdos) etc.
Todas estas últimas coisas estão implícitas na fala, não serão problematizadas
por eles, e é exatamente o fato de que tais coisas permanecem no pano de fundo
da fala, não problematizadas, que torna possível que outro elemento (o objeto
da discussão) venha para o primeiro plano e seja problematizado na discussão.
Assim, a prova de que existe o mundo da vida em sentido
pragmático-linguístico é um tipo de prova transcendental. Uma prova
transcendental é uma que parte do fato de que uma primeira coisa ou atividade
existe, mostra que, para que ela exista, é necessário que exista também uma
segunda coisa ou atividade que lhe serve de condição de possibilidade e, desta
forma, conclui pela existência da segunda coisa ou atividade pelo simples fato
de que, sem ela, a primeira não existiria. Por exemplo (para fugirmos aqui de
exemplos estritamente kantianos e conectados com o projeto criticista), do fato
de que o olho humano é capaz de perceber as cores podemos concluir que o olho
humano é capaz de distinguir frequências de raio de luz (na verdade,
frequências de pacotes de onda que as moléculas deste corpo refletem),
simplesmente porque a distinção de frequências de raio de luz é condição de
possibilidade para a percepção das cores. Assim, um argumento na forma: “se o
olho humano não fosse capaz de distinguir frequências de raio de luz, não seria
capaz de perceber cores; ora, mas é um fato que o olho humano é capaz de
distinguir cores; logo, tem que ser um fato também que o olho humano é capaz de
distinguir frequências de raio de luz” é um argumento transcendental.
Como se vê, o argumento transcendental é uma modalidade de
prova indireta, um caso em que provamos a existência de alguma coisa a partir
da existência de outra coisa para a qual aquela primeira é condição de
possibilidade. No caso do mundo da vida, que se refere a algo que está por trás
do horizonte de nossa experiência e de que não estamos, pois, inteiramente
cientes, é necessário formular o mesmo tipo de prova indireta de sua
existência, por via de um argumento transcendental. Neste caso, o argumento
toma a forma: “se não tivéssemos pontos comuns compartilhados em que nos
apoiamos numa discussão, não seria possível discutirmos um ponto em particular;
ora, mas é um fato que somos capazes de discutir pontos particulares; logo, tem
que ser um fato também que temos pontos comuns compartilhados em que nos
apoiamos numa discussão”. Estes pontos comuns compartilhados são – como veremos
adiante, a partir de um complemento deste argumento – os conteúdos do mundo da
vida em sentido pragmático-linguístico.
De certa forma, podemos dizer que o processo de
racionalização de uma cultura ocorre quando um grande número de temas sai do
horizonte não problematizado do mundo da vida e adentra o horizonte
problematizado da comunicação. Desta forma, os “pontos comuns compartilhados”
vão deixando de ser compartilhados apenas porque nunca os pusemos em questão e
vão passando a ser compartilhados porque já os pusemos em questão e já chegamos
a um consenso a seu respeito. Como o argumento transcendental exposto acima
prova apenas a necessidade da existência de pontos comuns compartilhados, mas
não faz distinção entre tais pontos serem pré-reflexivos ou reflexivos, o
argumento transcendental sozinho não prova a existência do mundo da vida. Seria
perfeitamente compatível com o argumento transcendental que mostramos a
existência exclusiva de pontos comuns compartilhados reflexivos, já
estabelecidos por consenso através da comunicação. Isso implicaria a
inexistência de qualquer mundo da vida, porque nenhum dos pontos comuns
compartilhados seria pré-reflexivo.
Por isso, a prova pelo argumento transcendental tem que ter
complemento num argumento pragmatista evolucionista. Trata-se de duas
suposições: a primeira é a suposição pragmatista de que é apenas diante de
desafios sociais práticos que os membros de uma comunidade problematizam pontos
até então compartilhados em comum; a segunda é a suposição evolucionista de
que, quanto menor é a complexidade de uma comunidade, menor é a quantidade de
desafios sociais práticos com que esta comunidade precisará se enfrentar. De
posse destas duas suposições, podemos agora dar forma final à prova da
existência do mundo da vida em sentido pragmático-linguístico. Se o argumento
transcendental provou a necessidade de pontos compartilhados em comum, podemos
agora dizer que, em sociedades pouco complexas, tais pontos terão sempre maior
probabilidade de serem pré-reflexivos, compondo, agora sim, um mundo da vida.
Conforme as sociedades se tornem mais complexas e aumente o número de desafios
sociais práticos que tornem problemáticos aqueles pontos até então mantidos em
comum de forma pré-reflexiva, é posto em movimento um processo de
racionalização do mundo da vida.
Desde já, devemos afastar uma possível conclusão
precipitada: A de que Habermas visualiza como desejável uma completa
racionalização do mundo da vida, isto é, uma completa problematização de todos
os conteúdos do mundo da vida e sua completa substituição por consensos
reflexivos. Isto é falso. Habermas não considera nem mesmo possível uma
completa racionalização deste tipo. É que, diferentemente dos iluministas
(Diderot, D’Alembert, Condorcet, Voltaire), Habermas sabe que o processo de
racionalização não acontece por ato de simples decisão racional, como, por
exemplo, a decisão de colocar em questão toda a tradição anterior, mas acontece
apenas na medida em que o mundo da vida de uma comunidade se vê concretamente
ameaçado por desafios sociais práticos a que ele não consegue responder.
