Regras Jurídicas e Sentido Literal

Pode-se dizer que uma regra jurídica tem um sentido literal? Se se pode, o que isso quer dizer? Como se determina o sentido literal de uma regra? Tal sentido depende do legislador, da regra, do intérprete ou da comunidade? Muda com o tempo ou é sempre o mesmo? Pode ser determinado em abstrato ou apenas em vista do caso concreto? Estas são algumas perguntas para as quais esta postagem pretende fornecer respostas preliminares, em linguagem acessível e de maneira introdutória, para uso de estudantes, professores e profissionais do direito. Para todos que queiram se aprofundar na questão, fornecerei uma lista de fontes ao fim da postagem [esta parte ainda falta fazer, mais tarde a completarei], com autores que concordam com minha posição e outros que a rejeitam veementemente.

Pretendo defender uma versão do realismo semântico, isto é, da posição segundo a qual um texto tem um sentido literal, entendido como objetivo e metacontextual. A minha posição é bastante intuitiva, mas frequentemente mal compreendida e mal aplicada. Por isso, é a mais comum entre leigos e a mais controversa entre especialistas. Para a pessoa comum, é quase óbvio que um texto completo e bem estruturado tem que ter um sentido que depende apenas dele mesmo, um sentido objetivo metacontextual. Para o especialista, especialmente se influenciado pela hermenêutica filosófica, pelo pós-estruturalismo, pela psicanálise, pelo pós-modernismo e pelo pragmatismo, trata-se de uma verdadeiro escândalo teórico. Um século e meio de discussões linguísticas e filosóficas colocou a maioria dos estudiosos no campo oposto ao da minha tese. Por aí se calcula o tamanho do esforço que precisarei fazer e da briga que estou comprando com esta postagem.

Ao longo da postagem, mostrarei erros que levam os especialistas a rejeitarem a tese do sentido literal. Desde já, quero deixar o leitor advertido contra alguns deles. Defendo que textos em geral, e regras jurídicas em especial, têm sentido literal, isto é, um sentido objetivo metacontextual. Isto não se confunde com a tese de que tal sentido é sempre fácil de determinar, mas implica que, se o texto em questão é completo e bem estruturado, então, é possível determinar seu sentido literal. Também não se confunde com a tese de que o sentido literal é sempre o mais apropriado para interpretar um texto. Uma metáfora e uma ironia, por exemplo, devem ser entendidas num sentido diverso do literal, mas, para que funcionem como o tipo de figuras de linguagem que são, elas precisam ter um sentido literal, mesmo que um intérprete experiente e sensível não recomendasse adotá-lo como sentido final. Por fim, minha tese tampouco se confunde com a de que o sentido literal é sempre mais relevante que os outros sentidos possíveis, embora defenda que os outros sentidos de um texto são sempre derivados ou parasitários de seu sentido literal.

Começo determinando o que é sentido literal em geral e o que seria o sentido literal de uma regra, se houver um. Esta questão não se confunde com a de se devemos ou não considerar que regras têm sentido literal. Temos que primeiro determinar o que é a coisa pela qual estamos procurando para só depois dizermos se tal coisa se encontra ou não nas regras. É pelo próprio conceito de sentido literal, então, que devemos começar. Sentido literal, do modo como usarei nesta postagem, é um sentido primário, objetivo e metacontextual que um texto tem em razão apenas de seu conteúdo, estrutura e forma de enunciação. Seu conteúdo são os termos (explícitos e implícitos) que ele contém, sua estrutura é a ordem destes termos e a relação entre eles e sua forma de enunciação é sua pretensão de afirmar, negar, perguntar, prometer, ameaçar etc. (o que em linguagem técnica chamaríamos de “sentido ilocucionário”). Assim, “Pedro ama Maria” e “Pedro ama Lúcia” são distintos em conteúdo, “Pedro ama Maria” e “Maria ama Pedro” são distintos em estrutura, e “Pedro ama Maria” e “Pedro ama Maria?” são distintos em forma de enunciação.

