Polêmicas Filosóficas: Determinismo versus Libertarismo (Mapeando os Argumentos)
(A postagem apenas situa as duas posições e lista os
argumentos que cada uma das versões delas costumam apresentar. Não ofereço
nenhuma solução para a controvérsia. Pessoalmente, devido à minha formação
kantiana, inclino-me para uma posição que está entre o determinismo da versão b
abaixo e o libertarismo da versão b abaixo, ou seja, para algum tipo de versão
dualista. Deixo, no entanto, ao juízo de cada um formar sua posição sobre os
argumentos mais aceitáveis.)
Uma das mais antigas polêmicas em Filosofia, especificamente
na Metafísica, diz respeito à concorrência entre determinismo e libertarismo.
Embora, nesta discussão, nem mesmo a definição do que cada uma das posições
implica é totalmente consensual, podemos dizer grosso modo que a tese determinista afirma que nenhum fenômeno no
mundo, nem mesmo as decisões e ações humanas, escapa à determinação por causas
anteriores, enquanto o libertarismo (libertarismo metafísico, frise-se, não confundir com o libertarismo político) afirma que decisões e ações humanas são
exceção à regra da determinação causal e são atos livres produzidos pela
vontade consciente de um ser inteligente. Vejamos em primeiro lugar o quadro
dentro do qual cada uma das duas posições faz sentido.
As teorias evolucionistas são nossa melhor explicação
científica a respeito da origem dos seres vivos. Segundo estas teorias, mediante
processos de mutação, adaptação, seleção e hereditariedade, entes orgânicos surgiram
a partir de entes inorgânicos, seres vivos complexos a partir de outros simples
e primitivos. Os seres humanos, neste caso, não seriam exceção: Eles se
desenvolveram a partir de seres mais simples e primitivos e suas capacidades
excepcionais, inclusive raciocínio abstrato, linguagem, disposição artística e
senso de humor, podem ser explicadas a partir da mesma dinâmica de mutação,
adaptação, seleção e hereditariedade que explicam o surgimento dos atributos de
todos os outros seres vivos. Seria, portanto, muito estranho que seres gerados
a partir de processos inteiramente governados por leis causais da natureza
gozassem, apesar disso, do status de serem seres livres, no sentido de capazes
de tomar decisões e iniciar ações que derivam de sua vontade livre, e não da
força causal de causas antecedentes. Assim, a tese da liberdade parece ser
contrária à nossa melhor explicação científica a respeito de nós mesmos.
Por outro lado, a experiência cotidiana, tal como é
vivenciada por nós enquanto sujeitos, parece testemunhar que tomamos certas
decisões que poderíamos não ter tomado e que iniciamos certas ações que
poderíamos não ter iniciado. Nossas ideias de imputabilidade, responsabilidade,
culpa e mérito estão diretamente ligadas à convicção de que somos capazes de
escolher livremente e de que, ao menos em certas situações, nada nos obrigou a
decidir ou agir como fizemos exceto um ato de nossa própria escolha. É como
base naquela convicção que fazemos distinção entre um ato acidental e um ato
intencional, entre um ato livre e um ato coagido, entre um ato voluntário e um
ato involuntário etc., e admitir que tal convicção fosse simplesmente um engano
não apenas nos colocaria diante de um mundo puramente causal estranho à nossa
experiência cotidiana como também obrigaria à reformulação de todo o nosso
vocabulário metafísico de intencionalidade para falarmos de nós mesmos e para
julgarmos moralmente sobre decisões e ações passadas e futuras. Assim, a tese
do determinismo parece ser contrária à melhor compreensão e descrição de nossa
experiência cotidiana.
Temos, então, uma oposição entre objetivo e subjetivo, entre
uma explicação factual e uma descrição fenomenológica, entre o que parece ser
mais conforme nossa melhor explicação científica e o que parece ser a melhor
descrição de nossa experiência cotidiana. Ao determinista resta a tarefa de
mostrar ou que (a) o libertarismo não é a melhor descrição de nossa experiência
cotidiana, ou que (b) é a melhor descrição mas não impede que o determinismo
seja verdadeiro, ou que (c) é a melhor descrição mas é mesmo assim falso. Já ao
libertarista resta mostrar ou que (a) o determinismo não se segue de nossa
melhor explicação científica, ou que (b) se segue, mas não impede que o
libertarismo seja verdadeiro, ou que (c) se segue, mas é mesmo assim falso.
