Sobre Gigantes e seus Regimes de Sono: Diálogo com Arendt e Sunstein
Durante os protestos de junho, os manifestantes buscaram
inspiração no belo comercial de uma marca de whisky e se apropriaram da
expressão “o gigante acordou” (No comercial, a frase era "o gigante não está mais adormecido", que, por sua vez, era uma referência à expressão "Brasil: gigante adormecido", muito usada no período populista e militar, com conotação econômica, e não política). Com ela se referiam ao levante de protestos como
ao despertar do povo brasileiro de um tipo de sono político em que tivesse
estado até então, saindo do regime habitual de passividade e conformismo por meio
de um acesso repentino de protagonismo político e vontade de mudança motivado
pela revolta e pela utopia. Contudo, como já era claro durante os protestos,
não é possível permanecer para sempre nas ruas, pois é preciso voltar para casa
e tocar a vida adiante. A menos que este surto de protagonismo se tenha
convertido em ganhos e reformas permanentes incorporados ao ciclo normal da
vida política, este momento de volta para a vida ordinária pode facilmente ser
visto como o adormecer que se segue à exaustão de um tipo de exercício a que
não se está acostumado. Neste caso, levantam-se dúvidas sobre o sentido e o
valor daquele despertar, bem como se sente certa ambiguidade entre necessidade
e medo do retorno ao cotidiano, identificado com o período adormecido de
preguiça e indiferença no qual todos os problemas que hoje são tão complexos de
serem revolvidos foram tecidos.
Gostaria de submeter esta sucessão entre acordar e voltar a
dormir a uma reflexão filosófica a partir do diálogo com dois pensadores
contemporâneos, Hannah Arendt e Cass Sunstein. Para fins mais interpretativos,
quero relacionar a metáfora do despertar com a dualidade, que os dois autores veem
como constitutiva das sociedades políticas modernas, entre uma “política viva
do fervor revolucionário” e uma “política morta das rotinas ordinárias”. Para
fins mais práticos, quero dialogar criticamente com os dois autores a respeito
de como é possível se apropriar dos frutos do período de convulsão da “política
viva” e convertê-los em avanços e ganhos institucionais mais permanentes.
A imagem do comercial que inspirou a metáfora |
Em Sobre a Revolução,
Arendt distingue dois tempos qualitativos da política: o período revolucionário
e a rotina ordinária. O leitor precisa saber que há muita controvérsia sobre o
que Arendt quis dizer com este texto e a minha interpretação é provavelmente
comprometida pelo meu interesse de fazê-lo dialogar com Sunstein e nosso fenômeno
brasileiro recente. Por isso, privilegio a leitura, que incomoda muitos estudiosos
da autora, da dualidade arendtiana como uma ciclicidade política normal e
produtiva, capaz de manter o pulso da política mesmo em sociedades marcadas
pelo individualismo e pela representação, como são as nossas. Neste viés, a
tese dos dois tempos da política poderia ser explicada da forma seguinte. Em
sociedades em que somos governados por outros e nosso papel político fica
confinado à escolha dos que tomarão as decisões em nosso lugar, a política (entendida
como exercício da autodeterminação por meio de acordos obtidos dialogicamente) tende
a permanecer por longos períodos em estado de dormência, mantida presa e
silenciada por baixo da espessa camada da vida ordinária, repleta de
preocupações individualistas com sucesso, bem-estar e felicidade. Contudo, como
toda representação é adoecimento da política e contaminação do poder (que
Arendt concebe como acordo das vontades em torno de uma decisão) e cedo ou
tarde degenera em usurpação e malversação, estes períodos de (falsa) normalidade
política acabam gestando periódicas crises convulsivas de revolta, ocasiões
marcadas pela vontade do povo de tomar de volta o poder em suas mãos e
denunciar, pressionar, punir e substituir os que têm usado em vão seu sagrado
nome.
Estes são os períodos de fervor revolucionário, do tipo que
colocam fim a uma era e dão início a outra, durante os quais a verdadeira
política, a política viva e genuína, vem à tona e mostra sua face, causando ao
mesmo tempo encanto e medo, esperança e terror, gozo e angústia. O encanto se
deve à constatação pelo povo de que se tem um poder de que até então se sentia
privado, a esperança é de que a explosão de sua insatisfação produza mudança
real e definitiva em sua situação e o gozo advém de experimentar a concretude
da utopia em tempos em que querer e poder, reivindicar e conseguir, dizer e ver
acontecer parecem de novo caminhar juntos. Já o medo é de que esta explosão saia
de controle e adquira conotação violenta e anárquica, o terror se materializa
em atos de fúria e destruição nos quais se expressam as frustrações longamente
acumuladas e a angústia constante se deve à antecipação de que aquele é um
momento passageiro e à dúvida sobre o que restará dele quando a convulsão tiver
ido embora. Estes períodos extraordinários de fervor político são como retornos
cíclicos da ação transformadora dotada de sentido, algo assim como despertares
de tempos em tempos do cidadão real que fica aprisionado dentro do cidadão da
política representada, do agente político e seu amor pelo bem comum, que ficam
sufocados a maior parte do tempo pelo indivíduo e suas preocupações privadas.
