Entendendo os Protestos no Brasil: Oito Interpretações
Conforme prometido, eis a postagem para tentarmos entender a
onda de protestos no Brasil em conexão com a cadeia internacional de protestos
e manifestos semelhantes. Ontem disse que tentaria ir além das análises da
imprensa, mas a imprensa tem sido tão superficial na cobertura do fenômeno que
elevar-se um nível acima do que ela vem fazendo não chega a ser um carimbo de
legitimidade. Vou tentar escrever esta postagem para ser entendida por qualquer
pessoa inteligente e bem informada, independentemente do conhecimento prévio
que tenha dos autores e teorias citadas ao longo do texto. Para isto, partirei
dos fatos conhecidos e tentarei, por degraus sucessivos, chegar cada vez mais
longe. Tomarei como degraus as formas que se sucederam de compreender o
fenômeno. Vamos ver se me saio bem nesta tarefa ambiciosa.
Como se sabe, os protestos no Brasil tiveram início na
cidade de São Paulo em reação, em primeiro lugar, ao aumento da tarifa de
ônibus municipal do preço anterior de R$3,00 para o novo preço de R$3,20. O
fato de milhares de pessoas terem se reunido para protestarem contra um aumento
de passagem considerado pequeno, ou seja, de R$0,20, pareceu desproporcional a
boa parte da classe média brasileira e, juntando-se com preconceitos longamente
arraigados contra protestos e passeatas liderados por jovens estudantes,
despertou a primeira perplexidade sobre o movimento e a primeira forma
equivocada de compreendê-lo:
PRIMEIRA
INTERPRETAÇÃO: Trata-se de um fenômeno isolado de protestos de jovens
desocupados da classe média paulistana que, movidos por ideologias difusas de
esquerda e pelo afã de imitar movimentos legítimos de reivindicação, tomaram
uma causa qualquer (um aumento de apenas R$0,20 na tarifa do ônibus que muitos
deles nem precisam tomar) como substituto de sua falta de causas reais para
protestarem e fizeram dela motivo de luta e de enfrentamento com as
autoridades.
Tratava-se, como é evidente, de uma interpretação
reacionária. Na linguagem política, assinala-se a certa pessoa o rótulo de ter
pensamento ou temperamento “reacionário” (os esquerdistas inventaram inclusive
o apelido “reaça” para estas pessoas), em oposição a progressista ou
revolucionário, quando esta pessoa não apenas é a favor do status quo, mas também
se incomoda com manifestações políticas (que interpreta como barulho, desordem
e baderna) e encara de modo cético e cínico tentativas de interferir no cenário
político, tirando sarro dos participantes e de seus “sonhos de mudar o mundo”.
Este pensamento e temperamento reacionário, que em geral reflete satisfação ou
acomodação ao status quo e traduz sentimentos de desinteresse e impotência
política, dominou a primeira onda de críticas aos protestos e despertou nos
manifestantes o desejo de se explicarem e se legitimarem perante o restante da
população, conclamando-a a apoiar e participar do movimento que não era “por
centavos, e sim por direitos”.
Para fazer esta legitimação social do movimento, participantes
e simpatizantes passaram a tentar conectar a insatisfação expressa nos
protestos com formas as mais amplas, vagas e genéricas de insatisfação que
praticamente qualquer brasileiro poderia ter, como se ver cada pessoa
protestando na rua como alguém que está revoltado contra as mesmas coisas que
revoltam a mim me ajudasse a me identificar com o movimento. Na verdade, surtia
o efeito contrário, como direi em seguida. Isto resultou na segunda forma equivocada
de entender o movimento:
O sociólogo espanhol Manuel Castells (1942-) |
SEGUNDA INTERPRETAÇÃO:
Trata-se de um movimento que tem no aumento da tarifa apenas o seu estopim, mas
que expressa na verdade uma insatisfação geral da população brasileira com uma
série de déficits e escândalos políticos recentes, que vão desde o abandono da
saúde e da educação até a escalada da violência, desde as despesas
estratosféricas com a Copa do Mundo até a impunidade dos responsáveis pelo
mensalão petista etc. Trata-se, portanto, de um movimento de brasileiros
indignados.
Esta nova interpretação do movimento, se teve por um lado o
efeito de conquistar simpatia e adesão de uma parcela bem maior da população,
teve por outro lado o terrível dano colateral de tornar a mobilização genérica,
heterogênea, amorfa e impotente. Nada pode ser pior para um fenômeno de reivindicação
que ser identificado como um simples “movimento de indignados”. Por dois
motivos distintos. O primeiro é que desta forma ele deixa de ser uma tentativa
de usar ocupação das ruas e pressão popular para garantir certas conquistas
concretas e passa a ser um processo de expressão terapêutica de insatisfação
generalizada. E, diferentemente de reivindicações específicas, que podem ser
atendidas ou não, em todo ou em parte, uma expressão terapêutica só pode ser
ouvida e tolerada, repetida e ampliada até se tornar exaurida, até o paciente
(neste caso, a população) se sentir novamente em condições de tocar a vida
normalmente, mesmo que nada de concreto se tenha modificado. Portanto, o
caráter prático-político com potencial transformador é substituído por um caráter
social-expressivo com potencial conservador (aqui uso Žižek e Badiou).
