O Paradoxo da Filosofia do Direito
Qualquer um que goste de filosofia do direito e tenha se
aprofundado em seu estudo já deve em algum momento ter-se formulado o seguinte
problema: Embora a filosofia do direito tenha várias ferramentas que poderiam
tornar a atividade jurídica profissional muito mais qualificada do que ela é
hoje, parece improvável que isso venha a ocorrer de fato, pois, por um lado,
aqueles que atuam profissionalmente com o direito não têm nem o interesse nem o
tempo necessários para se dedicar ao estudo rigoroso dos autores e teorias da
filosofia do direito, enquanto, por outro lado, aqueles que de fato conhecem
estes autores e teorias são geralmente acadêmicos que ou estão afastados da
atividade profissional do direito ou não fazem dela sua prioridade de vida.
Instaura-se, assim, uma situação em que aqueles para quem a filosofia do
direito seria mais útil (no sentido de empregável profissionalmente) são os que
menos a conhecem, enquanto aqueles que mais a conhecem são aqueles para quem
ela é menos útil (no sentido referido). A este problema chamo aqui de “paradoxo
da filosofia do direito”, e esta postagem é dedicada a compreendê-lo e tentar
visualizar alguma solução para ele.
Formulação do
Paradoxo
Em primeiro lugar, é necessário mostrar que o referido
paradoxo existe. Isto está longe de ser óbvio, porque depende da aceitação de
uma série de premissas que boa parte dos juristas talvez não esteja disposta a
aceitar. Depende, em primeiro lugar, de aceitar que a filosofia do direito
tenha algo a dizer à prática jurídica. A maioria dos juristas acredita que a
filosofia seja um exercício intelectual abstrato e desvairado demais para ser
digna de sua atenção. Isto acontece geralmente por uma dose de ignorância da
parte dos juristas somada com uma dose de culpa por parte das universidades. Os
juristas creem que estudar filosofia do direito seja estudar teorias remotas
como a do mundo das ideias de Platão ou do contrato social de Hobbes e Locke.
Creem também que obras como a Teoria Pura
do Direito, de Kelsen, ou O Conceito
de Direito, de Hart, se referem a coisas muito distantes de sua prática
cotidiana. Mas ao verificarmos por que eles pensam desta forma vem à tona a
parcela de culpa da universidade. Os programas de filosofia do direito na
maioria das universidades não são tão atualizados com o estado da reflexão na
disciplina e obrigam os alunos a passarem mais tempo do que seria necessário
estudando teorias que têm mais interesse para historiadores da filosofia do que
para qualquer jurista com o mínimo de tino prático. Além disso, a maioria dos
professores que ministra a disciplina não faz o esforço necessário para mostrar
a seus alunos como aquelas teorias estão fortemente ligadas à prática do
direito e como uma série de casos concretos altamente problemáticos poderiam encontrar
soluções mais criativas e interessantes se fossem interpretados e abordados com
as ferramentas que os filósofos do direito nos fornecem. Neste sentido, um dos obstáculos
para reconhecer a existência do referido paradoxo é uma situação previamente
instalada de ignorância e preconceito que impede que os juristas reconheçam o
valor prático da filosofia do direito para o exercício profissional do direito.
Outra premissa de que o referido paradoxo depende e que pode
não ser consensual entre os juristas é que a filosofia do direito tenha alguma
contribuição a dar para o avanço da
prática jurídica. Mesmo que um jurista aceitasse que a filosofia do direito tem
uma conexão com a prática jurídica, ele poderia considerar que esta relação
consiste numa simples análise ou descrição conceitual da prática já existente
por parte da filosofia do direito. Neste caso, a filosofia do direito seria
capaz de constatar, analisar e explicar avanços já ocorridos na prática
jurídica, mas não seria capaz de fornecer ela mesma o impulso para avanços
novos. A filosofia do direito teria, em relação à prática jurídica, um papel
apenas analítico-descritivo, mas não crítico-prescritivo. Isto, novamente, se
funda num preconceito decorrente de ignorância da disciplina. Todos os
filósofos do direito mais relevantes, até mesmo aqueles que explicitamente se
comprometeram que suas teorias fossem meras descrições do direito tal como ele
é (Austin, Kelsen, Hart), formularam teorias que, se aceitas pelos juristas e
se usadas para orientá-los em sua atividade profissional, modificariam
sensivelmente sua prática jurídica. E isso é assim independentemente de qual a
pretensão original do filósofo em questão. Trata-se de um efeito inevitável da
seguinte situação: Em qualquer ramo da atividade humana, a prática se
transforma quando os agentes envolvidos nela passam a compreendê-la
teoricamente. Ter uma teoria de por que nossa prática é como é implica em estar
mais predisposto a fazer certas opções que outras, a aceitar certas mudanças
mas rejeitar outras, a usar certos argumentos e considerar outros inaceitáveis
etc. Por isso, por um lado, podemos dizer que toda filosofia do direito, por
mais que queira ser apenas analítico-descritiva, é sempre crítico-prescritiva –
se não em sua intenção, pelo menos em seus efeitos. Some-se a isto que todos os
filósofos do direito (inclusive os analítico-descritivos como Austin, Kelsen e
Hart) observavam crenças e práticas dos juristas que seriam abandonadas se eles
tivessem a compreensão correta do que o direito é e de como ele funciona, assim
como queriam que outras práticas e formas de argumento fossem favorecidas por
serem mais especificamente jurídicas. Isto nos permite dizer que nem mesmo no plano
das intenções nenhum filósofo do direito relevante foi jamais apenas um
analítico-descritivo: a intenção era sempre também crítico-prescritiva, mesmo
que ele próprio tentasse negar este fato.
Bom, digamos, então, que o jurista já tenha aceito a
primeira e a segunda premissa, isto é, já tenha aceito que a filosofia do
direito tem uma relação direta com a prática jurídica e que esta relação não é
apenas analítico-descritiva, mas também crítico-prescritiva, permitindo que a
filosofia do direito tente contribuir com avanços para a prática jurídica
profissional. Ele poderia ter aceito tudo isso como fazendo parte da intenção da filosofia do direito, mas
negar que tal intenção de fato se realize. Ele poderia crer que todos os
verdadeiros avanços da prática jurídica decorrem de inovações introduzidas
pelos legisladores ou por juristas práticos em sua atividade profissional.
Neste caso, todas as tentativas dos filósofos do direito de contribuírem para o
avanço da atividade jurídica seriam vãos, conselhos que nunca encontram atenção
dos ouvidos que tentam persuadir. Esta crença precisa ser desfeita em dois
passos, porque ela pode assumir duas formas distintas. Na primeira, a crença do
jurista assume a forma de descrição da história da prática jurídica,
pretendendo ser uma constatação de fato a respeito das fontes mais habituais
dos avanços da atividade profissional. Esta é a forma mais frágil, porque em
praticamente qualquer período da história do direito moderno será possível
apontar mudanças da prática jurídica que foram inspiradas por conceitos e teses
inicialmente pensadas apenas por teóricos e acadêmicos. Como descrição da
história da atividade profissional do direito, ela falha, porque é simplesmente
falsa e conta com inúmeros contraexemplos capazes de refutá-la. Na segunda
forma, a crença do jurista assume a forma de suspeita cética
anti-intelectualista, isto é, de crença de que quem não esteja diretamente
envolvido com a atividade prática jamais poderá fornecer uma contribuição de
valor para o avanço desta atividade. Esta tese dificilmente pode ter um
embasamento intelectual sério, sendo mais a expressão de uma hostilidade
intuitiva e irracional. Os mesmos contraexemplos que poderiam ser usados para
refutar a versão descritiva da crença do jurista poderiam ser usados com igual
sucesso para refutar a versão anti-intelectualista. Defender que conceitos e
teses pensados originalmente por acadêmicos não tenham real valor para a
prática jurídica seria negar valor a coisas como, para ficar numa lista bem
restrita, o controle de constitucionalidade, a interpretação teleológica e
sistemática, os princípios jurídicos como normas, a distinção entre posse e
propriedade, a exigência de tipicidade penal, a desconsideração da pessoa
jurídica, casos de inversão do ônus da prova, conceitos como hipossuficiência,
vulnerabilidade etc. Quem queira se colocar do lado de uma tese anti-intelectualista
estaria em sérios apuros para tentar provar que a lista acima elencada não
contempla avanços de real valor para a prática jurídica. Pelo contrário, a
história da atividade jurídica profissional oferece inúmeros exemplos de
avanços que só foram possíveis com base em teorias abstratas elaboradas por
juristas e filósofos que eram, em primeiro lugar, pensadores acadêmicos.
Se as três premissas anteriores foram aceitas, o jurista já
se convenceu de que de fato os que lidam com a atividade jurídica profissional teriam
boas razões para darem atenção ao que os filósofos do direito dizem e tentarem
incorporar algumas de suas sugestões de avanço à sua prática cotidiana. Mas os obstáculos
para que isto aconteça vão além do mero desinteresse (fundado em preconceito e
ignorância, circunstâncias contingentes e conjunturais do quadro cultural) dos
juristas práticos. Há também motivos estruturais que tornam esta comunicação
entre teoria e prática um desafio difícil de vencer. Um deles é um obstáculo quantitativo
bastante real: o conhecimento satisfatório dos vários autores e teorias
relevantes do quadro atual da filosofia do direito requer anos de leitura e
dedicação. Mesmo que às vezes as graduações e pós-graduações de direito tentem
vender a falsa ideia de que o núcleo da filosofia do direito contemporânea se
encontra em alguma controvérsia entre dois autores, como o debate Hart-Dworkin,
ou o debate Dworkin-Alexy, ou o debate Habermas-Alexy, ou o debate
Habermas-Luhmann etc., esta redução do quadro contemporâneo ao debate entre
dois contendores é não apenas uma hiper-simplificação, mas verdadeiramente uma
distorção de um horizonte teórico que é muito mais rico e diversificado.