Como eu já disse, a maioria dos especialistas não acredita em sentido literal, ou, para ser mais preciso, não acredita que textos tenham sentido literal. Para eles, o sentido de um texto tem sempre a ver com o contexto em que foi enunciado, com as intenções do autor, com as pretensões do intérprete, com a situação a que será aplicado, com os interesses em jogo, com as escolhas feitas, com as práticas vigentes etc. Estas várias posições têm em comum o fato de que endossam o antirrealismo semântico: o sentido de um texto é sempre dependente de outra coisa que não ele mesmo. O sentido de um texto é sempre externo, é sempre relativo a uma instância não-textual. Permitam-me formular um exemplo que servirá de teste de se você endossa ou não o antirrealismo semântico. Imaginemos a seguinte regra, R1, encontrada em um regulamento de concurso de monografias em Direito:

R1: Cada trabalho será avaliado por uma comissão de três juízes, que o considerarão apto ou não apto. Todo trabalho que obtiver três juízos positivos estará classificado para a segunda fase.

Agora imaginemos que você acaba de ler R1 e alguém lhe pergunta: Que condição esta regra estabelece para que um trabalho seja classificado para a segunda fase? Se você acredita que você pode dar uma resposta objetiva a esta pergunta (provavelmente esta: “ser avaliado por uma comissão de três juízes e obter três juízos positivos”) mesmo sem conhecer o contexto e a prática do concurso, sem conhecer os propósitos e os critérios da avaliação, sem conhecer as intenções dos que redigiram a regra e sem ser influenciado pelos seus juízos e interesses particulares, então, você acredita em sentido literal. Por consequência, pelo menos em relação a esta regra, você não endossa o antirrealismo semântico. Se endossasse, teria que dizer que não, que você não pode dar uma resposta objetiva e metacontextual àquela pergunta. Teria que dizer que, mesmo depois de ler R1, você não é capaz de dizer que condição ela estabelece para que um trabalho passe à segunda fase. Teria que dizer, em resumo, que, dado apenas o texto de R1, sem relação nem contexto, ele pode significar qualquer coisa.

No exemplo que dei, o antirrealismo semântico parece uma posição bem contraintuitiva. Quem, em sã consciência, diria que R1, sem relação nem contexto, não significa nada, ou pode significar qualquer coisa? Não é evidente que R1 significa que, para passar à segunda fase, o trabalho precisa ser avaliado por uma comissão de três juízes e obter três juízos positivos? E, neste caso, não é evidente que R1 tem este sentido literal? Bom, infelizmente, a defesa do realismo semântico não é assim tão simples. Boa parte dos antirrealistas diria não que, depois de ler R1, você não é capaz de responder que condição R1 estabelece para que um trabalho seja classificado para a segunda fase, e sim que você é capaz de responder isto apenas porque possui uma precompreensão do que significam concursos, fases, monografias, juízes e pareceres, de como funcionam os concursos de monografia e do papel que fases e pareceres desempenham num concurso. Estivesse você privado destas precompreensões, então, aí sim, o texto de R1 não faria qualquer sentido e poderia, de fato, significar qualquer coisa.

Meu argumento contra esta objeção é o seguinte. De fato, R1 é um texto que fala de concursos, fases, juízes e pareceres de modo bastante familiar para todos que sabemos que estas coisas existem e como elas geralmente funcionam. Podemos praticamente visualizar a que R1 está se referindo e como ela seria aplicada. Defenderei, no entanto, que tudo isto é o que torna R1 razoável, mas não inteligível. Comparemos R1 com outra regra, R2, relativa a um universo bem distinto do que nos é familiar:

R2: Cada poema será avaliado por uma comissão de três suspiros, que o soprarão azul ou amarelo. Todo poema que obtiver três sopros azuis será dissolvido na forma de arco-íris.

Agora imaginemos que você acabou de ler R2 e alguém lhe pergunta: Qual é a condição que R2 estabelece para que um poema seja dissolvido na forma de arco-íris? Ora, segundo o que proponho, a resposta, objetiva e metacontextual, seria: ser avaliado por uma comissão de três suspiros e obter três sopros azuis. Podemos responder isto embora não saibamos como é possível um poema ser avaliado por suspiros, nem como é possível soprar algo azul ou amarelo, nem dissolver-se na forma de arco-íris. Se o antirrealismo semântico tivesse razão, então, agora que a regra fala de uma prática de que não participamos e de referências que não nos são familiares, teríamos que ser incapazes de responder àquela pergunta, porque R2 teria que não significar nada ou poder significar qualquer coisa. Não é, contudo, o que acontece. Na verdade, você tenderia a ler R2 e dizer dela que ela é uma regra estranha, quase incompreensível. Mas agora, ao julgá-la incompreensível, você não quer dizer que ela não tem um sentido, e sim que o sentido que ela tem, e que você consegue captar, não é razoável segundo as práticas e referências que você conhece. Você diria que R2 é algo assim como uma regra do País das Maravilhas de Lewis Carrol: exótica, confusa e insana. Mas todas estas expressões de desaprovação não seriam dirigidas a uma regra cujo conteúdo é vazio, e sim a uma regra cujo conteúdo é determinado – e apenas porque é determinado é que pode ser julgado exótico, confuso e insano.