O determinista pode argumentar dos seguintes modos:
(a)
A concepção segundo a qual, para que sejamos
responsáveis por nossas decisões e ações é preciso que elas tenham sido livres,
no sentido de isentas de determinação causal, é falsa. Nas ações intencionais,
a ação é determinada pela decisão anterior e a decisão é determinada por disposições
e circunstâncias. A ação não é livre, porque é causalmente determinada pela
decisão; a decisão também não é livre, porque é causalmente determinada pelas
disposições e circunstâncias. Isso não impede que eu seja responsável pelas
minhas decisões e ações, bastando para isso que as minhas ações tenham
resultado das minhas decisões e que as minhas decisões tenham resultado das
minhas disposições e circunstâncias. Neste caso, uma decisão ou ação, para
gerar responsabilidade, não tem que ter sido livre, mas tem apenas que ter sido
minha, ou seja, não coagida por uma força ou vontade externa. O libertarismo
não é necessário para explicar a responsabilidade. (Nesta versão, o
determinismo dá conta de explicar a responsabilidade.)
(b)
O libertarismo é necessário para explicar a
responsabilidade, mas esta é uma necessidade prática, e não teórica. Em termos
de nossas práticas cotidianas e de como elas funcionam, é necessário assumir
que temos liberdade e que tomamos decisões e iniciamos ações livremente. Sem
isso, de fato seríamos incapazes de distinguir entre atos intencionais ou não,
voluntários ou não etc. Contudo, não podemos confundir esta pressuposição
prática com uma verdade teórica. No que se refere, não a como precisamos
assumir que as coisas são para algum objetivo prático, mas a como as coisas
realmente são, somos simplesmente obrigados a reconhecer que o libertarismo não
tem lugar nos fatos do mundo. O libertarismo é uma ficção prática, necessária para
o jogo de linguagem moral e jurídico, mas desnecessária para qualquer
explicação científica séria da realidade humana. (Nesta versão, o determinismo
não dá conta de explicar a responsabilidade, mas, como esta é apenas uma ficção
necessária no domínio prático, no domínio teórico o determinismo pode valer sem
problemas.)
(c)
O libertarismo é necessário para explicar a
responsabilidade, o que não é necessário é nenhuma noção de responsabilidade. O
jogo de linguagem moral e jurídico baseado na responsabilidade é simplesmente
um erro que deveríamos abandonar. Não há sujeitos responsáveis, nem decisões e
ações intencionais e voluntárias, o que há é simplesmente uma cadeia de causas
e efeitos naturais da qual o universo humano faz parte na mesma medida em que
todos os outros domínios da natureza. Assim como não faz sentido falar de
decisões e ações intencionais de astros celestes ou de bactérias, também não
faz sentido falar em decisões e ações intencionais para seres humanos. (Nesta
versão, o determinismo não dá conta de explicar a responsabilidade, mas isso
não é problemático para o determinismo, e sim para a responsabilidade, que
deveria ser completamente abandonada enquanto noção racionalmente sustentável.)
Já o libertarista poderia argumentar dos seguintes modos:
(a)
Não há nada de incompatível entre o libertarismo
e nossa melhor explicação científica sobre a origem dos seres vivos. Pois é
perfeitamente possível e aceitável que, no curso do processo evolutivo, certa
classe de seres vivos superiores tenha desenvolvido uma habilidade ímpar e de
enorme potencial adaptativo: a habilidade de tomar decisões livres e iniciar
ações livres. Tal habilidade requer um nível tal de desenvolvimento neuromotor
que é compreensível que tenha se manifestado apenas nos seres humanos. (Nesta
versão, o libertarismo é compatível com a melhor explicação científica.)
(b)
O libertarismo é, de fato, incompatível ou
dificilmente compatível com a melhor explicação científica sobre a origem dos
seres vivos, mas isto não é um problema porque a ciência tem um modo de acesso
à realidade e de explicação dos fenômenos que é essencialmente objetivista e
externalista, não sendo jamais capaz de dar conta dos fenômenos da experiência
cotidiana tais como vivenciados pelo sujeito. Sendo assim, a ciência não tem um
modo de cognição que abarque a totalidade do real, restando uma porção do real
que só pode ser acessada mediante uma descrição fenomenológica que seja
subjetivista e internalista. (Nesta versão, o libertarismo não é compatível com
a melhor explicação científica, mas isso não é um problema porque a ciência não
pode reclamar primazia cognitiva sobre a totalidade do real.)
(c)
O libertarismo é, de fato, incompatível ou
dificilmente compatível com a melhor explicação científica sobre a origem dos
seres vivos, mas isto não é um problema porque esta explicação científica é
extremamente problemática e vinculada a uma noção de determinismo natural que
não pode sobreviver à inspeção crítica. A própria explicação dos fenômenos naturais
não pode apelar à tese do determinismo causal, tendo que servir-se, em vez
disso, de modelos de probabilidade ou de implicação hipotética. Sendo assim, a
ideia de uma explicação inteiramente causal teria que ser revista até mesmo
para as ciências naturais, sendo antes um mito científico que um fato
comprovado satisfatoriamente. (Nesta versão, o libertarismo não é compatível
com a melhor explicação científica, mas esta, na medida em que se baseia no
determinismo causal, precisaria ser revista e reformada.)
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