Tirar "Deus seja louvado" das notas de Real: Minha argumentação, um esclarecimento histórico e um convite à reflexão para os cristãos
RETIRAR a referência a Deus das notas de real é uma reivindicação correta por três motivos, os quais deveriam ser óbvios, mas infelizmente não são:
1. Argumento da neutralidade: Num Estado laico, não pode haver referências em seus símbolos nacionais que tomem partido por uma crença religiosa em detrimento das outras. A moeda é um destes símbolos nacionais. Logo, na moeda não pode haver referência a um Deus para ser louvado.
2. Argumento do pluralismo: Num Estado laico, se se obriga os partidários de todas as crenças religiosas a usarem a mesma moeda, a contrapartida desta obrigação é que esta moeda não pode favorecer a crença de alguns de seus usuários em detrimento de outros. Nem todos acreditam num Deus para ser louvado, logo, não pode haver referência a ele.
3. Argumento da liberdade religiosa: Uma crença religiosa pode reivindicar uso de espaços ou objetos públicos se for para dar realização a elementos relevantes de seu culto e não produzir prejuízos graves aos partidários de outras crenças religiosas que são coproprietários daqueles espaços e objetos. É o caso para usar uma rua ou um rio para uma procissão, mas não é o caso para usar a frase numa moeda, pois isso nem realiza nem impede o culto monoteísta, ou seja, nada tem que ver com o culto religioso em si mesmo.
Estas três já seriam boas razões sobre por que a frase "Deus seja louvado" não deveria figurar nas cédulas de real e até gostaria de encerrar esta opinião por aqui. Contudo, duas outras observações se fazem necessário.
A) Aos que podem ter visto por aí a alegação de que a imagem da República com coroa de louros, que não está sendo questionada, pertence à Franco-Maçonaria e é de cunho religioso: Primeiro, o símbolo de fato chegou ao Brasil por influência da revolução francesa e da influência da Franco-Maçonaria na Proclamação da República. Segundo: No entanto, o símbolo não é maçom: é romano, a imagem da deusa República representada com a coroa de louros que apenas os grandes esportistas e generais ganhavam após sua vitória. É, assim, uma referência à vitória da República contra algum regime monárquico ou ditatorial que a detinha ou ameaçava. Terceiro: Mesmo em Roma, o teor do símbolo não era religioso, e sim político. A República era uma "Deusa" no sentido do paganismo tardio, isto é, uma ideia considerada divina porque perfeita e que pertencia mais ao reino dos Deuses do que dos homens. Não havia templo nem culto à República como havia a Vênus, Minerva ou Diana. A atribuição a ela do status de Deusa era apenas honorária. Quarto: O argumento não consegue distinguir entre religião e simbologia secular, pois a Deusa República, assim como a Deusa Justiça em frente ao STF, são referência da cultura geral clássica do Ocidente, e não concessões a uma religião específica (no caso, ao extinto paganismo romano).
B) Aos amigos cristãos que sentem a retirada da frase "Deus seja louvado" das cédulas de real como uma perda ou até mesmo como uma ofensa à sua religião, gostaria de propor a seguinte reflexão adicional, do ponto de vista do próprio cristianismo. Não é verdade que o Cristo disse, em Matheus 22:21, que era para dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus? E não é verdade que ele também disse, em Matheus 19:24, que era mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico adentrar o reino dos céus? E não é verdade que, logo antes disso, em Matheus 19:21, o Cristo aconselhou o jovem que queria ser moralmente perfeito a vender seus bens, dá-los aos pobres e depois segui-lo? E não disse ele, em Matheus 6:19-20, para acumularmos tesouros não na terra, e sim nos céus, onde a traça e a ferrugem não os comem e onde o ladrão não os pode vir roubar? E, mais adiante, em Matheus 6:24, não diz ele que não se pode servir a dois senhores, a saber, a Deus e a Mamom (as riquezas)? E, durante o episódio da expulsão dos vendilhões do templo, não disse o Cristo, em 21:13, que a casa dele seria chamada casa de oração, mas eles a tinham tornado um covil de ladrões?