Um crítico antirrealista poderia colocar em questão se você havia de fato compreendido R2. O crítico diria que, tivesse você compreendido R2, então, teria que saber em que casos R2 foi cumprida ou não. Se você dissesse que R2 teria sido cumprida toda vez que um poema só fosse dissolvido na forma de arco-íris depois de ter sido julgado por uma comissão de três suspiros e ter obtido três sopros azuis, o crítico não ficaria satisfeito. Ele exigiria que você soubesse como estas coisas se processam, que fosse capaz de praticamente visualizá-las de modo tal que pudesse julgar se ocorreram de fato ou não num caso concreto. Mas isto não passa de um mal-entendido. Você pode entender perfeitamente o que significa dizer que Marty McFly viajou no tempo do ano de 1985 para o ano de 1955 sem, no entanto, visualizar como isso seria possível nem de que modo poderia reconhecer que este foi o caso se de fato ocorresse. Fosse aceitável a exigência do antirrealista, então, não poderíamos dizer que a literatura fantástica e surrealista nos confunde e perturba, porque, para produzir este efeito em nós, ela teria que ter um conteúdo determinado, a saber, um que confunde e perturba. Mas um conteúdo que confunde e perturba não é claramente visualizável em termos concretos, o que, segundo o crítico, implica que não entendemos aquele conteúdo. Mas um conteúdo que não entendemos não pode nos confundir nem nos perturbar, de modo que, como é fato que o conteúdo veiculado por aquele tipo de literatura consegue nos confundir e nos perturbar, teríamos que admitir que o entendemos.

O crítico antirrealista se engana porque confunde dois sentidos de compreender: captar o sentido de um texto, que é uma coisa, e enquadrar este sentido numa visão de mundo razoável, que é outra coisa. Gostaria de mostrar como este equívoco está na raiz da falsa identificação entre compreender e aplicar, que Gadamer defende em Verdade e Método. Infelizmente, isto fugiria aos propósitos introdutórios desta postagem. Seria preciso mostrar que, com o conceito de Dasein, Heidegger havia abandonado a ideia de um sujeito que conhece um objeto em favor da ideia de um ente que se encontra sempre já em meio às coisas, envolvido com elas numa relação de imediatez e familiaridade mundana que se renova na confecção de seu próprio ser no mundo. Fosse tal concepção sustentável, então, sim, captar o sentido de um texto sem enquadrá-lo numa visão de mundo razoável (sem eliminar o estranhamento em nome da familiaridade) seria impossível para o tipo de ser que é o Dasein. É um ponto em que Gadamer segue de perto o giro hermenêutico de Heidegger. Mas, como disse, não posso me aprofundar neste ponto.  

Voltemos à regra R1, aquela que nos soa tanto inteligível quanto aceitável. Outro tipo de crítico antirrealista poderia dizer que não entendemos o sentido de R1 porque R1 seria repleta de termos parcialmente indeterminados. É um concurso de monografias, mas R1 fala de “trabalhos”. São a mesma coisa? R1 menciona uma comissão de três juízes. Mas trata-se de juízes do próprio concurso, juízes de direito, juízes de futebol, que tipo de juízes? E a referência à “segunda fase” deve ser entendida como indicando que a avaliação dos juízes é a “primeira fase”? Seria o “juízo positivo” de que fala a segunda oração idêntico ao parecer “apto” de que fala a primeira? Mais importante ainda: R1 diz que os trabalhos que receberem três juízos positivos passarão à fase seguinte, mas não diz se apenas estes é que passarão. Haveria chance de serem classificados também os trabalhos que receberam dois ou um só juízo positivo?