O segundo motivo por que esta identificação dos protestos
com um “movimento de indignados” pode ser fatal para ele é a colisão de
ideologias políticas conflitantes. Ora, no Brasil, como em qualquer outro país,
existe uma multiplicidade fragmentária de crenças e agendas políticas
distintas, que nossa herança dos dois séculos tenta abrigar sob os rótulos de
“direita” e “esquerda” (mesmo que nos sentidos analógicos e muito amplos em que
estes termos são usados hoje). Então, temos quem defenda investimento no
crescimento econômico e quem defenda investimento em programas sociais, temos
quem defenda redução da maioridade penal e quem defenda maior investimento em
educação e lazer para os menores, temos quem defenda combate à corrupção e à
impunidade e quem defenda redistribuição de renda e reforma agrária, temos quem
defenda internação compulsória de dependentes de drogas e quem defenda
descriminalização das drogas, temos quem defenda a família tradicional e quem
defenda os direitos de homossexuais e transgêneros, temos quem defenda a
proibição do aborto e quem o defenda como prioridade de saúde pública e de
agenda feminista, temos quem tenha saudades dos militares no poder e quem
queira investigar e punir os crimes esquecidos da ditadura etc. Ora, uma coisa
que estes dois grupos (ou melhor, estes vários grupos, aqui convenientemente
reunidos como se fossem apenas dois) têm em comum é sua insatisfação com vários elementos da política brasileira atual.
Tanto a direita quanto a esquerda estão insatisfeitas e, por isso mesmo, um
“movimento de indignados” com a situação do país é capaz de reunir membros de
ambos os grupos sob o preço de comprometer qualquer identidade do movimento.
Isto também enfraquece o caráter prático-político do movimento, porque se o
direitista pró-empresário e pró-endurecimento policial marcha do lado do
esquerdista pró-redistribuição e pró-projetos sociais inclusivos, então, é
impossível que este grupo tenha reivindicações comuns e, por isso mesmo, é
impossível atendê-las. O risco neste caso é não apenas de conversão dos
protestos em expressão terapêutica, mas também de descaracterização do caráter
essencialmente esquerdista do movimento. A insatisfação é a moeda comum da
política, porque, num regime político normal e livre, todos estão sempre
insatisfeitos, mas deve-se resistir à tentação de, para ganhar simpatia e
adesão de mais gente, trocar o fenômeno nesta moeda comum, porque ela é uma
moeda podre, capaz de descaracterizar e desmobilizar qualquer potencial de
transformação. Ou o movimento representa a agenda política comum de um grupo
com ideias mais ou menos convergentes, ou se perde tentando representar
qualquer ideia de qualquer um (aqui uso Negri e Rancière, mas voltarei a este
ponto, aprofundando alguns argumentos deles).
Quando protestos semelhantes começaram a ocorrer em outras
cidades brasileiras, uma nova forma equivocada de entender o fenômeno veio à
tona, desta vez alimentada pelo bairrismo e por preconceitos sobre relações
inter-regionais no Brasil.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-) |
TERCEIRA
INTERPRETAÇÃO: Trata-se de um protesto legítimo de São Paulo para reivindicar
diminuição da tarifa de ônibus, mas suas imitações e sucedâneos em outras
cidades do Brasil são totalmente injustificados, produto do desejo vazio de
imitar os atos da juventude paulistana, dado que nestes outros locais a
população até então convivia pacificamente com o preço da tarifa de ônibus e
nenhum deles foi cenário de um aumento recente da referida tarifa que
justificasse tamanha revolta.