Agora pergunto: Em todas essas passagens, o fundador do cristianismo não teria deixado bem claro que era para separar o nome de Deus das coisas ligadas ao dinheiro e às riquezas deste mundo? E, se é assim, não seria antes um favor que se faria ao cristianismo desassociar o nome de Deus das moedas do dinheiro que serve a Mamom? Não ficaria o Cristo revoltado em ver o nome de Deus estampado em cédulas do papel que movimenta o vil metal? Não seria ele mesmo, se pudesse, um eloquente amicus curiae do MPF nesta ação? Não deveria ser esta a posição de todas as Igrejas cristãs que têm conhecimento da mensagem do Cristo? E, se não é, se, ao contrário, elas insistem em querer manter a referência nas notas do dinheiro mundano, o fazem por verdadeiro respeito à sua religião, ou puro amor a se verem prestigiadas ali onde só deveria estar estampado o rosto de César?
Faço as perguntas para convidá-los a pensar a respeito, antes de se sentirem ofendidos com o que não apenas é a medida mais coerente com o caráter laico do Estado, mas é também, talvez, a medida mais respeitosa com o nome do Deus em que vocês acreditam.
Comentários
E como será em outros países? Sabemos que os Estados Unidos possuem o famoso "In God we trust", que por sinal é menos enfático do que a nossa legenda, porque é uma declaração, ao passo que "Deus seja louvado" é uma expressão no modo imperativo. Deixa clara a concepção de que todas as pessoas devem louvar a Deus - o que é incômodo mesmo para mim, que tenho religião, sou cristão, mas não sou dado a manifestações ostensivas de fé.
Penso que se a intenção fosse mandar as pessoas louvarem a Deus na intimidade de seus lares, no recôndito de suas almas, não seria preciso fazê-lo tão ostensivamente.
É de se esperar, sem dúvida, reações no último grau de fúria, vindas de todos os cantos, inclusive do cidadão comum. Por isso mesmo é importante estimular o debate fraterno.
Sobre a necessidade do debate fraterno, nenhuma dúvida. é necessário sempre! Abraço!
Posso conviver com os símbolos religiosos, mas me ponho no lugar dos outros. Deve ser difícil para uma testemunha de Jeová, p. ex., ter sua pretensão julgada por um juiz que, por sua religião, poderia apreciar a sua causa por má vontade (abstraindo, aqui, se a pretensão é ou não procedente). Ou um judeu ou, principalmente, um afrodescendente, alvo dos maiores preconceitos.
Provavelmente, o fato de ser espírita e também ter sofrido preconceitos por isso me leva a ter alguma empatia com os que se sentem discriminados, além de rechaçar o poderio declarado conferido à Igreja Católica, que é a grande e quase única beneficiária dessa glorificação institucional. Isso me parece um absurdo. Eu, p. ex., me recuso a usar a expressão "autoridades religiosas", porque só reconheço autoridades civis e militares. Para os religiosos, a palavra autoridade deve ser empregada no sentido lato, não no do direito público. Repugna-me que, no protocolo oficial e regulamentado por decreto do poder público federal, membros da Igreja tenham assento obrigatório em eventos oficiais, inclusive com precedência sobre verdadeiras autoridades. É o abuso do poder que me revolta.
Afora isso, eu pessoalmente - e a maioria dos espíritas, penso - não dou a mínima se me pedem para jurar em nome de Deus antes de um depoimento. Mas se colocam um cidadão para fora de uma Câmara Municipal porque ele se recusou a ficar de pé para ouvir a leitura da Bíblia (fato verídico ocorrido há poucos dias), aí tenho vontade de cobrar a exoneração sumária do infeliz que teve essa ideia.