Aqui temos outro ponto de confusão. Uma regra ter sentido objetivo metacontextual não significa que este sentido é totalmente determinado e não desperta qualquer dúvida sobre sua aplicação a um caso concreto. Na verdade, quando se diz de uma regra que seu sentido é parcialmente indeterminado, faz-se referência ao fato de que ela tem um sentido – a saber, um que é parcialmente indeterminado. É preciso ter captado o sentido de uma regra e avaliado até que ponto ele atende aos desafios de aplicação a um caso concreto real ou hipotético para, aí sim, sentenciar que, caso ele não atenda, tal sentido é parcialmente indeterminado. Há filósofos do direito que acreditam que a tese da textura aberta das regras, defendida por Hart em O Conceito de Direito, torna impossível defender o realismo semântico. Hart disse que regras não têm conteúdo completamente determinado, que seu conteúdo sofre variações conforme o contexto de fundo em que são aplicadas e o tipo de casos a que teriam que dar resposta. Sem querer entrar na controvérsia sobre até que ponto Hart tem razão, queremos deixar claro que o realismo semântico que defendemos afirma que as regras têm um sentido metacontextual, mas não afirma nada sobre este sentido sofrer ou não variações conforme as situações de aplicação. Assim, é totalmente compatível com a tese de Hart. Ninguém que concorde com a ideia de textura aberta precisa por causa disso abrir mão da tese do realismo semântico. (Hart de fato parece em algumas passagens defender um tipo de antirrealismo semântico, mas não querendo dizer que regras não têm sentido objetivo metacontextual, mas querendo dizer que regras, formuladas em abstrato, não indicam automaticamente os casos concretos a que se aplicam ou não. O antirrealismo de Hart não se refere à relação regra-sentido, e sim à relação regra-casos.)

A réplica ao desafio do crítico que levanta o problema da parcial indeterminação do conteúdo da regra é, então, que o sentido objetivo metacontextual da regra não basta para sanar todas as dúvidas de aplicação que o crítico levanta. Aqueles problemas são reais, mas mostram apenas o quanto a regra sozinha, com seu sentido literal e nada mais, é incapaz de resolver casos concretos que exigissem respostas àquelas perguntas. Não mostram que ela não tem um sentido objetivo metacontextual, e sim que, embora ela de fato tenha um, ele não basta para aplicá-la a todo tipo de caso. Este é, aliás, um dos motivos por que o realismo semântico que defendo não implica na tese legalista correspondente de que uma regra deva sempre ser aplicada segundo seu sentido literal. Em alguns casos, isto seria simplesmente impossível, porque o referido sentido literal seria indeterminado demais para levar a uma decisão específica. Noutros casos, seria possível, mas não seria recomendável. Quero abordar estes casos por último agora.

Disse no início do texto que, no caso de figuras de linguagem como a metáfora e a ironia, não seria recomendável considerar seu sentido literal como seu sentido final, mas, ao contrário, tais figuras funcionam na medida em que, captando o sentido literal, percebemos a intenção de ultrapassá-lo ou revertê-lo. O sentido literal de se referir a uma multidão como “um mar de pessoas” e a um anão como “o último dos gigantes” existe, mas, não se coadunando razoavelmente com a situação, requer uma adaptação de compreensão que salte do sentido literal para algum sentido figurado. Ora, a comparação implícita na primeira expressão e contradição humorística da segunda nos dão chance de compreendê-las num sentido diverso do literal. Se “um mar de pessoas” remetesse a uma multidão e “o último dos gigantes” remetesse a um anão de modo direto, sem passar antes pelo sentido literal, não perceberíamos tais expressões como metáfora e ironia respectivamente, mas como usos ordinários da linguagem em modo denotativo. Neste caso, é o sentido literal, como intermediário entre texto e sentido final, que nos faz tomar tais expressões como tendo sentido figurado.