Funciona, para o mundo da vida, uma espécie de princípio de inércia: ele
seguirá sempre vigente e dominante a menos que seja seriamente desafiado pela
experiência social prática. Portanto, é apenas com o crescimento da
complexidade social que se quebra a inércia do mundo da vida e se pode esperar
que este último sofra um processo de racionalização. Contudo, como não é
esperável que nenhuma situação sustentável de complexidade social torne
necessária a problematização de todos os conteúdos do mundo da vida, também não
é esperável que ocorra jamais um processo de completa racionalização. As
sociedades não são como os filósofos: Elas não problematizam as bases que lhes
têm dado sustentação a menos que sejam obrigadas a isso por verdadeiras
urgências práticas. Neste ponto, Habermas é um pragmatista evolucionista, e não
um iluminista.
Contudo, como ficou claro pelo argumento pragmatista
evolucionista, uma vez que as sociedades se tornem mais complexas, crescerão os
desafios sociais práticos que exigirão do mundo da vida um processo de
racionalização. Os pontos comuns antes compartilhados de modo pré-reflexivo
terão que ser gradualmente substituídos por pontos comuns obtidos mediante
acordo racional. Como a comunicação linguística é o principal meio através do
qual estes acordos racionais podem ser alcançados, fica claro que, quanto mais
complexas se tornem as sociedades, mais dependentes elas se tornam da
comunicação como meio de manter a integração social. É esta conclusão que faz a
ligação entre o conceito de mundo da vida em sentido pragmático-linguístico,
que abordamos até agora, e o conceito de mundo da vida em sentido sociológico,
que abordaremos em seguida.
2) Mundo da vida em
sentido sociológico
Retomemos a conclusão do argumento pragmatista
evolucionista: Quanto maior a complexidade da sociedade, maior a racionalização
a que se vê obrigado o seu mundo da vida. Para Habermas, a história das
sociedades modernas é a história do resultado do processo de intensa
racionalização do mundo da vida de sociedades tradicionais. Esta
racionalização, contudo, foi dupla: por um lado, os domínios sociais
responsáveis pela reprodução material da sociedade (economia e administração
pública) passaram por uma racionalização funcional; por outro lado, os domínios
sociais responsáveis pela reprodução simbólica da sociedade (família, arte,
ciência, religião, moral etc.) passaram por uma racionalização comunicativa.
Desta maneira, formaram-se dois domínios sociais distintos, cada um
racionalizado segundo uma lógica própria: o domínio dos sistemas (econômico e
político) e o domínio do mundo da vida – termo agora usado num segundo sentido,
o sentido sociológico.
Em sentido sociológico, o mundo da vida é um domínio social
contrastante com os sistemas funcionalizados, marcado por processos
comunicativos, cujo medium é a linguagem e cujo recurso é a solidariedade (em
Habermas, solidariedade é o sentido
comum de pertença a uma mesma comunidade experimentado pelos indivíduos, que se
veem como membros de um mesmo todo, parceiros de um mesmo projeto, dispostos a
ajustar seus planos de ação entre si e se socorrerem mutuamente). Nele
prevalece um tipo de ação que é a ação comunicativa, ou seja, o emprego da
linguagem com vista ao entendimento entre os falantes.
Do ponto de vista horizontal, o mundo da vida abarca uma
série de instituições e atividades envolvidas com a reprodução simbólica da
sociedade. Não seria possível listá-las todas, mas as principais instituições
incluem as famílias, as associações, as igrejas, os partidos etc., enquanto as
principais atividades incluem a arte, a educação, a religião, a ciência, a
técnica etc.
Do ponto de vista vertical, o mundo da vida abarca três
estruturas: cultura, sociedade e personalidade. A cultura é o nível das crenças,
valores e afetos partilhados em comum pelos membros de uma comunidade. A
sociedade é o nível das instituições de caráter mais ou menos coercitivo em que
se organizam e se realizam as atividades. Finalmente, a personalidade é o nível
das estruturas de identidade e de motivação que habilitam os indivíduos a
participarem ativamente das dinâmicas sociais.
As situações em que as dinâmicas do dinheiro (própria do
sistema econômico) e do poder (própria do sistema político) “invadem”
atividades e estruturas do mundo da vida são chamadas por Habermas de “colonizações
do mundo da vida” e são apontadas como as principais patologias a que estão
expostas as sociedades modernas. Aquilo que na Dialética do Esclarecimento (segundo, pelo menos, a interpretação
que Habermas dá a este texto) era um diagnóstico de que a razão, como um todo,
tinha uma estrutura inevitavelmente instrumental e só conseguia ser um meio de
emancipação das trevas da ignorância, da superstição e das pulsões primitivas
ao mesmo tempo em que era o meio de uma nova dominação, ainda mais cruel e
imperceptível, se converte na Teoria da
Ação Comunicativa no diagnóstico de que os domínios comunicativos da
sociedade estão constantemente expostos ao risco de serem “invadidos” ou “colonizados”
pelos domínios funcionais, patologia cujo evitamento exige uma estratégia
defensiva em que o mundo da vida ponha limites à ação dos sistemas.
Não há uma prova direta que Habermas forneça da existência
do mundo da vida sociológico. Aqui, novamente, Habermas se serve de uma prova
indireta, a qual se apresenta em duas versões, uma mais longa e outra mais
curta. A mais longa é positiva e de tipo regressivo, desta vez composta por
vários passos. A prova funciona assim: Primeiro, supõe-se que sistemas e mundo
da vida são as duas únicas configurações possíveis de domínios sociais modernos;
sendo assim, tudo que existe nas sociedades modernas e que não faça parte de um
deles, ou não seja produzido por um deles, ou não possa ser explicado a partir
de um deles, aponta para a existência e para a ação do outro. Em seguida,
coloca-se o fato da existência duradoura de sociedades no espaço e no tempo.