Esta nova interpretação é, como se percebe sem dificuldade,
apenas uma versão inter-regional da primeira interpretação reacionária. O
protesto é, por alguma razão, legítimo para os outros, neste caso, para os
paulistanos, mas não para todos. A esta altura, é bom lembrar, os protestos já
tinham se tornado aceitos até mesmo pela mídia, pois, por um lado, já havia
passado a suspeita de que fosse coisa isolada de um ou dois dias e, por outro
lado, a truculência policial com os manifestantes e inclusive com representantes
da própria imprensa tinha transformado o tom e a direção das coberturas
jornalísticas. Daí o reacionário das outras cidades do país já não atacava o
movimento paulistano, mas sacava do bolso os mesmos discursos sobre ausência de
causas e protestos pelos protestos, juntava a isso o preconceito de que seus
conterrâneos imitam os paulistas em tudo e produzia este discurso de
deslegitimação das mobilizações populares em sua própria cidade. Isto, contudo,
não durou muito. Logo ocorreu no restante do país o mesmo processo que havia
ocorrido em relação aos protestos de São Paulo, isto é, uma tentativa de
legitimar o fenômeno pela ampliação desmedida de seu escopo, usando da
estratégia de fazer dele um grande “movimento de indignados”. Uma vez que este
levante dos indignados toma proporções nacionais, afirma-se outra interpretação
do que se está testemunhando nas ruas:
QUARTA INTERPRETAÇÃO:
Os protestos são um grande fenômeno de transformação do país, em que os
cidadãos indignados com séculos de desatendimento e desrespeito e cansados de
esperar por dias melhores estão saindo às ruas para tomar as rédeas da política
nacional, fazerem funcionarem as instituições, acabar com a corrupção, mudar o
regime orçamentário em favor das verdadeiras prioridades, fazerem ser punidos
os responsáveis pela corrupção e descaso político etc.
Agora, não se trata mais da assimilação do movimento por
grupos com tendência reacionária, e sim da mistura da autocompreensão do
movimento com fantasias do ideário revolucionário moderno, que recupera imagens
das revoluções burguesas e proletárias, dos movimentos de descolonização e
democratização, e as projeta sobre o cenário político atual. Esta interpretação
dificilmente pode prosperar, por várias razões. Primeiro, quem se deixa levar
por esta ideia confunde o êxito do movimento em conseguir mobilizar pessoas
para ampliar e continuar os protestos com êxito em atingir seus objetivos
originais. Não sendo os protestos fins em si mesmos, seu êxito deve ser medido
pelas metas atingidas. Uma destas metas, é verdade, é a mudança da imagem
social do movimento em relação à imprensa e à população mais ampla, e isso foi
atingido, mas é um objetivo-meio, não um objetivo-fim. Outra destas metas,
também é verdade, é a redução da tarifa de ônibus, coisa que se alcançou, em
maior ou menor medida, em algumas das cidades que tiveram protestos, mas a
redução de alguns centavos da tarifa, embora faça parte da reivindicação, não
pode ser o medidor de seu êxito objetivo, sob pena de esvaziar o sentido mais
amplo do movimento. Sendo assim, já seria precipitada inclusive uma celebração
do êxito do movimento, sendo ainda mais a fantasia de pensá-lo como algum tipo
de revolução em curso. (É interessante, contudo, perceber que, na interpretação
da ampliação e continuidade dos protestos como um tipo de êxito se revela o
tamanho da descrença política que tomava conta das pessoas antes do fenômeno;
dado que elas não acreditavam ser possível sequer mobilizar pessoas para uma
causa de protesto, ter-se podido alcançar e manter tal mobilização já é
percebido por elas como um êxito extraordinário, um “despertar do sono” ou
“saída da passividade” a ser celebrada por si própria, mesmo que dela não se
seguisse nenhuma consequência ou transformação concreta.)
Além de precipitar-se sobre o êxito do movimento, esta
interpretação revolucionária dos protestos deixa de captar que a relação que
segue existindo entre população e poder público ainda é a, de um lado, aquela
que tem as demandas e é a boca que fala e, do outro lado, de quem tem dinheiro
e poder e é o braço que executa. Isto quer dizer que o “poder social” gerado
pelas mobilizações não se traduz institucionalmente num poder político de
tornar suas demandas realizadas. É apenas na medida em que o poder público seja
sensibilizado ou intimidado pelas reivindicações que se pode esperar que
algumas delas, dentro das conveniências da administração, dos limites legais
atualmente existentes e dos regimes de interesses dominantes, sejam atendidas
tímida e parcialmente. A chave do cofre e o cetro de mando continuam na mão do
outro, daquele para quem se dirigem as vozes, e não daqueles que as pronunciam.
Portanto, falar de revolução é totalmente deslocado. Em qualquer fenômeno em
que se tenta seduzir ou persuadir o poder, é porque não se tem o poder. E
qualquer movimento que não tomou o poder não é uma revolução. (Com isto não vai
implícita nenhuma sugestão de que tomar o poder e fazer uma revolução seria de
fato uma boa ideia, apenas a lembrança de que se deixar levar por fantasias
revolucionárias é deixar de ter apreciação objetiva do estado do movimento, de
suas conquistas reais e de seus poderes efetivos.)