Agora, contudo, consideramos outro caso, um em que não se trata de um texto ser usado de modo tal que dá a entender a intenção do autor de ir além do sentido literal, e sim um que a escolha pelo sentido literal do texto – no caso, o texto de uma regra – como seu sentido final não se mostra recomendável por motivos extrassemânticos, especialmente éticos ou políticos. Hart forneceu o célebre exemplo de uma regra que proibia veículos numa praça e que causou hesitação ao guarda que precisou decidir se a aplicaria para impedir que uma bicicleta entrasse na área pública. Para Hart, isto ilustrava o caráter parcialmente indeterminado das regras, sua textura aberta. Considero que Hart está enganado neste ponto. O que o caso por ele imaginado ilustra, na verdade, é que às vezes o sentido literal das regras pode causar resultados indesejados e insensatos. Ou melhor, reformulando: o que produz tais resultados não é o sentido literal, e sim a escolha do intérprete pela aplicação da regra segundo o seu sentido literal. Como sabemos dos velhos cânones de interpretação, o sentido literal é apenas um dos sentidos em que uma regra pode ser aplicada. No exemplo em questão, a regra provavelmente levaria a resultados mais aceitáveis se fosse aplicada a partir de seu sentido teleológico, que permite entendê-la como proibindo não os veículos em geral, mas apenas aqueles que perturbem o propósito e o funcionamento normal do parque. Desta forma, a regra em questão, a despeito de seu sentido literal, poderia ser entendida como autorizando a entrada da bicicleta. (Aqui também se deve entender o sentido teleológico como um sentido derivado e parasitário do literal, limitado por este último no que pode propor como sentido possível do texto em questão.)

Isto também modifica o modo usual de pensar sobre violação de regras. Pois alguém poderia dizer que permitir a entrada de bicicletas constituía uma clara violação da regra em questão. Parece claro que o que a pessoa tem em mente é que constituía uma clara violação à regra entendida em seu sentido literal. Mas, para opor-se a tal decisão, não bastaria alegar que ela viola a regra quando aplicada em sentido literal, mas seria necessário também provar por que seria mais razoável aplicá-la em seu sentido literal que em qualquer outro. Aqui meu realismo semântico se mostra avesso a qualquer tipo de legalismo ingênuo. Para aplicar uma regra segundo o seu sentido literal é necessário não apenas que o sentido literal dela seja de fato o que se alega que é, mas também que não haja boas razões para preferir um sentido diverso do literal no modo de aplicá-la ao caso concreto em questão. Por isso, se algum leitor concordar com a tese de Dworkin de que a escolha por um sentido em detrimento de outro nunca ocorre porque um deles tem prioridade absoluta, mas é sempre uma escolha ética e política, pode também ficar tranquilo de que esta visão não é incompatível com nosso realismo semântico. Pelo contrário, acredito que o método da interpretação a partir de uma coerência de princípios com o direito como um todo só é possível admitindo que o texto das regras que se interpretam têm um sentido literal, porque é este sentido que será depois confrontado com os casos do passado e com argumentos morais relevantes. Se a tese de Dworkin for entendida como dizendo que as regras não têm sentido algum antes de serem confrontadas com outras instâncias de interpretação, então, ele defenderia que algo que não tem sentido pode ser ainda assim confrontado com outra coisa, o que soa simplesmente absurdo. Algum sentido de partida a regra terá que ter, por mais que venha a ser reformado depois. Tal sentido de partida, segundo a nossa abordagem, seria exatamente o sentido objetivo metacontextual que chamamos de literal.

Assim, os principais motivos que parecíamos ter para abraçarmos o antirrealismo semântico, a saber, a tese das precompreensões, a tese da compreensão como aplicação, a tese da indeterminação do sentido e a tese da escolha ético-política do sentido, não seriam, quando entendidos corretamente, incompatíveis com a ideia de que textos em geral, e regras em especial, têm sentido literal, isto é, sentido objetivo metacontextual. São teses verdadeiras – mas que não provam a inexistência do sentido literal. O argumento que apresentamos serve como introdução panorâmica aos problemas de defender o realismo semântico, às críticas que ele sofre e a certas respostas que se pode formular contra tais críticas. Ainda pretendemos desenvolver bem mais esta tese no futuro, em publicações menos introdutórias, seja aqui neste blog, seja nos meios acadêmicos mais apropriados. Este texto foi apenas o primeiro passo nesta direção.


ADENDO 1: Tipos de discordância com a minha tese.