No mais, centraste teus argumentos a respeito dos símbolos e referências religiosas no modo como as pessoas se sentem, naquilo que as faz se sentirem incomodadas, agredidas, discriminadas. Deste a ele um fundamento subjetivo implícito: Para discutirmos sobre se devem ou não ser mantidos, deveríamos levar em conta se as pessoas, das diversas religiões, se sentem ou não violadas por eles. Não digo que seja o fundamento que defendes que adotemos, mas, na medida em que, nos teus argumentos, acentuaste o que te deixa ou não te deixa incomodado, penso que pelo menos tenhas apontado o fundamento subjetivo como relevante para a discussão. Este fundamento subjetivo, para mim, é, além de pouco prático (como ter certeza do incômodo do outro? basta que uma pessoa se sinta incomodada pelo símbolo ou referência, ou precisam ser muitos? quão forte tem que ser o incômodo para restringir a liberdade do outro de usar o símbolo ou referência? etc.), uma compreensão incompleta do problema.
(cont.)
Para mim, o motivo real é que, numa República, o poder político precisa se mostrar ao cidadão como independente do poder social. Poder social é o poder produzido por nossas relações sociais no espaço privados. É o poder do parente sobre o parente, do amigo sobre o amigo, do torcedor do mesmo time sobre o outro, do que tem mais riqueza ou prestígio sobre o que não tem, do membro do mesmo partido sobre outro, do fiel da mesma religião sobre a outra etc. Enquanto somos dependentes do poder social para as coisas, somos sempre todos desiguais, pois podemos estar sempre quer do lado favorável quer do desfavorável da balança do poder social, e somos sempre tratados pelo que somos como indivíduos, e não como cidadãos. O que o poder político faz, numa República, é fundar entre os homens um novo tipo de relação, uma em que somos todos iguais perante a Constituição e serem tratados como iguais participantes da soberania. Para isso, o poder político precisa, numa República, romper (e tornar bem explícita esta sua ruptura) com o poder social pré-político, tornar o espaço e a coisa pública a mais isenta possível de poder social e não permitir que este, com sua sempre intensa pressão para retomar voz e influência sobre o político, invada de novo o espaço e a coisa pública para fazer deles extensões de seu domínio privado.
Para mim, não é uma questão de como as pessoas se sentem, porque muitas delas estão tão acostumadas a viver num mundo que as relações são todas privadas e repletas de poder social, tão acostumadas a serem bem tratadas ou mal tratadas conforme o poder social esteja em seu favor ou desfavor, que podem não se sentir ofendidas pela presença de símbolos e referências ao poder social no espaço e na coisa pública, podem, ao contrário, se sentirem inclusive melhor, mais à vontade, mais bem vindas, mais acolhidas na integralidade de sua pessoa, em vez de apenas em sua cidadania. Mas, mesmo que se sintam assim, trata-se de um equívoco e de uma perversão da ideia mesma de República, trata-se da traição da promessa de que haveria um espaço e uma coisa pública onde ninguém precisaria desejar nem temer a influência do poder social, porque ali seríamos todos iguais em direitos e obrigações.
É, na verdade, por causa deste fundamento que sou veementemente contra símbolos e referências religiosas no espaço e na coisa pública. A neutralidade em relação não apenas à religião, mas a qualquer manifestação do poder social, é o que torna forte a ideia de uma República em que nos relacionamos uns com os outros e em que somos todos tratados a partir exclusivamente de nossa condição de cidadãos.
1. alguns devem estar "acostumados" a estes símbolos. Coloquei acostumados entre aspas, para fazer referência à naturalização da cultura dominante pelo assimilacionismo;
2. por óbvio que a representação da religião de um grupo na coisa pública viola o ideal de democracia que orienta o estado brasileiro atual. Ora, se o estado é democrático e de direito, tudo o que é ligado ao direito tem que ser ao máximo democrático. A ação do MPF, a meu ver, tem por objeto exponencializar a impessoalidade e democratização do estado.
3. qualquer referência religiosa - pagã ou cristã - sempre irá ferir, no sentido de que se impõe uma versão da história para outras, o sentimento religioso ou ateu de uns ou de outros.
Voltando ao argumento da semiótica, porém, sem grandes incursões teóricas: os símbolos e signos são carregados de significados. É neste ponto que julgo importante, independente de construções subjetivas, pensar nas referências aos símbolos da religião católica, ou de qualquer outra, na moeda ou qualquer outra manifestação oficial do estado. Laicidade envolve, a meu ver, a eliminação dessa espécie de violência simbólica (para fazer referência a Bourdieu) que os símbolos carregam. Seguramente, se partirmos da semiótica (que é ciência e, portanto, mais analítica e menos utilitarista do que preferências individuais como a do Yúdice), podemos pensar que a presença desses símbolos/signos se incompatibilizam com o princípio do pluralismo, que se desdobra na indispensabilidade de um estado laico. Ora, o Cristo pendendo na cruz à entrada dos órgãos públicos não tem nada de natural; tudo de antropológico. Agora, quanto à Deusa da justiça, por óbvio que não ostenta o mesmo significado para nós do que os símbolos cristãos. É disto que penso estar falando: símbolos, significante e significado.
Somos um estado deísta, conforme nossa própria constituição, no preambulo, deixa exposto. ''Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.''. Ou seja, a própria CF estabeleceu a crença de Deus.
Assim, não entendo que a frase seja ilegal, mas também não é obrigatória. Não acho que sua manutenção ou removida configurem ofensa a ordem jurídica ou social. Trata-se de um costume ocidental.
Minha opinião acerca do assunto é menos no sentido de dever, ou não, remover, e mais na analise dessa guerra contra ícones religiosos em geral. Meio que uma guerra à religião. Isso, mesmo eu sendo buddista, me assusta. Daqui a pouco vão tirar até o cristo redentor.
1) Preâmbulo não é norma constitucional, é declaração de intenções do constituinte. A Constituição não "estabeleceu" nada disso em termos de norma positiva. Do contrário, os agnósticos e ateus teriam uma posição religiosa contrária à oficial, o que não é o caso. Todas as posições religiosas (inclusive o agnosticismo e o ateísmo) são bem-vindas, protegidas e toleradas, mas, para isso, é preciso que as instituições e símbolos do Estado mantenham equidistância entre elas. Esta equidistância exige neutralidade.
2) Não há "guerra contra símbolos religiosos", e sim uma guerra contra a associação das coisas do Estado a certas posições religiosas em detrimento de outras igualmente legítimas.
1)precisamos saber qual é o índice de suicídio entre membros e funcionários do MPF;
2)precisamos institucionalizar medidas para reduzir ou eliminar o tendencial comportamento suicida do grupo referido acima.
Por que? Porque se é para fazer justiça, é necessário (por que não, obrigatório?) eliminar todos os feriados religiosos do calendário do MPF, uma vez que o órgão que exige aplicação do Estado Laico como princípio fundamental, deve e tem o dever de ser o primeiro a eximir-se de gozar de dias "de folga" ou que legalmente não tenham expediente administrativo. Se não é Natal, é o que? Assim, o MPF dá um tiro no próprio pé e deve arcar com os prejuízos... "Deus seja louvado" é referência cultural e transcende religiões, não devendo ser questionada sequer por ateus, uma vez que esse é o que crê que "Deus" não existe. Mesmo para os politeístas, os dizeres não passam de mera declaração cultural, e não é um imperativo religioso.
Cumpre, sim, já que há questionamentos quanto ao Estado Laico, descobrir-se quem, quando e por quê essa expressão passou a ser impressa nas cédulas de moeda nacional, a fim de balizarmos qual o alcance político e financeiro imposto por aquela expressão.