O sociólogo e filósofo italiano Antonio Negri (1933-) |
A esta altura, tomando inspiração na hostilidade dos
protestantes contra as bandeiras de partidos políticos e na tentativa de
invasão de prédios dos poderes legislativo e executivo, torna-se atraente outra
interpretação do movimento:
QUINTA INTERPRETAÇÃO: Trata-se
não apenas de um movimento de indignados contra este ou aquele problema pontual
da política nacional, mas sim de um movimento brasileiro que ecoa uma
insatisfação mundial, isto é, a insatisfação dos cidadãos com as instituições
de sua democracia representativa, nas quais tais cidadãos não se reconhecem e
pelas quais não se sentem ouvidos e atendidos. Em protestos deste tipo se
expressa o desejo dos cidadãos de se reapossarem da política e de fazer com que
a coisa pública atenda de fato ao interesse público.
Esta é a interpretação, por exemplo, de Castells e Bauman.
Neste ponto da postagem deixamos de debater as interpretações do senso comum
reacionário ou progressista e passamos a examinar interpretações de
intelectuais e cientistas sociais. Para isto, temos que selecionar com cuidado
nossos debatedores. Filósofos políticos e cientistas sociais que se colocam
primariamente como pensadores da “ordem” e da “legitimação”, isto é, como
pensadores que se ocupam das instituições da sociedade moderna e de como elas
são ou podem vir a ser legítimas, como Giddens e Habermas, não terão respostas
a dar, pelo menos, não respostas interessantes. Quem raciocine nas pegadas
deles vai tentar amarrar os movimentos de protestos ao que suas teorias dizem
que as pessoas deveriam querer e reivindicar, seja no modelo giddensiano da
reflexividade, seja no modelo habermasiano da discursividade. Isto pode
resolver o problema de como encaixar o fenômeno social recente nas gavetas
adequadas da teoria, mas não resolve o problema de captar o sentido interno
destes movimentos. Outro tanto ocorre com os que assinalam todos os problemas
sociais sempre aos mesmos motivos, sejam eles o multiculturalismo, o
secularismo, a marginalização de minorias ou a crise do Estado de bem-estar ou
do Estado neoliberal. Usar tais pensadores é fazer o esforço de ver no
movimento atual apenas um novo episódio de mais do mesmo de outros fenômenos de
crise. Finalmente, também não cabe esperar diálogo produtivo com
pós-estruturalistas e pós-modernos que mantêm a posição de que em toda
configuração política há sempre opressão, exclusão e déficit de legitimidade,
porque, mesmo que isto fosse verdade, não explicaria por que este fenômeno em
particular tem surgido e tomado proporção neste momento em particular em vários
locais do planeta. O mais recomendável é que tentemos dialogar com os
pensadores que são, sim, pensadores da opressão e da ilegitimidade, mas são
também pensadores da mudança e da crise, isto é, que se ocupam de explicar em
que sentido o mundo está tomando um rumo diferente e quais novas modalidades de
crise estão envolvidas neste rumo. Daí que uma lista mais atraente de
interlocutores seja, sem prejuízo de outros, Castells, Bauman, Negri, Žižek,
Badiou e Rancière. Como nem todos eles se manifestaram especificamente sobre os
protestos do Brasil, mas têm revelado a tendência de aplicar mais ou menos as
mesmas interpretações para os protestos nos EUA, na Inglaterra, na Espanha, na
Grécia, na Turquia etc., vou pressupor que o mesmo aconteceria em relação a
nossos protestos locais. Isso me expõe desde o princípio à crítica de que, se o
que quero é uma compreensão do sentido interno do movimento, a última coisa que
deveria fazer é aplicar a ele interpretações feitas para outros fenômenos.
Contudo, como estou defendendo aqui, em princípio, a tese de que os protestos
no Brasil são um elo na cadeia internacional de protestos do mesmo tipo (embora
com nuances típicas apenas do Brasil), não creio que esta crítica invalide
totalmente as contribuições que avançarei a seguir. Mas quem estiver lendo deve
reter esta crítica em mente até o fim do texto e lembrar dela na hora em que
estiver pesando prós e contras das razões listadas por mim.
Comecemos, então, por Castells e Bauman. A tese de Castells é
de que as instituições da democracia representativa não conseguem mais captar
os verdadeiros anseios de sociedades complexas e pluralistas e por isso
produzem um déficit de legitimação. Os protestos seriam reações da sociedade a
este déficit e reivindicações no sentido de tomar o poder político de volta em
suas mãos (não no sentido de uma democracia radical ou direta, mas no sentido de fortalecimento das arenas de participação popular e reaproximação dos representantes com suas bases eleitorais). A tese de Bauman é semelhante, mas insiste noutro problema da
representação, que ele chama de problema ético: a facilidade com que
instituições representativas são cooptadas por interesses dominantes
organizados, principalmente burocracias estatais e grandes corporações
capitalistas. Bauman também acha que os protestos revelam a vontade do público
de retomar poder decisório.