O sentido objetivo metacontextual é “objetivo” porque não depende das intenções e interesses nem do autor nem do intérprete e é “metacontextual” porque não depende de um pano de fundo cultural nem de práticas não linguísticas particulares. Tudo que ele exige é competência gramatical na língua em questão. Sendo assim, há pelo menos três maneiras como você pode discordar de mim. Todo leitor para quem minha tese causou incômodo e suspeita pode ver aqui em qual se encaixa melhor. Você pode acreditar que:

a) não há sentido literal: Você acredita que sentido literal é apenas um mito vazio da metafísica tradicional e que na verdade os textos são superfícies nas quais podem ser projetadas infinitas leituras a depender do contexto e dos propósitos, nenhuma das quais tem anterioridade ou superioridade sobre as outras, sendo todas possíveis e legítimas. As instituições dão preferência a certas leituras em detrimento de outras por motivos extrassemânticos, como a ratificação de certa visão de mundo, o favorecimento de certos interesses, a legitimação da autoridade e a imposição de poder. Neste caso você é realmente um antirrealista semântico. Sua posição pode estar ligada ao pragmatismo ou ao pós-modernismo.

b) há sentido literal, ele é metacontextual, mas não é objetivo: Você acredita que o sentido literal é produzido por algo exterior ao texto, neste caso, por intenções e propósitos seja do autor, seja do intérprete. Neste caso, você é um realista semântico fraco, mas seu realismo está associado a uma teoria intencionalista do sentido (trata-se de um subjetivismo semântico). Você acredita em sentido literal, mas acha que ele é produzido por atos subjetivos projetados sobre o texto, e não pelo texto mesmo. Sua posição pode estar ligada à teoria clássica da comunicação (se você coloca ênfase na intenção do autor) ou à teoria psicanalítica, pós-estruturalista e pragmatista-hermenêutica (se você coloca ênfase na intenção do intérprete).

c) há sentido literal, ele é objetivo, mas não é metacontextual: Você acredita que o sentido literal é produzido por algo exterior ao texto, mas não por intenções e propósitos do autor ou do intérprete, e sim pelas predeterminações do pano de fundo cultural ou das práticas não linguísticas vigentes numa comunidade . Neste caso, você é um realista semântico fraco, mas seu realismo está associado a uma teoria contextualista ou comunitarista do sentido (trata-se de um relativismo semântico). Você acredita em sentido literal, mas acha que ele é produzido pelo meio social, e não pelo texto mesmo. Sua posição pode estar ligada à antropologia e sociologia cultural, ao estruturalismo e pós-estruturalismo, à hermenêutica filosófica ou crítica ou à teoria cultural crítica.

ADENDO 2: Sentido literal, intenção do autor e pretensão do intérprete

O sentido literal que defendo é objetivo: vem do objeto, isto é, do texto, e não dos sujeitos envolvidos. Isto quer dizer que é independente das intenções do autor e do intérprete. Isto não impede que o sentido de um texto seja afetado pelas intenções do autor ou do intérprete. É possível ler um texto e perguntar-se: “mas qual era a intenção do autor?”. Só que, ao perguntar-se isso, já se assume que o sentido que se dará ao texto depois de relacioná-lo com a intenção do autor é diferente do sentido que ele teria a partir de si próprio. Não defendo nem que não exista um sentido associado com a intenção do autor nem que o sentido literal seja sempre superior a este outro, e sim apenas que existe um sentido literal distinto do sentido pretendido pelo autor. Da mesma forma, é possível ler um texto e perguntar-se: “mas qual a intenção do intérprete ao interpretar este texto?”. Só que, novamente, ao perguntar-se isso, já se assume que o sentido que se dará ao texto depois de relacioná-lo com a intenção do intérprete é diferente do sentido que ele teria a partir de si próprio. Correspondentemente, não defendo nem que não exista um sentido associado com a intenção do intérprete nem que o sentido literal seja sempre superior a este outro, e sim apenas que existe um sentido literal distinto do sentido pretendido pelo intérprete.