Deste fato, aponta-se a integração social (isto é, a coordenação dos planos de
ação e a convivência pacífica entre os indivíduos) como sua condição de
possibilidade. Logo, há um argumento transcendental que vai da existência
duradoura da sociedade para a existência da integração social. No passo
seguinte, Habermas usa um argumento causal para remontar do efeito para a sua
causa: Só poderia haver integração social numa comunidade que mantivesse
acordos de fundo de natureza simbólica. Logo, a existência da integração social
(provada pelo argumento transcendental) prova (por um argumento causal
regressivo) a existência de acordos simbólicos. Finalmente, no último elo da
cadeia, Habermas se serve de um novo argumento transcendental para mostrar que,
da existência de acordos simbólicos de fundo se deduz (como condição de
possibilidade destes acordos) a existência de um mundo simbólico em comum,
mundo simbólico este que coincide com o mundo da vida em sentido sociológico.
Uma forma mais abreviada deste argumento, que também se
encontra bastante no texto de Habermas, é regressiva e de tipo negativo, usando
apenas dois passos: da existência duradoura da sociedade se deduz
(transcendentalmente) a existência da integração social e, da existência de
apenas dois domínios sociais possíveis, os sistemas e o mundo da vida, e da impossibilidade
de que os sistemas (que não são linguísticos e são cegos para normas e valores)
sejam capazes de produzir integração social, se deduz (neste caso, por um
argumento causal regressivo por exclusão) que tal integração só pode ser
produzida pelo mundo da vida. Logo, existe o mundo da vida.
Mesmo que se aceite este argumento regressivo, seja na
versão mais longa e positiva, seja na versão mais curta e negativa, é bastante
evidente que o que o argumento prova não é a existência do mundo da vida
sociológico, mas sim apenas a existência de um mundo simbólico comum. Há uma
boa diferença entre as duas coisas. Um mundo simbólico em comum não precisaria
ser regido exclusivamente por uma lógica comunicativa, não precisaria ser
composto de cultura, sociedade e personalidade, não precisaria ser
exclusivamente linguístico nem precisaria estar associado com o recurso da
solidariedade. Todos estes elementos são atributos adicionais do conceito de
mundo da vida que não estão necessariamente presentes no conceito de mundo
simbólico em comum. Ora, como tudo que o argumento prova é a existência deste
último, pode-se dizer que não há um argumento explícito que prove que o mundo
simbólico em comum tem que ser também um mundo da vida em sentido sociológico.
Habermas se limita a descrever o mundo simbólico em comum de sociedades modernas
como tendo a forma do mundo da vida em sentido sociológico.
Parece-nos que, na Teoria
da Ação Comunicativa, Habermas acredita que o leitor possa se convencer de
que o mundo simbólico em comum é na verdade um mundo da vida em sentido
sociológico a partir do fato de que, quando descrito com os atributos deste
último, o mundo simbólico seria capaz de incorporar vários elementos da teoria
weberiana do racionalismo ocidental e da teoria marxista da reificação. Se
quisermos, poderemos considerar que aqui opera o seguinte argumento: Se devemos
considerar estas duas teorias como informativas de aspectos relevantes do
processo de racionalização, então, uma descrição do mundo simbólico que se
articule com os elementos apontados por estas teorias se torna preferível a uma
que não se articule; ora, a descrição do mundo simbólico em termos de mundo da
vida consegue articular-se com os elementos das duas teorias; logo, esta
descrição do mundo simbólico em termos de mundo da vida é preferível a outras.
Acreditamos que de fato este argumento esteja em jogo no texto de Habermas. Mas
é preciso, por amor ao rigor argumentativo, apontarmos que, mesmo que fosse
válido, este argumento provaria a preferibilidade teórica de descrever o mundo
simbólico em termos de mundo da vida, e não a existência real do mundo da vida.
Esta existência permanece não havendo argumento, nem direto nem indireto, capaz
de provar.
Comentários
Qualquer dúvida, veja também a minha postagem sobre ética e moral.
Abs
Abraços!
1) Não seria mais profícuo mostrar a fertilidade do conceito de mundo da vida sociológico para análises sociais, isto é, apontar para o que se ganha na interpretação da sociedade com este conceito ao invés de tentar provar a existência de um mundo da vida sociológico? Acho que esta segunda tentativa acaba por cair em certa ingenuidade "ontológica" (que significaria, afinal, a existência de um conceito?).
2- Será que realmente é possível separar o domínio da reprodução material da sociedade do domínio da reprodução simbólica dela? Autores caros a Habermas, como Max Weber e Theodor Adorno, muitas vezes mostram como o intercâmbio mercantil e a mentalidade do ganho formam ou influenciam diversas instâncias do mundo simbólico (tudo bem, dirás que é precisamente isto a colonização do mundo da vida, mas perguntaria, então, se seria possível ou mesmo imaginável um mundo da vida não colonizado?)?
3- Aceitar a divisão habermasiana não implica considerar impossível criticar o domínio da reprodução material "em si mesma", e não meramente no que tange a sua suposta colonização das esferas de reprodução simbólica? Por exemplo, suponhamos uma situação de extrema exploração e dominação no mercado de trabalho. Esta exploração poderia ser criticada? Como?
Abraços
Amaro.
1) Sobre fertilidade versus existência.
Bom, o que significaria dizer que o mundo da vida sociológico existe? Apenas que, nas sociedades modernas, pode-se efetivamente perceber e discernir a existência de uma esfera de reprodução simbólica cuja lógica interna é o entendimento comunicativo, e não, por exemplo, o lucro ou o poder. Não há nenhuma ingenuidade ontológica nisso, porque a existência em questão não é existência objetiva ao modo dos fatos das ciências naturais, mas é ela mesma uma existência social, que consiste na correspondência à percepção dos sujeitos e na capacidade de explicar certos fenômenos sociais a partir da perspectiva destes sujeitos.