Em primeiro lugar, esta hipótese revelaria o que está sendo
expresso pelo movimento, mas não por que o movimento teria explodido justamente
agora e particularmente em alguns lugares, e não em outros. É, portanto, uma
teoria da causa remota, mas não da causa próxima. Fica, pois, em aberto a
questão da causa próxima. Quanto à causa remota apontada, que seria a
insatisfação (política em Castells, ética em Bauman) com o sistema
representativo, a teoria parece captar em parte o tipo de revolta que os
manifestantes carregam. De fato, eles não se sentem representados por suas
instituições e mandatários políticos e isto, de fato, tem a ver, pelo menos em
parte, com grupos que não são ouvidos e com a prevalência dos interesses
estatais e econômicos sobre o bem comum.
Mas há duas ressalvas a serem feitas a esta leitura do
movimento. Em primeiro lugar, a revolta parece se dirigir contra certos estados
de coisas e eventos que, mesmo num sistema representativo, poderiam não
existir. O sistema poderia ser representativo e, mesmo assim, os preços de transporte
público não serem exorbitantes. Esta é a realidade de vários países. Há países
que têm também serviços públicos de educação e saúde de muita qualidade cujo
sistema político é representativo. O problema, talvez, seja de revolta contra
os representantes que que temos tido desde o retorno da democracia. Mas isto
não é uma revolta contra o sistema representativo em si mesmo, porque, em tese,
se resolveria se fossem eleitos representantes melhores. A solução de boa parte
dos problemas verbalizados pelos manifestantes parece ser perfeitamente
compatível com a manutenção de um sistema representativo. Tanto é assim que
eles esperam que o poder público, portanto, o sistema representativo, ouça suas
demandas e as atenda. Isso nos conduz à segunda ressalva. Ao contrário do que
prognosticam Castells e Bauman, os manifestantes não parecem ter qualquer
interesse de tomarem para si o poder decisório (por exemplo, com mais democracia participativa) e o assumirem em definitivo.
Eles querem que suas demandas sejam atendidas pelas autoridades, mas não querem
tomar o lugar das autoridades (ou participar constantemente de consultas e assembleias). Não existem sérias demandas de democracia
participativa, nem de fóruns, assembleias, audiências públicas ou conselhos
gestores. As reivindicações (ao contrário do que não apenas indicam Castells e
Bauman, mas do que gostariam Habermas, Giddens, Fraser, Forst etc.) não são
procedimentais, mas substantivas – bastante substantivas. Os manifestantes
querem ter voz, mas apenas no sentido de que sua voz seja ouvida por quem toma
as decisões, e não no sentido de tomarem eles mesmos as decisões.
O filósofo francês Jacques Rancière (1940-) |
Isto nos conduz a procurar por autores que falem de
reivindicações substantivas. Examinemos a possibilidade aberta por Negri:
SEXTA INTERPRETAÇÃO:
Os protestos reagem contra a exaustão das esperanças do Estado de bem-estar.
Este modelo de Estado teria feito a promessa de redução das desigualdades,
domesticação do capitalismo e atendimento de necessidades humanas em nível
digno para todos os cidadãos. Com o fim do socialismo real e da Guerra Fria, o
avanço da globalização, a imposição do Consenso de Washington, a guerra contra
o terrorismo, as restrições à imigração e a crise econômica de 2008, o novo
cenário econômico e social tornou aquela promessa totalmente inverossímil,
tornando todos os conflitos políticos internos ocasiões para expressão de revolta
e cobrança difusas por um horizonte que um dia já se visualizou, mas agora se
tornou inalcançável.
Aqui temos uma nova interpretação. Ela fornece tanto uma causa
remota quanto uma causa próxima. A causa remota seria a perda da esperança do
cumprimento da promessa do Estado de bem-estar. A causa próxima seria cada
conflito político interno, mas não em razão do que este conflito significa em
si mesmo, e sim de como ele revela e recorda o ambiente de desesperança que
produz a revolta. Neste sentido, a hipótese de Negri é muito mais interessante
que a anterior. Ela também se revela mais interessante porque algumas
reivindicações substantivas dos movimentos de protestos têm relação com os
conteúdos das promessas do Estado de bem-estar. Occupy Wall Street poderia ser
relacionada com a redução das desigualdades e a domesticação do capitalismo,
enquanto os protestos na Espanha e no Brasil poderiam ser relacionados com o
provimento de condições dignas de vida a todos os cidadãos.