Deixe-me dar dois exemplos, dois cenários de um diálogo entre um legislador e seu assessor jurídico. Imagine que o legislador pretende encaminhar à votação um projeto de lei que introduz uma disciplina sobre cidadania no ensino médio e acaba de ler o primeiro esboço que o assessor redigiu. No esboço há um dispositivo que diz: “A disciplina terá conteúdos que valorizem a família, a escola, a cidade e a democracia”. O legislador diz que o texto está bom, mas sua intenção era na verdade não que aqueles elementos sejam simplesmente “valorizados” no sentido de acriticamente elogiados, e sim discutidos de modo realista e crítico, mas ao mesmo tempo comprometido com o aperfeiçoamento, para formar uma visão do que temos agora e do que queremos para o futuro. O assessor diz que entendeu e que trabalhará num segundo esboço. Quando traz o novo esboço para reexame, o texto diz: “A disciplina fomentará uma discussão crítica e reformadora sobre a família, a escola, a cidade e a democracia”. O legislador diz a ele que ficou bem melhor, que agora reflete muito melhor as suas intenções, mas que há um novo problema: da forma como está redigido, tenderá a ser compreendido pelos políticos mais conservadores como um ataque aos valores tradicionais, o que pode predispô-los a votarem contra o projeto. Com base nisto, recomenda ao assessor trabalhar numa terceira redação do referido dispositivo.

Ora, o que os dois momentos deste exemplo mostram? O primeiro momento mostra que o legislador percebe uma clara diferença entre a sua intenção com o texto e o que o texto realmente diz. Sua intenção é promover discussão crítica, enquanto o texto fala de “valorizar” certos temas. Pode ser que com “valorizar” o legislador quisesse dizer na verdade “discutir criticamente”, mas ele sabe que o que o texto diz não remete de modo preciso ao que ele tinha em mente. O fato de que mande o assessor redigir uma segunda vez o texto prova que o legislador distingue entre sentido literal e sentido pretendido pelo autor. Já no segundo momento, o legislador está satisfeito com a correspondência entre sentido literal e intenção do autor (embora continuem sendo coisas distintas, levam agora ambos à mesma conclusão), então, agora avalia o texto a partir do olhar de certo intérprete em especial, no caso, o político conservador. Ele sabe que o texto que seu assessor lhe trouxe fala de “discussão crítica e reformadora”, e não de ataque algum a valores tradicionais. Mas ele sabe também que, dados os interesses e propósitos do político conservador, ele tenderá a ler a referência à “discussão crítica e reformadora” como implicando ataque a valores tradicionais. Ele não manda o assessor redigir o texto uma terceira vez porque acredita que o texto realmente remete a um ataque a valores tradicionais, e sim porque sabe que certo tipo de intérprete tenderá a ler o que está dito no texto daquela forma. Isto prova que distingue claramente entre o que o texto de fato diz e o que o intérprete tenderá a ler nele, isto é, entre o sentido literal do texto e o sentido pretendido (neste caso, suspeitado e temido) pelo intérprete. Isto prova que, até mesmo para falarmos de sentidos pretendidos pelo autor e pelo intérprete, precisamos ter uma noção do sentido literal como distinto de ambas as coisas.

ADENDO 3: Sentido literal, pano de fundo cultural e práticas extralinguísticas

O sentido literal que defendo é metacontextual: vem do texto, e não do contexto. Mais precisamente, vem do texto, e não depende de elementos do pano de fundo cultural que não estejam expressos no próprio texto, ou de práticas comunitárias externas ao texto em questão. Não quer dizer que, quando relacionado com seu devido contexto, o texto não ganhe um sentido distinto que pode ser inclusive superior ao seu sentido literal e mais apropriado para o propósito da interpretação em questão. Quer dizer apenas que entre sentido literal e sentido contextualizado existe uma diferença, e é inclusive esta diferença que torna recomendável, em certos casos, recorrer ao contexto do texto em vez de se prender apenas ao seu sentido literal.