Este tipo social de "existência", a meu ver, já corresponde a um tipo de fertilidade teórica: a fertilidade fenomenológica e explicativa. (Mas tenho a impressão de que te referias à fertilidade teórico-crítica. Se for isso, acho que um diagnóstico social não está desligado de alguma dimensão de existência real dos elementos que ele apresenta. Não consigo visualizar fertilidade teórico-crítica em conceitos da realidade social que não correspondessem a elementos que de fato existem nesta realidade.)
Essa é aquela pergunta: "Okay, Habermas, eles são domínios realmente distintos, mas isso quer dizer que eles se encontrem separados na realidade?". Acho que a crítica tem razão de ser, sim. Habermas oscila entre dois sentidos da distinção: um deles é analítico-metodológico, restringindo-se a enunciar que existem na sociedade dois domínios com lógicas distintas e fazendo à teoria social a recomendação metodológica de tentar investigar sempre seus objetivos pelo duplo ponto de vista da explicação funcional objetivante e da explicação simbólica intersubjetiva; o outro sentido é sociológico-crítico, avançando para afirmar que estes domínios não são apenas distintos, mas são (e devem em certo sentido permanecer na máxima medida possível) separados entre si na realidade social concreta.
Como se vê, o primeiro sentido é mais convincente que o segundo. Eu mesmo tendo a endossar o primeiro e questionar o segundo. O problema de abrir mão do segundo é que se fica sem ferramentas para falar de colonização e emancipação nos termos em que Habermas o faz. Admitir que os dois domínios são analiticamente distinguíveis, mas na realidade social ocorrem sempre entrelaçados e implicados parece ser perder o referencial com que se poderia considerar "indevidos" ou "patológicos" certos avanços da lógica do lucro ou do poder sobre a esfera da comunicação cotidiana. Tudo passaria a ser sempre um amálgama de funcional e simbólico e nenhuma interferência do funcional no simbólico seria mais vista como problemática.
Esse é, a meu ver, um custo que toda teoria crítica contemporânea precisa pagar por ter aberto mão de uma concepção anticapitalista de sociedade emancipada. Enquanto se tinha tal concepção, era bem claro quais forças eram de dominação e quais potenciais eram de emancipação, mas apenas porque a sociedade do capitalismo real era comparada com a sociedade capaz de realizar as promessas ideais feitas pelo próprio capitalismo. A partir do momento em que se abre mão da teoria da ideologia em sentido forte, da centralidade da reprodução material como explicativa de todos os processos sociais relevantes, de uma filosofia da história que culmina com uma teoria da revolução proletária e do uso de um telos social concreto como esquema de contraste crítico com a sociedade existente, a questão do critério crítico com que ainda se pode identificar forças anti-emancipadoras se coloca de modo muito acentuado.
Bem, se com "em si mesma" queres dizer criticar, por exemplo, o sistema capitalista pelo simples fato de que ele se baseia numa desigualdade entre propriedade privada dos meios de produção e força de trabalho assalariada, a resposta provavelmente é sim, torna esta crítica, se não impossível, muito complicada. Habermas considera o sistema capitalista como um "sistema", uma estrutura social impessoal que se desenvolveu em resposta à forte carga de complexidade das sociedades modernas. Isso, se não "naturaliza" a economia capitalista, como faz o liberalismo econômico, ao menos torna o capitalismo um tipo de "fato consumado", não apenas opaco (não inteligível) para a lógica simbólica mas também indisponível (incontrolável) para ela.
Contudo, casos como o exemplo que usaste, da super-exploração, bem como casos de instabilidade do emprego, mitigação de salários, carestia excessiva, juros absurdos etc., todos eles poderiam ser criticados a partir da ideia de colonização. Porque horas de trabalho, regime de trabalho, valor dos salários, dificuldade do crédito são elementos que fazem parte das trocas entre sistema e mundo da vida, e portanto dizem respeito aos dois, embora afetem cada um de modo e com sentido distinto. Para o sistema, são fenômenos vistos pela lógica do lucro, enquanto, para o mundo da vida, são vistos pela lógica da justiça, da liberdade e dos embaraços ao bem-estar e à felicidade.
O mesmo acontece nas trocas entre sistema político e mundo da vida, como nos casos de exercício da coerção, regimes de fiscalização, empecilhos burocráticos e cobrança de tributos. Para o sistema político, esses são fenômenos vistos pela lógico do poder (do quanto objetivos e metas serão cumpridos em maior ou menor medida), enquanto para o mundo da vida são vistos, novamente, pela lógica da justiça, da liberdade e dos embaraços ao bem-estar e à felicidade. Sendo assim, permanece havendo, sim, a possibilidade de denúncia e de crítica deste tipo de situação. Existe, por assim dizer, uma "margem de tolerância" do que o mundo da vida pode e não pode suportar da lógica dos sistemas; toda vez que esta margem é ultrapassada, o conceito de colonização pode ser invocado como ferramenta crítica de denúncia.