Porém, novamente, a hipótese não explica tudo. A julgar pela
causa remota apontada, seria de esperar que os focos das revoltas fossem os
países que viveram em maior medida o Estado de bem-estar e depois o viram
desfazer-se. Estes países seriam sobretudo França e Alemanha. No entanto, os países
em que de fato os protestos aconteceram têm uma relação pelo menos problemática
com o Estado de bem-estar (Grécia e Turquia sequer entraram no modelo social do
bem-estar, Portugal, Espanha e Itália nunca tiveram plenamente um Estado de
bem-estar, e Estados Unidos e Inglaterra foram os carros-chefes do
neoliberalismo). Aquilo que funcionaria como causa próxima também não se ajusta
bem aos fatos. Na Inglaterra, os protestos começaram a partir de atos de
violência policial que nada têm a ver com o Estado de bem-estar. Na Grécia,
tratava-se da imposição do regime econômico de austeridade por parte de uma
autoridade não reconhecida como legítima (o Banco da UE). Na Turquia, os
protestos vieram de uma luta contra um Estado opressor que toma o caminho da
teocracia. Uma vez que estes problemas se relacionam respectivamente com
segurança, soberania e secularismo, todos estes valores políticos que já eram
valiosos antes do Estado de bem-estar, a hipótese de Negri também parece menos
que satisfatória.
Além de explicação insuficiente, a abordagem de Negri também
não chega a oferecer uma solução concreta. Uma vez que o contexto econômico e
social contemporâneo tornou inalcançável o cumprimento da promessa do Estado de
bem-estar, os protestos podem ser vias de expressão da desesperança, mas não
podem transformar as causas de sua desesperança, isto é, não podem criar as
condições em que as promessas cuja perda se lamenta voltariam a ser possíveis
de cumprir. Pode-se dizer que isto não chega a ser um defeito, uma vez que a
abordagem não se propôs a isto desde o princípio. Mas é, para nós, que queremos
obter também orientação prática, um motivo para procurarmos teorias cuja
abordagem explicativa aponte também para um horizonte de ação.
Gostaria, então, de introduzir algumas ideias de Žižek,
Badiou e Rancière. Esta é uma tarefa mais complexa. Estes autores têm posições
sobre os acontecimentos políticos contemporâneos que estão fortemente
conectadas com suas respectivas teorias das sociedades atuais, do Estado, do
capitalismo e da ideologia. Pode-se dizer o mesmo, claro, de Castells, Bauman e
Negri, mas as teorias destes últimos autores são bem mais próximas daquilo que
o cidadão inteligente e bem-informado de sociedades atuais já consideraria
intuitivo e aceitável. Já o ofício intelectual de Žižek, Badiou e Rancière é o
de dissolver as fronteiras do intuitivo e aceitável. São fortes em suas teorias
as ideias de que cada realidade abriga também o seu oposto, de que tudo que se
aceita como evidente costuma ser o contrário do que parece, de que o imaginário
simbólico é o mais poderoso elemento de manutenção das relações de injustiça e
exploração (mas também o meio sem o qual a emancipação não é possível) e de que
se deve estar comprometido ao mesmo tempo com a emancipação radical (sonhar com
menos que isto é desistir do grande sonho do socialismo) e com cada etapa
concreta de sua realização (a revolução que instaura a emancipação por completo
é sempre uma forma de autoilusão). Este não é um inventário de suas ideias
principais, e sim uma lista de alguns empecilhos a formular suas hipóteses
nesta postagem na linguagem e com os conceitos com que eles mesmos o fazem.
Trabalharei, então, com versões adaptadas, algo que, imagino, eles também
fariam se estivessem palestrando para os manifestantes dos protestos no Brasil.
O filósofo francês Alain Badiou (1937-) |
Comecemos, então, por Rancière e o conteúdo de sua palestra
para os protestantes do Occupy Wall Street:
SÉTIMA INTERPRETAÇÃO:
Os manifestantes são movidos por uma revolta que eles não conseguem verbalizar
inteiramente. Este mutismo vem de perceberem, em alguma medida, que a linguagem
em que poderiam formular suas insatisfações e demandas está estruturada segundo
as mesmas categorias e relações responsáveis pela deflagração dos problemas. A
libertação deste mutismo exige um tipo de revolução cultural, para a qual o
elemento estético, e não o instrumental, teria papel decisivo. As formas
inovadoras de arte e de linguagem podem criar um novo imaginário simbólico em
que poderiam ser questionadas as premissas do individualismo, da racionalidade
econômica, do hedonismo materialista e da sacralização de culturas opressoras.
Esta hipótese pode soar exótica a princípio. Mas ela é
interessante porque lança luz sobre dois elementos em que as outras teorias não
tocaram. O primeiro é o mutismo forçado das insatisfações e reivindicações.
Dissemos mais acima que, por um lado, os protestos eram sobre mais que os
R$0,20 do aumento da tarifa, mas, por outro lado, este “mais” não podia ser
confundido com a multidão de outras insatisfações com que as forças reacionárias
tentam associar o movimento. Há, por assim dizer, um anseio de mudança em
relação ao modelo atual, mas sem que se consiga visualizar claramente qual é o
modelo alternativo. É neste intervalo entre saber o que não se quer e não saber
o que se quer que se encontra o mutismo, que impede uma formulação clara e
definitiva das reivindicações. Este mutismo, Rancière explica, se deve ao fato
de que, toda vez que os protestantes pensam em reivindicar algo, sua imaginação
política só os permite pensarem em soluções que são repetições do modelo que
estão questionando. É neste sentido que Rancière fala da carência de uma
linguagem alternativa. Podemos ou não concordar que o que fornecerá esta
linguagem alternativa é a arte, mas é certo que uma nova linguagem, que amplie
nossa imaginação política e institucional, é necessária.
O segundo elemento interessante é que, indiretamente, a
hipótese de Rancière fornece outro tipo de causa remota e causa próxima para os
protestos. A causa remota seria o esgotamento de certa linguagem política
tipicamente moderna (centrada no indivíduo isolado, na racionalidade econômica
etc.) e a causa próxima, em conexão com a outra, seria que os conflitos
internos que deflagram os protestos o fazem justamente porque confrontam os cidadãos
com o mutismo de reivindicações concretas. É preciso ir às ruas e protestar em
massa porque a experiência do protesto em massa constituiria uma forma indireta
de expressar o que não se pode expressar, como se a presença dos insatisfeitos
nas ruas fosse ela mesma uma linguagem alternativa provisória em que
corporificar a insatisfação, enquanto se aguarda por uma que dê imaginação
política para formular reivindicações alternativas. (Isto explicaria também o
sentido de êxito que as pessoas experimentam pelo simples fato de manterem e
ampliarem os protestos.)
O que a hipótese de Rancière levanta, contudo, é mais uma
percepção da ausência que é problemática, e não uma solução para ela. As ideias
de Žižek e Badiou também não fornecerão qualquer receita. Apenas novas
provocações. Mas talvez, num cenário em que toda solução que imaginamos é uma
reedição das mesmas ideias de sempre, das mesmas ideias que nos trouxeram até
aqui, seja exatamente de provocações férteis que precisemos. Elas nos forçam a
rever os limites de nossa imaginação política. Eis a hipótese levantada por
estes pensadores (que, embora tomem inspiração comum em Lacan e Marx, divergem
em diversos pontos; não queremos dizer que seu pensamento seja idêntico ou
convergente, apenas que, no que se refere à interpretação dos protestos, ambos
os pensadores expressaram algumas ideias semelhantes):
OITAVA INTERPRETAÇÃO: Os
protestos são a manifestação não de uma tendência unidirecional, e sim de um
conflito de forças políticas. Os manifestantes ao mesmo tempo se sentem
cansados de um modelo societal cujas consequências nocivas já são conhecidas
mas se sentem profundamente ligados ao mesmo modelo que questionam. Disto
decorre seu mutismo de reivindicação. Eles têm medo de formular o que querem,
porque não querem assumir compromissos, porque sabem que o que realmente querem
terá consequências, em termos de mudanças de seu estilo de vida e de assunção
de responsabilidades, que eles prefeririam não suportar. Os protestos elegem
alvos, o “governo” e o “grande capital”, formulados em termos vagos e difusos,
como anteparos em que se projetam suas insatisfações, exatamente porque este
alvo genérico não lhes pode responder de volta nem fazer o que eles querem. É
essencial formular metas não realizáveis, porque, desta forma, não serão
atendidas, e então nada mudará, mas ao mesmo tempo se terá a experiência de ter
“feito a sua parte”. É essencial requerer fins sem indicar os meios, requerer
vários fins ao mesmo tempo, na linguagem que mais expresse os desejos e que
menos os torne passíveis de realização. É essencial porque, dentro da lógica do
desejo, o ponto chave se encontra naquele intervalo entre o real e o desejado,
em que o desejado é visto como possível mas não é alcançado e em que sua não
realização pode ser tributada a outro que não a si mesmo.
O filósofo esloveno Slavoj Žižek (1949-) |
Esta interpretação envolve uma série de hipóteses bem mais
ousadas. Não temos aqui o tempo necessário para explicar por que, embora se
fale de contradição interna, forças antagônicas, desejo e medo, estes autores
na verdade não defendem uma tese que se possa chamar de psicologista, e sim estrutural.
Seria necessário mostrar como o imaginário do capitalismo e da modernidade está
vinculado desde o princípio com a estrutura do desejo e do medo, ou melhor, de
certas expressões, tipicamente modernas, do desejo e do medo – algo que tem a
ver com o vazio do eu e o preenchimento pelo a-mais criado pelo imaginário.