Os artistas de teatro, cinema e televisão têm um modo particular de desejar boa sorte a seus companheiros de trabalho: eles dizem “quebre uma perna” (break a leg). Ora, se atentarmos ao sentido literal do que dizem, estariam expressando o desejo de que seu colega sofresse ruptura óssea de um de seus membros inferiores, o que seria uma coisa terrível para desejar até mesmo a um inimigo, quanto mais a alguém por quem se tem afeto ou estima. Porém, a prática se explica pela superstição generalizada segundo a qual dizer a alguém “boa sorte” ou “sucesso” atrai na verdade má sorte e fracasso, de modo que se substituem estas frases por uma com sentido contrário para, contornando as regras esotéricas da superstição em questão e evitando o risco de ser agente de mau agouro, ainda expressar ao companheiro, de forma indireta, que se deseja que ele tenha êxito em sua empreitada. O sentido literal é de que ele quebre uma perna, mas o sentido contextualizado é de que corra tudo bem e ele tenha sucesso. (Atua aqui uma lógica de compreensão por inversão de sentido semelhante à que apontamos na ironia, mas agora por convenção social, e não por efeito humorístico.) É mais apropriado, claro, entender a expressão em seu sentido contextualizado, mas o motivo por que um novato precisaria que lhe explicassem o verdadeiro sentido da frase é que este sentido contextualizado é não apenas diverso como, neste caso, inclusive oposto ao sentido literal. Esta é a razão pela qual defender que existe um sentido literal (o realismo semântico) é uma coisa, enquanto defender que se deve sempre interpretar um texto segundo seu sentido literal (o literalismo interpretativo) é outra bem diferente. Eu defendo a primeira posição, mas não a última, que me parece totalmente irrazoável.

Comentários

Anônimo disse…
Relatarei abaixo a discussão que tivemos por e-mail eu e meu orientador sobre o conteúdo da postagem:

Delamar: "Gostei muito do texto e faria as seguintes ponderações
1. o recurso à semântica como forma de explicar o significado de uma proposição levanta problemas. Ela parece intuitiva para frases simples, como a bola é vermelha, mas não para proposições complexas, como aquelas da teoria da relatividade. Vc teria que responder à objeção que Wittgenstein apresenta contra a teoria agostiniana do significado. Em outros termos, uma teoria empirista simples não dá conta do mais complexo da linguagem.
2. No caso do direito, vc teria que ver o que Dworkin afirma contra as teorias semânticas aplicadas ao direito.
3. Muito provavelmente, as questões mais importantes do direito não são solúveis em termos semânticos, a começar pela definição mesma de direito e, sem seguida, de direitos."

Eu: "Bom, pontualmente:

1a) A teoria da relatividade produz enunciados que não são intuitivos porque ultrapassam nosso poder de imaginação e não se ajustam com facilidade à nossa experiência física cotidiana. Acho que para estes enunciados valeria a mesma estratégia que usei com enunciados fantásticos como meu exemplo R2: inclusive para dizer que o enunciado é contraintuitivo, é preciso assumir que ele tem um sentido primário, o qual, quando contrastado com nossa imaginação e experiência, soa contraintuitivo. Não é possível algo sem sentido algum ser contraintuitivo.

1b) A objeção de Wittgenstein ao relato das Confissões sobre como Agostinho teria aprendido a linguagem é voltado contra uma concepção de linguagem como espelho da realidade, numa relação direta nome-coisa e verbo-ação. A isto ele contrapõe uma concepção em que as práticas têm prioridade e orientam os jogos de linguagem que servem para levá-las adiante. Não acho que a minha concepção de significado literal implique a tese de que a significação é uma relação biunívoca linguagem-mundo. Pelo contrário, enunciados de literatura fantástica, de metafísica sobrenatural, de misticismo religioso e de poesia surrealista, os quais não têm sequer pretensão de correspondência com o mundo, teriam todos, na minha abordagem, um sentido literal a partir do qual podem ser apreendidos.

2) Vejo o argumento de Dworkin como um argumento contra teorias semânticas do que é o direito (e não do significado literal de enunciados individuais) e contra teorias semânticas da prioridade do sentido original (literal ou da intenção do locutor) contra outros sentidos possíveis. Achas que Dworkin nega que os enunciados tenham sentido literal? Eu o vejo mais como um antioriginalista que como um antirrealista. Mas fica à vontade para me convencer do contrário.

3) Também acho isso. Mas uma coisa é existir sentido literal, outra coisa é o que ele é capaz de fazer ou resolver. Quero defender apenas que enunciados têm sentido literal, mas concedo que tal sentido literal dificilmente é capaz de resolver os problemas mais prementes da teoria do direito."
Guilherme Feliciano disse…
André, sou estudante de direito e acompanho suas postagens. São excelentes e muito elucidativas. Pretendo fazer meu tcc sobre hermenêutica e a questão da interpretação constitucional. Quais leituras você recomenda?
De antemão agradeço as recomendações. Abraços!

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo