Democracia Deliberativa: Esclarecimentos e Mal-Entendidos
É comum confundir democracia deliberativa com democracia
participativa. Quem faz esta confusão pensa que os teóricos da democracia
deliberativa criticam a democracia representativa e defendem que cada vez mais
decisões políticas sejam tomadas por fóruns de participação direta como audiências
públicas, conselhos gestores, orçamento participativo etc. Isto é um engano.
Democracia participativa é uma concepção de democracia que defende maior
participação dos cidadãos na tomada das decisões que concernem aos seus
interesses. Ela se opõe à democracia meramente representativa, isto é, aquela
em que a única participação dos cidadãos é na eleição dos representantes, que
daí por diante tomam todas as decisões em nome dos que os elegeram.
A democracia participativa é, portanto, uma discussão sobre
o “quem”, sobre quais são as pessoas que deveriam tomar as decisões quando os
interesses de todos estão em jogo. A resposta da democracia participativa a
esta questão é que devem ser, em proporção cada vez maior, os próprios cidadãos
os responsáveis por tais decisões. Portanto, a democracia participativa é (1)
crítica da democracia representativa, (2) concernente à questão de “quem” deve
tomar as decisões e (3) propositiva de fóruns alternativos de decisão.
Já a democracia deliberativa é (1) crítica da democracia
agregativa, (2) concernente à questão do “como” as decisões são tomadas e (3)
propositiva de modos alternativos de abordar e interpretar os procedimentos de
decisão que já existem. O que a democracia deliberativa critica é uma concepção
de democracia em que, para cada questão que seja levantada, cada um dos
responsáveis por decidir tenha uma opinião e preferência prévia sobre o assunto
e a tomada de decisão consista numa simples contagem de qual das alternativas
de decisão conta com a adesão do maior número de indivíduos. Esta é uma
concepção agregativa de democracia. Nela a tomada de decisão é um processo de
verificação quantitativa de adesões previamente formadas. Portanto, nela (a) as
opiniões e preferências individuais prévias informam a decisão, (b) a tomada de
decisão não afeta a formação ou transformação das opiniões e preferências e (c)
a decisão final depende do número de indivíduos que tinham adesão prévia a
certa alternativa.
Em contraste, a democracia deliberativa considera que (a) as
opiniões e preferências prévias dos indivíduos são o ponto de partida, mas não
o ponto de chegada do processo de decisão, (b) a tomada de decisão é um
processo de formação e transformação de opiniões e preferências por meio de argumentos
e (c) a decisão final depende de consenso alcançado por todos em favor de certa
alternativa como igualmente boa para todos. Na verdade, a grande diferença da
democracia deliberativa para a agregativa é o papel que ela concede aos
argumentos. Uma deliberação, diferentemente de uma mera votação, não é uma
contagem de quantos são a favor de quê, e sim uma busca cooperativa da melhor
decisão mediante uma tentativa, dos partidários de cada um dos lados, de
convencer os demais com base em boas razões que sua proposta é superior. Ela pressupõe
que cada um dos lados esteja disposto a dar e receber razões, que seja capaz de
crítica e passível de convencimento e que esteja mais comprometido com
encontrar a melhor decisão que com fazer prevalecer a sua proposta inicial a
qualquer preço.
Ela concebe as opiniões e preferências prévias como
expressões de uma posição não esclarecida e não problematizada acerca da
questão, o tipo de coisa que pode ser ampliada, reformada e abandonada conforme
seja exposta a pontos de vista diferentes e contra-argumentos poderosos. Desta
forma, supõe-se que, ao fim de uma argumentação racional, aberta, amistosa e
produtiva, tenha havido um processo de aprendizado de todos os lados envolvidos
e eles tenham sido capazes de chegar a uma proposta que lhes pareça, à luz dos
fatos conhecidos, interesses relevantes e argumentos examinados, igualmente boa
para todos. Por isto, a conclusão de um processo (ideal) de deliberação seria
um consenso entre todos os concernidos (e não uma vitória da posição
majoritária sem ter sequer ouvido as razões da posição minoritária).
Pode-se pensar que, por causa deste compromisso da
democracia deliberativa com o consenso, ela é contrária à regra de maioria e
defende que decisões só sejam tomadas quando já se tenha alcançado unanimidade
em torno de certa posição. Não é assim. A democracia deliberativa sabe que a
argumentação que funciona como aprendizado que leva ao consenso universal é um
ideal regulador, e não uma exigência concreta. O que ela exige, em termos
concretos, é que a tomada de decisão tenha sido antecedida de um amplo e
cuidado debate de ideias, em que cada lado tenha feito o maior esforço possível
para convencer o outro com base em razões, dando argumentos, usando exemplos, dirimindo
dúvidas, desfazendo mal-entendidos, respondendo a dificuldades, rebatendo
contraexemplos etc. Se se tiver alcançado um ponto em que se está certo de que
todos os lados estão bem informados das razões em favor e em contrário a cada
posição em jogo e de que divergências que ainda persistam já são produto de
convicções firmes e esclarecidas, nada impede que se aplique a regra
majoritária e se verifique qual das alternativas conta com maior adesão. Porém,
mesmo que a decisão acabe resultando desta verificação, ela não terá sido
agregativa, porque não contou o número de votantes para cada posição a partir
de suas opiniões e preferências prévias ao debate, e sim a partir das que foram
formadas e transformadas por meio dele. Terá havido, mesmo sem consenso, um
significativo ganho de teor cognitivo, isto é, de qualidade da reflexão e
crítica, na decisão final que se terá alcançado (mesmo com uso da regra
majoritária).
Pode-se pensar também que a democracia deliberativa é uma teoria
sobre como as decisões políticas deveriam ser tomadas e que ela quereria
reformar a política para torná-la uma atividade mais racional. Mas isto também
é um erro. A democracia deliberativa não é (pelo menos, não originalmente) uma
teoria normativa, e sim positiva da democracia, no sentido de que pretende
mostrar como a democracia realmente funciona. Ela não lamenta a democracia
atual ainda ser agregativa e propõe que ela passe a ser deliberativa: ela
defende que a democracia agregativa é uma má interpretação de como a democracia
funciona e que apenas a democracia deliberativa pode dar conta do teor
cognitivo dos processos democráticos. Se a democracia deliberativa tem algum
viés normativo, ele é apenas derivado de seu viés positivo. Esse viés derivado
se mostra no fato de que, toda vez que estão sendo discutidas reformas nos
processos decisórios, os teóricos deliberacionistas propõem e apoiam medidas
(como exigência de debate prévio, propaganda e programas de informação ao
público, obrigação de formação de maiorias mais amplas, regramento da equidade
e transparência das negociações etc.) que favoreçam que a tomada de decisão
seja uma deliberação mais racional.
Quando se entende que a democracia deliberativa é uma teoria
sobre como as tomadas de decisão já funcionam na democracia que temos hoje, esta
concepção parecerá a muitos como utópica e irrealizável. Dirão estes que seria
ótimo se a tomada de decisões políticas acontecesse de forma tão racional e
civilizada quanto a democracia deliberativa supõe, mas isto não condiz com a
realidade de como as decisões são realmente produzidas. Dirão que a política é
o campo de expressão de convicções irracionais e compromissos viscerais e intransigíveis.
Que a maior parte dos indivíduos não têm boas razões em favor de suas posições
e não ligam para os argumentos dos que pensam diferente, nem têm interesse em
convencê-los, apenas em derrotá-los. Que a política não é espaço de razão, e
sim de interesses, e não é ocasião de debate, e sim de luta. Lembrarão quantas
decisões estúpidas e cruéis já foram tomadas por assembleias democráticas e
usarão isto como prova de que a decisão é uma questão de interesse, paixão,
vontade, poder, e não de racionalidade. Esta posição “realista” (em sentido
filosófico-político), pessimista e irracionalista podemos chamar de “ceticismo
da deliberação”. Para responder aos céticos da deliberação, os deliberacionistas
têm duas estratégias.
A primeira é questionar a verdade da descrição empírica
fornecida pelo cético. Neste caso, o deliberacionista dirá que processos de
tomada de decisão no mundo real nunca são inteiramente racionais nem
inteiramente irracionais. Que os temas de deliberação variam bastante, desde os
mais pragmáticos até os mais moralmente carregados, e com isto varia também o
nível de passionalidade visceral do envolvimento dos indivíduos com suas
posições prévias. Debates sobre aborto e pena de morte, por exemplo, em que as
posições são polarizadas e explosivas, ou sobre reforma agrária e
redistribuição de renda, em que os interesses de grupos são radicalmente
opostos, tendem a se ajustar mais à descrição do cético. Mas estes casos cobrem
a minoria das questões que devem ser decididas na maior parte do tempo por parlamentos
e assembleias democráticas. Na maior parte do tempo (ao discutir sobre como diminuir
a mortalidade infantil ou como combater o analfabetismo, sobre como impedir déficits
na previdência social ou como diminuir o número de acidentes nas estradas),
existe consenso sobre fins e divergência sobre meios, divergências que podem
ser sanadas com acesso a mais informações e com escuta e consideração de pontos
de vista e propostas diferentes.
Além disso, dirá o deliberacionista, nos casos em que a
política de fato assume o perfil que o cético atribui a ela, isto se dá em
parte não como causa para a falta da deliberação, mas como efeito desta falta.
Cidadãos criados numa cultura pública e aberta que toma decisões com base em
argumentos e as justifica ao público tenderão a ser socializados formando
esquemas de personalidade mais comunicativos e racionais, capazes de submeter suas
opiniões e preferências prévias ao teste de aceitabilidade universal e capazes
de examinar criticamente, adotando o ponto de vista do outro, suas convicções
viscerais e interesses particularistas. Portanto, o cidadão irracionalista já é
em parte uma criação da política não deliberativa e se tornaria uma personagem
cada vez menos frequente uma vez que o perfil das decisões políticas do
cotidiano fosse modificado. Portanto, além de cada deliberação em particular ser
um processo de aprendizado dos envolvidos quanto à questão debatida, uma
cultura deliberativa em geral é também um processo de aprendizado dos
indivíduos para se ajustarem a processos e formarem suas personalidades de modo
a se tornarem mais aptos à deliberação. (Por esta via vão John Rawls, Amy
Gutman, Dennis Thompson, John Dryzek, Jon Elster, Joshua Cohen, Andrew Arato –
a chamada “escola americana”, que na verdade contém alguns não americanos, da
democracia deliberativa.)
Já a segunda estratégia de resposta aos céticos da
deliberação é mais sofisticada. Consiste em conceder ao cético que sua
descrição é à primeira vista verdadeira, mas em seguida primeiro questionar o
poder explicativo que ela tem das decisões de uma democracia real e depois
propor que a deliberação não deve ser tomada como descrição da democracia, e
sim como reconstrução racional de sua lógica implícita. Este tipo de
deliberacionista vai concordar que a política é primariamente um campo de luta
entre interesses e convicções e que a maior parte das decisões é tomada de modo
pouco ou nada deliberativo. Mas vai em seguida problematizar que, no entanto,
adotar o ponto de vista do cético da deliberação nos colocaria em dificuldades
para explicar os aparentes ganhos cognitivos que as democracias acumulam com o
passar do tempo. Isto é, o modo como decisões democráticas parecem com o tempo
incorporar visões morais e políticas mais abrangentes, pluralistas e sofisticadas
ficaria praticamente sem explicação se a tomada de decisões sempre seguisse o
curso agonístico e irracional que o cético sugere.
Após apontar este déficit explicativo, quer dizer, após
colocar o cético na posição de ter que explicar como é que a racionalidade crescente
das decisões surge da irracionalidade persistente das tomadas de decisão, o
teórico deliberacionista proporá uma explicação alternativa, segundo a qual a
deliberação racional está presente na tomada de decisões mesmo quando não está
aparente nos processos decisórios concretos, porque faz parte da sua lógica
interna de desenvolvimento. Assim, uma vez que o teórico examine os processos
decisórios “como se” eles fossem deliberações, poderá reinterpretar suas dinâmicas
concretas como se cada enfrentamento fosse expressão de um estado de
desenvolvimento de um debate de fundo que segue uma linha de aprendizado.
Assim, mesmo que os debates sobre aborto hoje sejam tão passionais e radicais
quanto eram há, digamos, um século, os polos do debate já não expressam mais as
mesmas posições e argumentos de antes, porque cada um destes polos está
constantemente revisando sua posição num processo difuso mas contínuo de
aprendizado social. Desta forma, cada tomada de decisão expressa um novo
momento de aprendizado e, por isto, é passível de ao mesmo tempo ser uma luta
radical e poder ser racionalmente reconstruída como uma deliberação racional. (Por
esta via vão Jürgen Habermas, Rainer Forst, Peter Dews, Seyla Benhabib, Nancy
Fraser, Iris M. Young – a chamada “escola europeia”, que na verdade contém
alguns americanos, da democracia deliberativa.)
Comentários
Gostaria de sanar uma dúvida: a democracia direta, e seus instrumentos (plebiscito, referendo, iniciativa popular), seriam uma forma da democracia agregativa?
Por exemplo: ao propor uma série de quesitos em um plebiscito sobre reforma política, a democracia seria 'reduzida' a valores puramente qualitativos?
Sabemos que uma reforma política é essencial para o Brasil, mas suponhamos que o "povo" opte, no exemplo acima, por permanecer no mesmo sistema. Poderia-se pensar, um último caso, em uma "ditadura da maioria"?
Um abraço.
Thiago Santos