Mas, como disse, não há espaço para isto nesta postagem. É preciso
concentrar-se no principal, que é que os protestos são, nesta interpretação,
algo que contém uma insatisfação com potencial emancipatório, mas apenas uma
vez que esta insatisfação seja extraída deles, refletida e transformada em
ação. Os protestos são encontro de desejo de transformação e medo de
transformação, entre desejo do outro e desejo do mesmo (Žižek), e por isso não
são emancipatórios. Eles carregam e expressam a matéria-prima da transformação,
mas não são transformadores. Os protestos são formas de expressar o desejo de
transformação sem jamais engajar-se no processo da transformação, são “autodomestificações
de si mesmos” (Badiou).
O processo verdadeiramente transformador seria o pleno
engajamento político. Mas isto exigiria assumir compromissos, fixar uma agenda,
eleger lideranças, seguir em certa direção. É exatamente isto que os protestos
querem evitar a todo custo. Assim como Hamlet, que adia perpetuamente seu
engajamento na ação por meio de uma exigência de absoluta certeza e perfeita
oportunidade, os protestos evitam o engajamento por meio de exigências
excessivas de pureza e perfeição (Badiou). Eles tendem a se conceber como
isentos de ideologias, como separados de todos os partidos políticos e
interesses particulares, como adversários da política tradicional e do mercado
tradicional, mas só podem manter esta fantasia de pureza na medida em que
permaneçam paralisados e impotentes. Ao mesmo tempo, eles tendem a se conceber
como perfeitos e infalíveis, incapazes de formular propostas concretas, porque
toda proposta concreta será imperfeita e insatisfatória, e o movimento não
admite para si a possibilidade de errar, de macular sua autoimagem de perfeição
por meio de um engajamento com o mundo prático. Trata-se do enamoramento de si
mesmos (Žižek), contra o qual estes autores preveniam os protestantes do Occupy
Wall Street.
O que podemos retirar disto? Nisto se expressa, ao mesmo
tempo, um medo e uma esperança. O medo é de que os protestos se esgotem em si,
sejam convertidos em fins em si mesmos, seja por serem expressão terapêutica de
insatisfação, seja por rejeitarem compromisso pragmático com o mundo. É
necessário, para fugir deste risco, assumir uma agenda concreta e usar o poder
de pressão em direção à seu atendimento, mesmo que se chegue depois à conclusão
que o que se devia ter reivindicado era outra coisa. É necessário que algumas
conquistas significativas fiquem como legado e testemunho da força deste
movimento. Por outro lado, há também uma esperança. Os protestos carregam
consigo um potencial transformador que os ultrapassa. Eles são o anúncio de um
novo tempo, de uma nova política, que virá, mas ainda não chegou. É o futuro
que bate à porta do presente, pedindo passagem. Eles portam demandas a que apenas
as invenções institucionais de outra imaginação política poderão dar plena
expressão e realização. Um dia destes, que pode ser amanhã, depois de amanhã,
daqui a duas semanas ou daqui a dois meses, as pessoas cansarão de ir às ruas e
retomarão sua vida normal. Mas esta não será a morte do movimento – ou, pelo
menos, não precisa ser. Se, a cada vez, soubermos nos reconectar com este
potencial transformador, se exercermos a lembrança de que o futuro segue
pedindo passagem, então, poderemos, também a cada vez, dar nova expressão ao
movimento, via ação transformadora, via engajamento político com a causa da
vez, a demanda da vez. Importante é seguir o conselho de Žižek e não nos
enamorarmos de nós mesmos, não endeusarmos este movimento em si, mas darmos
corpo concreto e passo progressivo ao potencial que foi agora deflagrado.
Comentários
Parabéns André!
Obrigada por compartilhar suas ideias, conhecimentos e seus raciocínios.
Abraço!
Sobre o êxito do movimento ser atribuído ao seu caráter de agregador de massas, de um suposto despertar, "o gigante acordo", eu me pergunto se, por outro lado, o que ficará do movimento é uma demonstração explícita da nossa incapacidade em pensar em alternativas, em pensar o impossível. Porque o que tenho visto é uma atitude que fica entre um fascismo com uma máscara humana e um anarquismo Bakuniniano bobinho. Mas espero que num movimento retroativo a gente possa ver Evento de Badiou nisso tudo.
Obrigada pelo texto.
Fiquei curiosa sobre essa passagem "como o imaginário do capitalismo e da modernidade está vinculado desde o princípio com a estrutura do desejo e do medo". Gostaria muito que você me indicasse algumas leituras sobre isso.
Abraços e parabéns pelo blog. Acho que mais acadêmicos deveriam procurar formas de dialogar com o público não-acadêmico, e um blog é uma excelente iniciativa.
Parece que o Brasil começou em 1964, deixou de existir em 1985 e voltou a existir em 2002.
Com a imprensa se ocupando somente deste periodo e de forma interpretativa, como os eleitores com ate 30 anos votarão ano que vem? É, a eleição ja começou.
No mais, ótimo texto.