Correndo o risco que sempre se corre ao fornecer listas, arrisco-me a dizer que
o conhecimento básico de filosofia do direito hoje passa pela leitura, no mundo
de língua inglesa, de Hart, Fuller, Dworkin, McCormick, Raz, Finnis, Marmor, Shapiro,
Coleman, Himma, Krammer, Schauer, Green, Waldron, Leiter, Posner e Fish e, no
mundo europeu, de Kelsen, Gadamer, Wittgenstein, Habermas, Luhmann, Viehweg,
Perelman, Foucault, Alexy, Honneth, Ricoeur e Derrida. Isto porque este esboço
de lista básica se refere a autores, porque, em obras, o número seria muito
maior, considerando a leitura necessária dos textos originais e de
comentadores, críticos e desenvolvedores da teoria. Não é à toa que hoje em
dia, se alguém quiser ser um professor de fato competente em filosofia do
direito, não poderá ser professor de nenhuma outra disciplina, porque a
filosofia do direito sozinha já requer estudo constante dos autores relevantes
e atenção sete dias por semana a novos textos e desenvolvimentos dos debates
principais. Ora, se o conhecimento rigoroso da filosofia do direito sequer é
compatível com o ensino de outra disciplina, como é que seria compatível com o
exercício dedicado e militante de uma profissão jurídica não acadêmica? Como
seria possível para o jurista prático usar seu tempo livre de algumas noites
por semana, de alguns finais de semana por mês, de no máximo um mês por ano
para dedicar-se a, além de ter vida pessoal, colocar-se a par das teorias importantes
e dos desenvolvimentos recentes da filosofia do direito?
Além deste obstáculo quantitativo, há ainda outro desafio
estrutural, desta vez qualitativo: o fato de que obras filosóficas se apoiam em desenvolvimentos
teóricos de outros autores ou até de outros campos dentro e fora da filosofia.
Como entender bem Kelsen sem entender Kant e o neokantismo de Marburgo e de
Baden? Como entender bem Hart sem entender a filosofia da linguagem comum
desenvolvida em Oxford? Como entender bem Habermas sem saber o que é a teoria
crítica e como Habermas se distingue do projeto da primeira geração da teoria crítica
quase na mesma medida em que a primeira geração se distinguia do marxismo
ortodoxo? Como entender bem Raz e Shapiro sem entender a teoria das razões de
agir de Searle, Davidson e Brandom? Como entender bem Gadamer sem conhecer
Husserl e Heidegger por um lado e Schleiermacher e Dilthey por outro? Como
entender Foucault e Derrida sem o pano de fundo do estruturalismo de Saussurre
e Lévi-Strauss e a crítica do pós-estruturalismo às limitações do primeiro?
Como entender Leiter sem o pano-de-fundo da crítica cultural de Nietzsche e
Heidegger e da guinada pragmatista e naturalista de Quine e Putnam? Toda
pretensão de conhecer bem certo ponto ou autor ou obra específica da filosofia
do direito sem o quadro e o contexto da filosofia contemporânea como um todo
não é outra coisa que autoengano e ilusão. Se é assim, como o jurista prático,
que não teve treinamento filosófico especializado e que já sofre para entender
Kelsen, Hart ou Dworkin vai também entender Kant, Nietzsche, Heidegger,
Davidson ou Putnam? Conforme se desfia o novelo teórico da filosofia do
direito, o seu estudo e aprendizado mais profundos vão se mostrando cada vez
mais incompatíveis com o exercício de qualquer outra atividade profissional. Na
verdade, o filósofo do direito dedicado a fazer o máximo da própria formação
tem boas razões para olhar a altura da montanha de saber a ser escalada,
suspirar e perguntar-se se o tempo de uma vida inteira é mesmo suficiente para
o que a disciplina exige que se alcance em termos de verdadeira profundidade e
excelência.
Ora, é justamente diante deste quadro que se coloca o
paradoxo que formulamos no início da postagem. Compreender bem o estado atual
da filosofia do direito é um projeto que requer tanto tempo e esforço de
autoformação que o único modo de satisfazê-lo é afastar-se de qualquer outra
atividade e dedicar-se exclusivamente à filosofia do direito. Mas, então,
aquele que mais se dedica a ela e mais sabe como aplicá-la à prática será
justamente aquele que tem que abandonar a prática. Por outro lado, aquele que
se dedica à atividade jurídica profissional não tem nem tempo nem formação
suficientes para compreender adequadamente o estado atual da filosofia do
direito. Cria-se o impasse que formulamos no primeiro parágrafo desta postagem:
aqueles para quem a filosofia do direito seria mais útil são os que menos a
conhecem, enquanto aqueles que mais a conhecem são aqueles para quem ela é
menos útil. Vejamos agora de que modo os que se dedicam à filosofia do direito
costumam pensar que tal paradoxo deva ser encarado.
Tratamentos do
Paradoxo
Vou apresentar e contrastar agora três diferentes
tratamentos para o referido paradoxo. Dois deles, o tratamento idealista e o
tratamento cético-realista, compartilham uma premissa comum, a saber, o individualismo cognitivo, a tese de que,
para que um conhecimento se incorpore à prática jurídica, é preciso que cada
indivíduo, no caso, cada profissional do direito, assimile aquele conhecimento
e o coloque em prática em sua respectiva atividade profissional. Já o terceiro
tratamento, o institucionalista, abre mão do individualismo cognitivo em favor
do institucionalismo cognitivo, a
tese de que, para que um conhecimento se incorpore à prática jurídica, não é
preciso que cada jurista o assimile e coloque em prática por iniciativa própria
individual, mas, ao contrário, é preciso apenas que tal conhecimento se converta
num padrão institucional de produção e reprodução do direito, padrão que, uma
vez instaurado, obriga todos os profissionais a se ajustarem a ele em suas
respectivas práticas profissionais. Vamos primeiro expor os tratamentos
idealista e cético-realista, porque são os mais comuns e intuitivos, e, a
partir de suas deficiências, mostrar a necessidade de abandonar o
individualismo cognitivo e transitar para o tratamento institucionalista.
Segundo o tratamento idealista, a filosofia do direito só contribuirá
para o avanço da prática jurídica quando os juristas profissionais se tornarem
também filósofos do direito, isto é, suficientemente versados nos autores e
teorias da filosofia contemporânea do direito a ponto de saberem, ao lidar com
casos concretos desafiadores, exatamente a que conceitos e teses recorrerem e
exatamente como aplicá-las para a solução do caso em questão. O tratamento
idealista fixa como meta da filosofia do direito a conversão da comunidade
profissional dos juristas numa comunidade filosófica, em que cada juiz,
advogado, promotor, defensor, escrivão, delegado, técnico judiciário,
assistente judicial e até estagiário jurídico estivesse apto para reconhecer
quando um caso concreto cai no padrão em que pode ser examinado pela ideia de
moldura de possibilidades de Kelsen, de regras secundárias de Hart, de direitos
como trunfos de Dworkin, de razões protegidas de Raz, de mandados de otimização
de Alexy, de cooriginariedade entre autonomia pública e privada de Habermas, de
descarga funcional para redução de complexidade de Luhmann, de diálogo e fusão
de horizontes de Gadamer, de fonocentrismo e desconstrução de Derrida, de
identidade narrativa de Ricoeur etc. Daí que a filosofia do direito tenha que
ser uma disciplina obrigatória do currículo da graduação, tenha que ser pedida
nos exames de ordem e nos concursos jurídicos, tenha que ser cobrada nas
seleções e disciplinas da pós-graduação e tenha que ser ministrada em cursos e
palestras de formação e atualização para os profissionais da advocacia, do
judiciário e do ministério público. Nesta concepção, um dia os filósofos
conseguirão conscientizar todos os juristas da necessidade de estudar com
seriedade a filosofia do direito e, neste dia, os juristas dedicarão a este
estudo o mesmo esforço que dedicam à sua atualização legislativa e
jurisprudencial. Apenas aí é que se terá uma comunidade de juristas-filósofos,
e apenas ela é que realizará plenamente a integração da filosofia do direito à
atividade jurídica profissional cotidiana.
Uma segunda posição é representada pelo tratamento
cético-realista. O cético-realista compartilha com o idealista a seguinte
crença: de fato, apenas uma comunidade de juristas-filósofos realizaria
plenamente a integração da filosofia do direito à prática jurídica. Mas, em vez
de acreditarem que esta meta é possível, a projetarem como fim a ser alcançado
no futuro e defenderem formas de chegar até ela, os cético-realistas têm um
diagnóstico seco e pessimista sobre o assunto: a comunidade de
juristas-filósofos nunca existiu até hoje e nunca vai existir em tempo algum.
Em seu favor, acumulam amplos dados e observações. A maioria dos juristas
profissionais não têm vocação nem temperamento filosófico. São indivíduos
capazes de identificar problemas pontuais e ávidos por encontrarem soluções
pragmáticas bastante diretas, que envolvam pouca reflexão conceitual e pouco
esforço argumentativo. Existe, por assim dizer, um hiato cognitivo insuperável entre aquilo que a filosofia do direito
exige do jurista prático e aquilo que o jurista prático está disposto e
inclinado a fazer. Além disso, todo jurista profissional que começa a empregar
conceitos e teses de filósofos em sua prática acaba tendo uma compreensão
apenas parcial das teorias que usa e acaba empregando-as numa versão manualesca
e caricatural, uma em que todo conflito de interesses é um conflito de
princípios que se resolve por ponderação a partir da proporcionalidade, uma em
que os direitos serem compreendidos como trunfos significa que a única resposta
correta é uma que trata o direito como absoluto mesmo em vista de consequências
inaceitáveis, uma em que a teoria do discurso pede que as decisões judiciais
sejam sempre produto de consenso entre as partes sem a intervenção da lei
democrática e de um terceiro dotado de autoridade, uma em que a redução de
complexidade se torna uma solução universalmente aplicável sempre que um
interesse burocrático ou econômico estiver em jogo e quiser reclamar primazia
absoluta sobre outras considerações etc. O jurista não apenas tem um perfil e
temperamento hostil ao rigor filosófico, mas tem também o gosto e a vocação
para o clichê e para a hiper-simplificação que impedem qualquer investigação
filosófica séria. Estas constatações, somadas aos desafios quantitativos e
qualitativos que expusemos na seção anterior da postagem, convencem o
cético-realista de que a filosofia do direito praticada com seriedade e a
prática jurídica com sua verve praxista e redutora sempre seguirão caminhos
distintos. A filosofia do direito rigorosa será sempre uma coisa de filósofos,
jamais algo compartilhado pelos juristas em geral.
Aparentemente, o idealismo e o ceticismo realista concordam apenas
que a integração da filosofia do direito à prática jurídica dependeria da
criação de uma comunidade de juristas filósofos, mas discordam quanto a esta
meta ser ou não alcançável. Mas, como já adiantamos no início desta seção da
postagem, há na verdade uma premissa oculta que ambos os tratamentos do
paradoxo da filosofia do direito também compartilham e que precisa ser trazida
à tona e submetida à crítica. Ambos os tratamentos acreditam que, para que um
conhecimento se incorpore à prática, é preciso que cada indivíduo agente
daquela prática assimile aquele conhecimento e o coloque em ação. Noutras
palavras, a unidade que realiza e centraliza o processo de aprendizado e
mudança é sempre o indivíduo, cada um dos profissionais de certo campo prático.
Por isso, tal concepção merece o nome de individualismo
cognitivo. Se os indivíduos não derem o primeiro passo de adquirirem certo
conhecimento e o segundo passo de o colocarem em prática, então, aquele
conhecimento jamais se incorporará à sua prática. Segundo a posição que
defenderemos aqui, se o individualismo cognitivo estivesse correto, então, o
idealismo teria razão a respeito de qual é a meta a ser alcançada, mas o
ceticismo realista teria razão a respeito da remota viabilidade deste projeto.
Ou seja, o filósofo do direito estaria condenado a ser, no aspecto normativo
(de como as coisas devem ser), um idealista, tentando com todas as forças criar
uma comunidade de juristas filósofos, mas ser ao mesmo tempo, no aspecto
empírico (de como as coisas são), um cético-realista, incapaz de identificar no
mundo concreto do direito sinais de que aquela meta possa de fato ser
realizada. Estaria, em resumo, condenado àquela situação chamada consciência infeliz, que Hegel ilustra
na Fenomenologia do Espírito na
figura do estoico no fim do mundo grego, mas que serve como representação
universal de qualquer situação em que se esteja obrigado a buscar o que se sabe
ser irrealizável.
Nossa proposta é romper com esta dicotomia da consciência
infeliz, recusando de uma vez tanto o tratamento idealista no plano normativo
quanto o cético-realista no plano empírico. Para isto, rejeitamos a premissa de
fundo do individualismo cognitivo e o substituímos por uma tese alternativa,
que chamamos de institucionalismo
cognitivo. No caso da prática jurídica, o institucionalismo cognitivo propõe
que os juristas práticos ajustam sua atividade profissional aos padrões e
demandas institucionais com que esta atividade está formatada em cada contexto
histórico-cultural. Portanto, se as instituições incorporarem certos ganhos
cognitivos, os indivíduos terão que ajustar sua atividade a estes ganhos, incorporando-os
por adesão, sob pena de não adaptação que poderia resultar em fracasso
profissional. Desta maneira, é possível explicar, sem recorrer a nenhuma
hipótese idealista a respeito do aprendizado e mudança de cada jurista
individual, como teorias como a ponderação alexiana se incorporaram ao
vocabulário normal da prática jurídica e por que sua compreensão continua até
hoje a ser bastante distorcida: na medida em que os tribunais superiores
passaram a recorrer à ponderação e aceitar demandas fundadas na ponderação, a
teoria se incorporou ao padrão institucional e os juristas práticos trataram de
adaptar-se a isto, tentando entender de que se tratava e como podiam servir-se
dela; contudo, como esta assimilação institucional se deu na quase totalidade
das vezes de modo incompleto e com viés casuístico, o aprendizado por adesão
dos juristas seguiu o mesmo caminho – o que prova que o aprendizado dos
juristas não se deu por via do estudo rigoroso de Alexy, e sim por via do ajustamento
de sua prática a um novo padrão incorporado pelos tribunais, na forma e na
medida em que tinha sido incorporado (inclusive com os déficits teóricos). Se a
hipótese do institucionalismo cognitivo estiver certa, então, a incorporação da
filosofia do direito à prática jurídica não se dá de baixo para cima, pela
criação de uma comunidade de juristas-filósofos, e sim de cima para baixo, pela
assimilação de ganhos cognitivos pelas instituições e pelo ajustamento da
atividade profissional aos padrões institucionais, produzindo, assim, um
aprendizado por adesão.
Se pensarmos bem, veremos que aqueles exemplos que citamos
na primeira seção da postagem de conteúdos originalmente criados por acadêmicos
e que se incorporaram à pratica jurídica cotidiana eram fatos históricos
inegáveis a que nem o idealismo nem o ceticismo realista conseguiam explicar
adequadamente. Eles eram ganhos cognitivos obtidos a partir da filosofia do
direito e incorporados à prática jurídica sem que jamais tenha se verificado a
existência da comunidade de juristas-filósofos que tanto idealistas quanto
realistas-céticos dizem que era necessário existir para tais ganhos acontecerem.
Com o institucionalismo cognitivo, passamos a dispor de uma explicação para
estes ganhos históricos do passado, que é que em todos os casos as teorias dos
filósofos tiveram impacto sobre as instituições jurídicas de sua época,
transformando o modo como a prática jurídica tinha que necessariamente se
organizar para se ajustar a tais instituições. O controle judicial de
constitucionalidade, que fora por muito tempo só uma hipótese abstrata e
esdrúxula defendida por meia dúzia de constitucionalistas acadêmicos, tornou-se
nas mãos de Marshall a ferramenta certa na hora certa para resolver, em Marbury
v. Madison, um problema de relação entre constituição, legislação e judiciário
que já vinha se arrastando há meio século nos EUA. Do mesmo modo, a ideia de tomar
os institutos protetivos da criança, da mulher e do idoso e transferi-los
analogicamente para as relações de trabalho, criando a hipossuficiência e a inversão
do ônus da prova, que era uma ideia de uma dúzia de filósofos socialistas
franceses, espanhóis e italianos, se tornou também a ferramenta certa na hora
certa para resolver os problemas dos contratos de trabalho na longa
controvérsia do direito civil com os sindicatos e ligas operárias. Nestes
casos, a filosofia do direito cria uma nuvem de ideias que paira sobre as
relações sociais problemáticas e que serve, vez por outra, de fonte de que extrair
soluções para problemas, incorporando-as institucionalmente. Em pouco tempo,
todos os juristas passam a falar o vocabulário das teorias inspiradoras das mudanças
institucionais e a formular suas demandas e soluções dentro dos parâmetros dos conceitos
e teses destas teorias – não porque individualmente tenham sido convertidos à
aceitação de suas ideias, mas porque foram forçados institucionalmente a se ajustarem
ao novo padrão.
Se acreditarmos no institucionalismo cognitivo, então, a
meta com que a filosofia do direito deveria lidar não é a utopia da criação de
uma comunidade em que todos os juristas são filósofos, e sim a meta muito mais
realista de criação de uma comunidade formada de filósofos do direito que seja
fortemente engajada e preocupada com os problemas de seu tempo, ativamente
propositora e reformuladora de soluções, constantemente fiscalizadora e crítica
da atividade das instituições e solicitamente ocupada de traduzir as demandas
sociais de sua época em ferramentas conceituais que sejam utilizáveis pelas
instituições. Noutras palavras, a comunidade dos filósofos do direito deve ter
uma relação horizontal com as instituições e uma relação vertical com a
sociedade. Na relação horizontal, deve, por um lado, fiscalizar e criticar o
que as instituições fazem, tentando elevar o nível qualitativo com que elas
incorporam ganhos cognitivos da filosofia do direito e deve, por outro lado, abastecer
as instituições de propostas e sugestões de como elas podem resolver seus
problemas concretos no contexto do aqui/agora. Na relação vertical, a
comunidade dos filósofos do direito deve, por um lado, informar à sociedade o
que suas instituições vêm fazendo e os problemas envolvidos em suas decisões e
deve, por outro lado, recepcionar demandas sociais concretas e convertê-las em
ferramentas conceituais com possibilidade de uso institucional. Esta comunidade
de filósofos do direito que é filtro crítico das instituições e é reverberadora
teórica das demandas sociais seria a substituta da comunidade dos
juristas-filósofos quando se transita do individualismo para o
institucionalismo cognitivo.
O defensor do tratamento cético-realista pode se sentir
bastante satisfeito com nossa posição. Afinal, estamos dizendo que, fosse o
individualismo cognitivo a única alternativa disponível, a posição que teria
razão seria a cético-realista. Apelar para a alternativa do institucionalismo
cognitivo é reconhecer que em certa medida o ceticismo
realista tem razão. Mas é exatamente neste ponto que o defensor do
tratamento idealista do paradoxo da filosofia do direito talvez saltasse contra
nossa hipótese e apontasse o seguinte: Mesmo que o institucionalismo cognitivo
tenha razão, ele resolve apenas o problema de como ganhos cognitivos da
filosofia do direito podem se incorporar à prática jurídica, mas não resolve o
problema de que, antes e depois desta incorporação, os juristas profissionais
continuam sendo agentes não reflexivos, que meramente aderem a padrões em vez
de elegerem conscientemente entre teorias rivais, que meramente se ajustam às
instituições em vez de ativamente criticá-las e transformá-las. O idealista
poderia dizer, em suma, que nossa hipótese do aprendizado por adesão
institucional não resolve o problema de como tornar os juristas pensadores autônomos,
reflexivos e críticos. Não haveria muito que poderíamos dizer em nossa defesa
neste caso. Poderíamos talvez dizer que a adesão institucional não é simples
adaptação comportamental reflexa, mas envolve ganhos de compreensão e percepção
com os elementos da nova teoria incorporada. Isto, contudo, não resolve o
problema que o idealista levanta. Mesmo que, quando a instituição assimila a
teoria X, os agentes se adaptem a X de modo que exige aprendizado e ganho
cognitivo real, eles estão ainda condicionados a se adaptarem a X, e não, por
exemplo, a Y, que a instituição não contemplou e que poderia ser uma teoria muito
mais atraente se estes agentes fossem adequadamente expostos às duas. Mesmo que
no aprendizado por adesão haja ganhos cognitivos reais, não existe escolha informada
e autônoma da direção para onde os
ganhos cognitivos serão desenvolvidos. A direção é dada pela instituição.
Para esta objeção não temos resposta adequada. Mas devemos
distinguir aqui entre o que o institucionalismo cognitivo pode e o que ele não
pode explicar. Ele pode explicar de modo realista como é possível que ganhos cognitivos
da filosofia do direito venham a ser incorporados nas práticas profissionais
dos juristas sem que seja necessário existir uma comunidade de juristas-filósofos.
O fato de se conseguir explicar isto representa uma vantagem tanto no sentido
de entendermos como estes trânsitos entre teoria e prática ocorrem ao longo do
tempo quanto no sentido de trocarmos a meta utópica da criação de uma
comunidade de juristas-filósofos pela meta mais realista de criação de uma comunidade
social-crítica de filósofos do direito em constante troca com as instituições e
com a sociedade. Contudo, aquilo que a hipótese do institucionalismo cognitivo
não consegue explicar é como é possível tornar cada jurista individual um
pensador autônomo, reflexivo e crítico. Para este fim, a adesão institucional
não basta. Se este continuar sendo um fim a ser buscado – dando continuidade ao
projeto do Iluminismo –, então, talvez a atividade pedagógica dos filósofos do
direito em relação aos juristas futuros e atuais tenha que continuar a ser
regida pela meta da comunidade dos juristas-filósofos, nem que seja como ideal
regulador ou utopia de orientação com que dirigirmos o modo de transmitir a
filosofia do direito em sala de aula.
Comentários
Por fim, se optarmos pela continuidade da proposta (ainda que utópica) da filosofia do direito como forma possível de tornar cada jurista individual um pensador autônomo, reflexivo e crítico, significa que a abordagem institucional cognitiva não substitui completamente o individualismo cognitivo; pelo menos enquanto não aderirmos totalmente à posição cético-realista e mantermos alguma possibilidade de atingir os sujeitos individualmente.
Dois comentários. Um pessoal e outro acadêmico.
1. Quando desenvolvi minha monografia de graduação nesse semestre (formo-me nesse ano), a orientadora disse: "aonde você vai aplicar essas abstrações? Melhor seria colocar uma jurisprudência do STF". O meu TCC versou sobre a os limites do neoconstitucionalismo a partir de uma leitura procedimental do direito.