Quanto ao que fazer depois da denúncia, trata-se de construir "barreiras" ou "proteções" para o mundo da vida, impondo limites aos sistemas a partir da linguagem que os próprios sistemas são capazes de entender. Daí a importância de uma estrutura "poliglota" entre mundo da vida e sistemas, como é o caso do Direito. O Direito impõe limites ao sistema econômico (como salários mínimos, avisos prévios, contratação paritária entre gêneros etc.) e, caso este os ultrapasse, impõe punições e multas que o próprio sistema econômico passa a ver como riscos e gastos desnecessários e desencorajadores, recuando (ao menos naquele ponto, pois, em seguida, procurará aumentar seu lucro em algum outro ponto, talvez novamente às custas do mundo da vida, renovando a necessidade de denúncia e reação). O Direito impõe limites ao sistema político (como direitos fundamentais invioláveis, procedimentos estritos de investigação e fiscalização, justificativas e prazos para prisões etc.) e, caso este os ultrapasse, impõe punições e impedimentos administrativos que o própria sistema político passa a ver como riscos e perdas de poder desnecessárias e desencorajadoras, recuando neste ponto (embora talvez buscando outro).
Então, sim, permanece o potencial crítico de denúncia em relação aos exageros dos avanços dos sistemas sobre o mundo da vida.
1: Certo. Se a existência significa apenas que estes conceitos servem para compreender um determinado fenômeno, concordo contigo. Meu problema é com o tipo de argumento exposto no sexto e sétimo parágrafo da segunda parte de teu texto, que me parece quase-positivista, tentando apontar para a existência real de determinados conceitos ao invés de tentar mostrar apenas que eles são boas chaves de leitura para se compreender determinados fenômenos.
2: Fico em dúvida se não é um reducionismo demasiado dizer que todas as interações humanas seguem uma das duas lógicas, a funcional ou a simbólica. Para começar, há, dentro da economia, formas de operação muito distintas. Há interações que não visam o lucro, mas a subsistência ou a utilidade (penso, por exemplo, em trocas diretas em que os trocantes desejam o produto do outro – seja com ou sem mediação de dinheiro; ou mesmo a produção artesanal de mercadorias, em que o próprio trabalhador vende o produto de seu trabalho (seria absurdo dizer que ele tenta lucrar, assim como incorreto supor que ele tentará ganhar o máximo por seu produto [embora grande parte dos economistas compre uma antropologia barata que pregue isto] ou mesmo um prestador de serviços). O mesmo vale para a administração pública. Não parece excessivamente nietzschiano acreditar que ela se move unicamente por vontade de poder? E depois, nas esferas simbólicas, não estão elas também submetidas à lógica do status, poder, etc. (será que faz sentido, por exemplo, dizer que a religião se orienta por uma tentativa de entendimento, e não de dominação (e esta dominação não precisa ser uma dominação social, ela pode ser uma espécie de pacto com deus pelo qual se domina o destino)?
Manter esta dintinção, que para mim é deveras problemática, porque sem ela não haverá base para a teoria crítica é uma desculpa inaceitável para alguém que abandona um “paradigma teórico” por acreditar que ele seja aporético.
3: O problema, novamente, é ver o que pertence unicamente ao domínio econômico-funcional e não ao domínio simbólico-comunicativo. Se salários, tributos, etc. pertencem a ambos, o que restará ao meramente econômico? Se este é um conjunto vazio, para que mantê-lo?
O problema, a meu ver, é que Habermas não só abandona o projeto de fazer uma crítica anticapitalista quanto deixa até mesmo de questionar o capitalismo. Isto faz com que se considere ele não só como um “fato consumado”, como dissestes, mas que não se perceba as inúmeras diferenças entre as distintas fases dele. Assim, parece-me que Habermas tenha uma visão demasiado ingênua acerca do capitalismo, sem perceber, por exemplo, que há uma constante necessidade de expansão do lucro que faz com que a colonização do mundo da vida, para usar a linguagem habermasiana, também seja um “fato consumado”, já que o capitalismo precisa constantemente expandir-se e a sociedade complexa não pode organizar sua produção/reprodução de outro modo que não capitalista.
Quanto ao direito, é bom lembrar que ele também pode servir como instrumento de colonização do mundo da vida, não? Ele tanto pode proteger direitos contra a rapina mercantil quanto garantir a atuação do mercado mesmo que às custas do bem-estar humano.
Desculpe se me alonguei de mais. Abraços
Amaro.
1) Eu não sei bem qual a diferença entre "existência" em sentido social-explicativo e em sentido "positivista". Digo, é claro que a diferença de abordagem metodológica entre a hermenêutica, a teoria crítica e o positivismo são imensas, mas não sei se essa diferença recai sobre o conceito de "existência", a ponto de dizermos que elas não falam no mesmo sentido sobre algo "existir" no mundo social. Acho que, nos dois casos, trata-se de mostrar que a coisa em questão produz efeitos, que a suposição da sua existência nos permite explicar coisas que sem ela não explicaríamos etc. Mas acho que este assunto da "existência" já está meio esgotado na discussão, em favor dos outros dois.
O mesmo acontece com o Estado: Para ficar com apenas um exemplo, mesmo que seu propósito seja, num caso concreto, preservar o meio ambiente, o processo em que precisa se engajar para isso é um em que funciona a lógica do poder: proibição, obrigação, fiscalização, registro, cobrança, punição etc.
Mais ou menos a mesma coisa vale para o exemplo da religião. É certo que a concepção de Habermas sobre como ocorrem o diálogo e o convencimento no âmbito religioso é demasiadamente discursiva e autonomista. Isso eu admito. Mas, uma vez que se concebe, com Habermas, que o indivíduo moderno não aceita de modo não problemático a força da autoridade e da tradição, então, de fato, se precisaria conceber, correspondentemente, que cada religião só é capaz de convencer seus fieis (contra o pano de fundo do secularismo e da concorrência das outras religiões) e de mobilizá-los para a ação (contra o pano de fundo das preocupações com a vida econômica e privada) na medida em que oferece razões. Isso a obriga a engajar-se no discurso, ou seja, num processo regido pela lógica do entendimento. Desta forma, quaisquer que sejam os objetivos dos agentes religiosos (por exemplo, aumento do número de fieis, aumento da receita da igreja, aumento do poder político da igreja, salvação das almas, pacificação das relações sociais, purificação moral do mundo etc.), eles só poderão realizar estes objetivos ao se engajarem em processos discursivos com seus fieis. Que se trata de um discurso limitado (porque aceita a força da revelação e veda o questionamento de dogmas) e distorcido (porque é sempre discussão entre os que pensam igual e onde elementos como consolação, esperança, motivação podem desmpenhar indevidamente o papel de provas da verdade), creio que não haja a menor dúvida. Mas não deixa de ser um discurso, porque o tipo de processo comunicativo em que se engaja, o de convencer alguém a crer ou a agir com base em razões que devem soar convincentes para o próprio ouvinte, é o de um discurso.
Assim, funcional e comunicativo não são as únicas duas opções com que classificar os tipos de propósitos dos agentes (que, de fato, são múltiplos e potencialmente inclassificáveis em sua totalidade), e sim as únicas duas opções com que classificar os TIPOS DE PROCESSOS sociais em que os agentes precisam se engajar para realizar estes propósitos. Este é um ponto extremamente importante da explicação e que eu não teria deixado claro não fossem pelas suas perguntas.
(a) Se admissão da existência dos fenômenos de intercâmbio entre sistemas e mundo da vida (como preços, salários, tributos, votos etc.) ainda deixa espaço para algo que seja inerente e exclusivamente funcional neles. Essa pergunta é uma baita armadilha: Se a resposta for não, que nada fica de exclusivamente funcional, o crítico pode mostrar que, então, não tem por que manter esta categoria dos "sistemas" como algo autônomo; se, por outro lado, a resposta for sim, que ainda restam muitas coisas no domínio do exclusivamente funcional, o crítico pode mostrar que, então, em relação a possíveis injustiças e explorações associadas com estas mesmas coisas, a teoria não consegue ter potencial crítico. Creio que a melhor resposta seja a seguinte: Sim, restam várias coisas no domínio do exclusivamente funcional, na verdade a maioria das atividades que pertencem ao mercado e à administração pública seriam exclusivamente sistêmicas. Mas estas mesmas atividades, que são sistêmicas no caso regular, podem, em certas situações, produzir consequências sobre o mundo da vida experimentadas em termos de dominação, de injustiça ou de sofrimento; nestes casos, tornam-se relevantes para o mundo da vida, este apercebe-se da existência delas, acusando-as de seus problemas. Aqui, novamente, é pela perspectiva simbólica do mundo da vida, a qual está sendo perturbada, que estas atividades poderão ser denunciadas como problemáticas, pois, da perspectiva funcional, elas são atividades como outras quaisquer, necessárias para o funcionamento da máquina social dos sistemas como outras quaisquer. A teoria ainda manteria potencial crítico em relação a estas atividades inerentemente funcionais, toda vez que elas interfiram sobre a lógica do mundo da vida de modo tal que sejam experimentadas como distorção ou sofrimento.
(c) Se o Direito não tem, ao lado do seu papel protetor, também um papel colonizador. Tem, sim, com certeza. Aquele papel de proteger o mundo da vida contra os avanços colonizadores dos sistemas o direito só consegue ter quando associado com a democracia e esta com uma esfera pública ativa e crítica. Sem estes nexos, o direito será quase certamente apropriado como instrumento de facilitação e de institucionalização da imposição das demandas sistêmicas.
Espero para ler as tuas respostas.
Abraços
Acabei de te mandar um recado, mas na hora de envia-lo, vi que minha filha constava como usuária do google (e sairia como aquela que te enviava o recado). Aí tive de sair e entrar no tio google novamente. Agora, não sei se foi ou não foi o recado.
Bom... é que tomei a liberdade de indicar o teu blog para uma mestranda de Salvador, que acabei de conhecer na ANPOF e que está lendo Habermas. Achei que o teu texto estava muito bom e que ela poderia curti-lo tbém. Ok?!
Baraó
Ilze
Beijos!
2. A distinção entre tipos de processos e propósito dos agentes foi esclarecedora. No entanto, permaneço em dúvida em até que ponto podemos (e devemos) reduzir a pluralidade mundana a unicamente dois tipos de processos.
2.a) Não perdemos muito, no âmbito explicativo, ao ignorarmos as diferenças entre tipos de processo argumentativos que se orientam por razões e tipos de processos argumentativos que remontam à revelação? Faz sentido classificar como um mesmo tipo de processo formas de argumentação sujeitas permanentemente à revisão e alteração e formas de argumentação (se é que se possa chamar de argumentação) dogmáticas, que não aceitam o questionamento e a revisão de seus princípios, que adotam arbitrariamente um fundamento que não justificam, mas aceitam pela fé?
2.b) Mantendo a discussão no âmbito da religião, faz sentido falar da colonização do mundo da vida (neste caso a influência da lógica do lucro e do poder sobre a esfera da religião) como característica do mundo moderno? Não existiu ela desde outros tempos, talvez em medida até mais drástica que agora (penso, como exemplo, na nada corrompida e benevolente santíssima igreja católica dos tempos medievais)? Dizer que as esferas da economia,da administração e do mundo da vida estavam fundidas antes da modernidade, que elas se autonomizaram na modernidade, mas que esta autonomia não ocorreu de fato, já que as duas outras esferas seguem colonizando o mundo da vida e se interrelacionando entre si, mas que, enfim, seria bom que estas esferas se autonomizassem, e melhor ainda que não colonizassem o mundo da vida, não parece operar em um nível de abstração tamanho que pouco contribuíria para qualquer tentativa mais concreta de análise social? Não acabaria por obnubilar as especificidades da modernidade, impedindo avanços nos diagnósticos?
3. a) Certo. Mas parece-me que subjaz uma certa crença de que seria possível que os sistemas e o mundo da vida se conciliassem, ou se harmonizassem entre si. E esta crença eu acho muito problemática. Acho que há diversas situações, adotando o esquema habermasiano, em que mundo da vida e sistema (ao menos o econômico) se colidiriam entre si, em que a economia tem um imperativo de conquistar novos mercados para seguir seu processo de valorização contínua (sobre isto, falo mais no ponto b, a seguir) ao mesmo tempo em que o mundo da vida precisaria resguardar seus domínios. O problema é, nesta situação, quem vence? O mundo da vida, mesmo com uma esfera pública forte em um regime democrático, me parece não ter forças suficientes uma vez que o sistema econômico sempre pode ameaçar a própria subsistência dos membros das sociedades (e acho que, ao menos grosseiramente, alguns países da europa vivem hoje este dilema – embora, é claro, talvez seja exagero falar que possuem uma esfera pública forte). Isto é, ao se tentar impor certos limites ao mercado, ele sempre pode responder dizendo que isto gerará recessão, desemprego etc. de forma que toda medida de contenção da colonização gere resultados perversos [A meu ver, a solução para isto seria, de certo modo, fazer a colonização contrária. Impor limites ao mercado, diminuindo radicalmente sua esfera de influência, tal como ocorreu em certas fases mais radicais da social-democracia escandinava; subordinando-o, por fim, à democracia deliberativa – mas, tá certo, isto é para além de utópico.]
b) Quanto a expansão vertical e horizontal: O capital, ao menos em minha concepção bastante marxiana, reconheço, rege-se sempre pelo imperativo de sua autovalorização. Para tanto, precisa expandir constantemente o número de mercadorias produzidas e comercializadas. Isto pode ocorrer, e tem ocorrido, tanto no que chamas de expansão horizontal – o aumento do número de laticínios produzidos e vendidos, como em teu exemplo, que não sai do ramo alimentício –, quanto no que chamas de expansão vertical – pense, por exemplo, no fato de o mercado ter “invadido” o domínio dos bens culturais no final do século XIX, causando o fenômeno da indústria cultural, que só hoje atinge (espero) seu ápice. Concordo que não há necessidade intrínseca para ocorrer a expansão vertical (ela poderia ser somente horizontal, caso o domínio horizontal fosse infinitamente expansível, o que não dúvido, dado o caráter pulsional do desejo), mas acho impossível negar que a expansão vertical se deu nos últimos séculos. O fato de o mercado poder conter-se em uma expansão horizontal, portanto, permanece em um âmbito meramente hipotético, já que a expansão vertical se verifica continuamente. Assim, a pergunta recobra validade: Não seria um fato consumado, tal como o capitalismo, a colonização do mundo da vida pela lógica funcional econômica? Ela repousaria em uma esperança hipotética de que o mercado poderia conter-se em seus domínios? Esta esperança não seria no mínimo tão utópica (ou mais até) quanto o velho sonho do socialismo? Afinal, se é verdade que fracassaram todas as tentativas de socialismo não é menos verdade que fracassaram também todas as tentativas de capitalismo domesticado.
Espero não estar te importunando com estas insistências,
Abraços
Amaro.
2.a) Sobre se se perde muito ao não distinguir adequadamente entre tipos muito diferentes de discurso. Acho que, se Habermas tivesse uma teoria em que o agir comunicativo orientado para o entendimento abarcasse todos os tipos de discurso existentes no mundo da vida e fizesse a afirmação de que todos eles, na medida em que são todos discursos, se movem a partir das mesmas regras e têm as mesmas pretensões cognitivas, então, sim, a tua preocupação crítica se aplicaria. Mas Habermas considera que, do ponto de vista de uma teoria da ação, um discurso é uma interação comunicativa em que pelo menos dois falantes examinam pretensões de validade que se tornaram problemáticas e procuram se entendem sobre alguma coisa no mundo. Contudo, existe uma plêiade de discursos especializados. O discurso moral é um discurso que, para Habermas, examina normas, especialmente se certas normas são tais que os efeitos esperáveis de sua obediência para os interesses de cada um podem ser assentidos por todos os afetados. O discurso jurídico é outro tipo de discurso, um no qual o direito positivo vigente tem peso decisivo como diretriz e como limite das respostas que podem ser encontradas e que se desenvolve segundo os procedimentos e papeis concretamente estabelecidos pelas instituições democráticas do Estado de direito de uma comunidade jurídica particular. Da mesma maneira, podemos pensar no discurso religioso como um discurso que se distingue dos outros pelo papel desempenhado pela revelação como diretriz e limite das respostas que podem ser encontradas (isto o torna um discurso dogmático, mas apenas tal como o discurso jurídico também é) e pelas regras que regem quais argumentos são aceitáveis e quais consequências são inaceitáveis para uma interpretação religiosa do texto sagrado ou para uma solução religioso para problemas éticos do mundo contemporâneo. É um discurso que se desenvolve no espaço de certas restrições especiais, sem dúvida, mas continua sendo um discurso. Que estas restrições especiais são diversas da do discurso jurídico no fato de que não se impõem como racionalmente aceitáveis para todos é fato que Habermas reconhece, motivo pelo qual uma conclusão aceitável resultante de um discurso religioso permanece sempre restrita à comunidade de fé que aceita os limites e regras especiais em que aquele discurso se desenvolveu. O fato de que os resultados alcançados num discurso jurídico sejam imediatamente aplicáveis a todos de um modo que os resultados alcançados num discurso religioso não são testemunha que Habermas percebe o impacto que certas restrições e regras especiais de certas modalidades particulares de discurso têm sobre a amplitude de sujeitos para a qual eles podem pretender validade. Sendo assim, não considero que se perde muito ao considerar todos aqueles tipos de discurso sob a mesma categoria do agir comunicativo orientado ao entendimento, desde que em seguida se distinga entre as condições e regras de cada tipo de discurso e as consequências destas particularidades para a validade de seus resultados finais.
Feito este esclarecimento, é preciso fazer agora uma importante distinção: nem toda interferência de um domínio sobre outro pode ser considerado “colonização”. E essa observação eu faço a partir de uma condição e de dois critérios. A condição é que, para se fale em colonização de um domínio sobre outro, é preciso que os domínios em questão tenham se tornado autônomos. Isto é assim porque, como a colonização implica a submissão de atividades de um domínio à lógica própria de um domínio outro que lhes é estranho, não pode haver colonização entre domínios que não tenham apartado suas lógicas de modo definitivo. Isso já seria um argumento suficiente para descaracterizar as interferências dos interesses econômicos sobre a religião no medievo como “colonizações”. Ou seja, como no medievo os domínios (incluindo religião e economia) ainda têm a mesma lógica interna e levam ao mesmo resultado, nenhuma interferência de um sobre o outro alteraria questões de lógica interna. Explorando o exemplo da economia e da religião: sendo a economia uma submissão imposta por Deus do homem à dinâmica da natureza e do trabalho e modo de elevar à alma por meio de esforços e penas, enquanto a religião era a atividade pela qual Deus revela a verdade do mundo e pela qual o homem se reconecta com Ele e obtém sua salvação, então, não seria possível que a interferência de um sobre o outro alterasse a lógica interna de um deles em favor da do outro porque eram, em última instância, a mesma lógica interna: a da vontade de Deus e da salvação da alma.
(cont.)
Mas quero aprofundar a diferenciação entre as duas coisas segundo mais dois critérios. Para que a interferência de um domínio sobre outro se qualifique como uma colonização, é preciso que os agentes experimentem um tipo de estranheza, incômodo e aviltamento no modo como suas interações estão se processando exatamente pela ação colonizadora da lógica interna de um domínio alheio. Isso é o caso quando se percebe que manifestações de fé religiosa estão sendo exploradas a partir da lógica do lucro, o que ocorre em qualquer situação em que a lógica do “quanto mais eu pago, mais eu tenho” esteja prevalecendo. Esse é o tipo de experiência de estranheza, incômodo e aviltamento a partir da qual o sujeito comum diria: “a religião virou puro comércio”. No exemplo que exploraste, da interferência de interesses “econômicos” (não era bem isso, como direi adiante) sobre a religião no medievo, com compra de indulgências, compra de relíquias, compra de funções clericais, influência do poder econômico sobre decisões eclesiásticas, conivência, cumplicidade e legitimação do clero para com os abusos da exploração econômica etc., a experiência de estranheza, incômodo e aviltamento foi de fato se formando na subjetividade da cristandade, tanto assim que se tornou um dos principais combustíveis da Reforma protestante.
Porém, é preciso levar em conta ainda outro critério. No exemplo que exploraste, a influência que ocorria não era exatamente da economia sobre a religião, e sim de certos interesses privados sobre a religião. Que estes interesses privados normalmente tinham em vista o ganho econômico (talvez devêssemos dizer “enriquecimento”, e não ganho econômico, que gera a falsa impressão de ganho num arranjo econômico regular, organizado etc.), não há dúvida, mas não se trata de uma interferência que resultava apenas da marcha normal da esfera econômica sobre outro domínio. Não era por uma “expansão vertical” da economia sobre a religião que aquelas interferências ocorriam. Pelo contrário, a economia medieval (considerando o fim da Idade Média) era basicamente uma economia baseada no cultivo da terra, na pilhagem militar e, marginalmente, na exploração do comércio, nenhum dos quais, pelo menos na forma em que se encontrava à época, tinha nenhum ganho ou expansão com, por exemplo, a venda de indulgências. O que acontecia era que havia, dentro da Igreja, pessoas que queriam tirar proveito de sua posição e influência religiosa para obter enriquecimento pessoal, ou enriquecimento para a própria Igreja. Sendo assim, um último critério que precisa ser satisfeito para que falemos de colonização de um domínio sobre outro é que o avanço do domínio colonizador não ocorra por causa da decisão contingente de certos agentes individuais que veem uma oportunidade ou vantagem nisso, e sim ocorra por causa de um tipo de processo ou marcha de expansão impessoal, estrutural e cega.
Portanto, colonização não é qualquer interferência de um domínio social sobre o outro, pois é preciso que: a) os domínios em questão tenham lógicas próprias e que a interferência de um sobre o outro se verifique na forma da submissão das atividades de um deles à lógica própria do outro; b) estas interferências sejam experimentadas pelos sujeitos que interagem no domínio colonizado com estranheza, incômodo e aviltamento que denunciem uma distorção da dinâmica simbólica pela funcional; e, finalmente, c) estas interferências não sejam produto das decisões contingentes de agentes oportunistas e sim avanços resultantes da dinâmica estrutural do domínio colonizador. Por tudo isso, pode-se concluir que, de fato, o fenômeno da interferência de um domínio sobre outro não é próprio da modernidade, mas o tipo de interferência que se pode qualificar como colonização no sentido de Habermas é, sim, especificamente moderno.