2. O prof. Streck já vem denunciando, em outros termos, o "paradoxo da Filosofia do Direito, levantado por você. Veja-se, pois, que (i) os currículos da graduação em Direito são toscos em relação à Filosofia do Direito e (ii) os alunos, e muitos professores, desprezam a Filosofia do Direito. A parir dessas premissas, a Filosofia do Direito passou a ser exigida, por exemplo, no exame da Ordem, na primeira etapa. Dois ou três pontos podem ser colocados. (i) A exigibilidade da Filosofia do Direito nos concursos, como magistratura e OAB, reafirma a carência dessa displina na prática jurídica. (ii) A exigibilidade da Filosofia do Direito nos concursos quer trazer para a ptrática o "lado humanístico", lado este que "nunca" existiu na prática jurídica. (iii) No caso da OAB, exigir Filosofia do Direito na primeira etapa, isto é, em questões objetivas, contraria a os pontos (i) e (ii).
Parabéns prof. André pelo excelente texto. Abs, Thiago.
Quanto à segunda pergunta, acho que a melhor resposta seria a seguinte: na sua atuação pedagógica, na formação de juristas futuros e atuais, a filosofia do direito pode se servir do ideal regulador da comunidade dos juristas-filósofos para orientar sua prática; mas, na sua atuação social, especialmente no diálogo com a sociedade e com as instituições, deve abrir mão do individualismo cognitivo em nome do institucionalismo cognitivo, sob pena de não se fundar numa meta social realizável. Acho que esta distinção, entre o papel pedagógico e o papel social, é importante e deveria ter ficado mais marcada no texto da postagem. Ainda bem que sua pergunta deu oportunidade de fazer isto.
Quanto à primeira questão, então de fato a pressão que a filosofia do direito poderia fazer sobre as instituições continuaria sendo realizada somente ou principalmente pela crítica e vigilância constante sobre sua atuação, com base no melhor debate racional. Entendo que é a forma legítima de influência, mas temo pelos momentos em que as instituições serão as únicas com poder coercitivo prático sobre o que (e como) será absorvido da filosofia. Bem, apesar disso creio que não seja possível (talvez nem desejável) empregar uma correspondência direta entre o debate filosófico e a absorção dele por parte das instituições.
E quanto à segunda questão, acho que de fato fica mais interessante distinguir um papel pedagógico da filosofia do direito na situação do idealismo (no plano do individualismo cognitivo) de um papel social no plano do institucionalismo cognitivo.
Obrigada pelo excelente texto e pela resposta =)
No início da era moderna, ou antes, a prisão começou a ser concebida como um modelo alternativo às penas capitais e ao suplício. Muitos jusfilósofos teriam proposto a prisão e o fim da pena de morte como alternativas, calcados em uma argumentação e uma fundamentação predominantemente humanista. Em muitas sociedades europeias, a práticas das instituições penais se modificou, de modo a se instituir a prisão como pena e se abolir a pena de morte. A questão é: até que ponto se pode dizer que a teoria dos filósofos que se debruçavam sobre a questão foi responsável pela mudança institucional? Eles conceberam a ideia (a prisão como pena) sob um certo fundamento (no geral, humanista), mas Foucault tanto se esforçou para dizer que a prisão foi incorporada à prática das instituições com um fundamento pragmático-estrutural. Isto é, a instituição incorporou a ideia (a prisão como pena), mas sob um fundamento diverso daquele dado pelos filósofos (pragmático, e não humanista). Como se dá assim a relação entre teoria e prática?
Se a prática da instituição incorpora a 'resposta' dada pela filosofia, mas não a 'argumentação' dada por ela, como se poderia admitir a terceira premissa - de que a intenção dos filósofos pode e costuma ser realizada?
Excepcional texto! Concordo com vocês. Existe um grande déficit no que diz respeito ao ensino de filosofia do direito nas faculdades. Outra questão que vejo é o fato de que o estudo da filosofia do direito requer maturidade por parte do aluno, que, muitas vezes, arreassem saiu do ensino médio e nem sabe se é no direito que irá ter uma carreira.
Reparei isso, pois direito é minha segunda graduação e na minha faculdade disciplinas como hermenêutica e teoria da argumentação são disciplinas de 1º e 2º semestre. Logo de infinito percebi a importância dessas cadeira para minha formação humanista e como profissional (optei por seguir a carreira da advocacia). Contudo, confesso que tive a oportunidade de não trabalhar até a metade da faculdade, o que possibilitou estudar, com um pouco mais de atenção, autores como Alexy, Hart e Raz. Assim, acredito que, como em minha faculdade, o estudo da filosofia do direito seja incentivada desde o primeiro dia de aula, para que o aluno começe esse estudo o quanto antes.
Agora lhe faço uma pergunta, sobre autores pressupostos para ler outros autores.
Se a pessoa deseja aprofundar os estudos em Posner, que autores você considera importante conhecer, para melhor compreendê-lo??
Um grande abraço desde o Rio Grande do Sul.
Atenciosamente,
Pedro Acosta