Hannah Arendt (1906-1975) |
Em A Condição Humana,
Arendt havia culpado o individualismo privado de criar a falsa política da
representação, em que a antiga distinção entre privado (o oikos) como espaço da
sobrevivência econômica e público (a polis) como espaço da autorrealização
política se converte na moderna distinção entre privado como espaço da
autorrealização individual e público como espaço de gestão das condições econômicas
para a busca de autorrealização de cada um. Ora, este mesmo individualismo
privado é o responsável por tornar impossível que o fervor revolucionário permaneça
ativo para sempre, pois a modernidade social e política deslocou o eixo das preocupações
existenciais de cada um da política do bem comum para a rotina privada da busca
do bem individual. O período revolucionário é como um deslocamento temporário
do campo gravitacional das preocupações, que só pode permanecer ativo por tempo
limitado devido a um extraordinário esforço da vontade, que em alguma hora é
vencida e vê o eixo se deslocar de volta para sua posição (falsamente sentida
como) natural: a vida privada cotidiana. (Daí que muitos estudiosos prefiram
interpretar Sobre a Revolução como uma
constatação trágica da impossibilidade da política na modernidade, visão que aqui
explicitamente rejeito em favor da leitura mais otimista do texto como profecia
do retorno periódico da política genuína mesmo no contexto desfavorável de
individualismo e representação.)
Sendo assim, que sentido tem o período revolucionário? Que
valor tem uma retomada da política que está desde o princípio destinada a ser
temporária e cair de volta no torpor da rotina cotidiana quando se esvaírem
suas forças transformadoras? Aqui quero falar das constituições como legados
dos períodos revolucionários, como forma de manter registrada e conservada em
texto a vontade protagonista do povo desperto. Arendt chega a tratar desta
possibilidade, ao falar da Revolução Francesa e da Americana. Mas o tema recebe
sem dúvida tratamento mais detalhado nos textos de Cass Sunstein, que, sem ser um
filósofo arendtiano, trabalha com a mesma dualidade de períodos
qualitativamente distintos da política que a pensadora alemã havia proposto. Sunstein
(v. The Cost of Rights, Designing Democracry e The Partial Constitution) contrapõe a “política
viva” dos períodos revolucionários à “política morta” ou “adormecida” das
rotinas eleitorais, institucionais e burocráticas, e vê as constituições como
documentos que assumem esta diferença qualitativa e subordinam a política
ordinária à política extraordinária, por meio da subordinação do poder
constituído ao poder constituinte. Isto inverte a famosa metáfora de Jon Elster
de Ulisses e as sereias (v. Ulysses and
the Sirens): Elster diz que a política ordinária é marcada por paixões e
interesses caóticos e conflitantes que, se seguidos sem precaução, podem nos
levar à autodestruição social; por isso, para não sermos presas deles, antes de
entrarmos no jogo da política ordinária assumimos um compromisso com direitos e
princípios fundamentais que, como o mastro a que Ulisses permanece amarrado
para não ser seduzido pelo canto das sereias e levado a jogar seu barco contra
as pedras, nos mantém presos ao eixo de racionalidade perante discursos
sedutores e turbulências passionais. Nesta metáfora liberal de Elster, a
política ordinária é “quente demais” e, por isso mesmo, a constituinte precisa
ser “fria”. Já na visão republicana de Sunstein, a política ordinária é “fria
demais” e, por isso mesmo, a constituinte precisa ser “quente”.
Em ambos os casos, contudo, permanece a ideia de que é na
constituinte, e não na política ordinária, que realmente sabemos o que estamos
fazendo (o que justifica a subordinação do poder constituído ao constituinte),
mas em Elster isto tem a ver com a fria racionalidade do discurso dos direitos
e princípios que não podem ser violados, enquanto em Sunstein tem a ver com a
quente explosão do poder democrático que assume compromissos com fins ideais. A
constituição, em Sunstein, funciona como uma carta de nosso eu vivo e desperto
para o nosso eu cotidiano, lembrando-o do que realmente nos importa e queremos para
além da normalidade entorpecedora do cotidiano. Sem a constituição, o eu vivo e
desperto não teria meio de manter-se vivo na memória com o passar do tempo e se
converteria em lembrança vaga e fugidia de uma crise que passou e não deixou
vestígios. É nisto que Sunstein funda sua concepção do controle de
constitucionalidade: trata-se da oportunidade periódica, durante o intervalo da
política morta do cotidiano, de rediscutirmos os temas que animaram (ou poderiam
ter animado) nosso fervor revolucionário da política viva e, desta forma, insuflarmos no coração da política morta a vitalidade necessária para atravessar seu
período de adormecimento. A cada decisão da Suprema Corte sobre um tema de
interesse geral, aviva-se de novo nossa memória de que somos um povo, de que um dia
estivemos vivos e nos comprometemos com fins fundamentais, fins que não podemos
permitir que sejam sufocados pelos falsos limites e as falsas impossibilidades
do cotidiano político. Trata-se de relermos a carta que nosso eu vivo e desperto
nos escreveu e retirarmos dela o ânimo e a força necessárias para construirmos uma
realidade à altura dos sonhos que um dia sonhamos.
Cass Sunstein (1954-) |
Quando aplicamos as ideias de Arendt e Sunstein ao nosso fenômeno
político recente, parece impossível não ver a metáfora do gigante que acordou como
uma referência, não intencional mas explícita, à dualidade entre política morta
do cotidiano e política viva do fervor extracotidiano, representada pela
sucessão entre sono e despertar. A descrição de Arendt de um período vivido ao
mesmo tempo com encanto e medo, esperança e terror, gozo e angústia parece se
aplicar perfeitamente ao modo como testemunhamos a escalada dos acontecimentos
e à montanha russa das impressões e previsões cambiantes ante os avanços e
recuos diários de cada foco do processo. Além disso, o regime legislativo
extraordinário de nosso Congresso, a suscitação pela Presidente da proposta de
uma constituinte extraordinária, depois confinada à mais modesta sugestão de
algo como um plebiscito ou referendo, são todos não apenas reações da política
institucional às demandas que a pressionaram a partir das ruas, mas também,
usando aqui a visão de Sunstein, tentativas de dar ao momento revolucionário
(ou talvez proto-revolucionário) um legado permanente para a política cotidiana
do futuro. Trata-se de medidas do referido gigante desperto que, prevendo seu
iminente retorno ao sono, anseia usar seus últimos momentos de vigília para
escrever à sua futura versão adormecida uma lista de coisas que não pode se
permitir esquecer e que precisa necessariamente realizar.
Logo que a ideia da constituinte extraordinária veio à tona,
os juristas se apressaram em fazer o que eles, como liberais bem treinados,
sabem fazer melhor: aprisionar a política ao direito. Recordaram suas lições de
banco escolar sobre poder constituinte e poder constituído, sobre constituinte
originário e derivado, e sentenciaram que a ideia de uma constituinte
extraordinária era não apenas uma ruptura do pacto constitucional como uma ameaça
escancarada e potencialmente golpista à ordem constitucional como um todo.
Nisto foram, como lhes é usual, mais fieis à constituição positiva que ao ideal
constitucionalista que a inspira. Viram os protestos que balançaram o país como
ocorrências dentro do quadro da política ordinária e, temerosos do canto das
sereias de uma democracia mais radical, se agarraram, como o Ulisses da metáfora
de Elster, ao mastro firme da rotina constitucional que aprenderam a conhecer,
respeitar e reproduzir. Assim como os reacionários que diziam que protestar era
legítimo mas depredações já eram vandalismo, estes juristas disseram que democracia
era bom, sim, mas respeitando os limites da ordem constitucional instituída – o
que é dizer que reformar é permitido, desde que segundo as regras do pacto
anterior. Como se a assembleia de 1988, composta por partidos ainda em número
limitado, por ainda remanescentes deputados e senadores biônicos indicados, por
um horizonte de debate ainda dominado pelas forças conservadoras comprometidas
com o regime anterior, estivesse, contudo, em matéria de legitimidade
democrática, sempre um patamar acima das multidões que tomaram as ruas por
semanas a fio exigindo mudanças. Afinal, se o direito positivo estabelecido
pela ordem de 1988 diz que nada é superior ao poder constituinte originário de
25 anos atrás, esta verdade jurídica se transmuta, na oratória dos juristas, em
verdade política, e o poder que se autodeclara juridicamente superior em autoridade
se converte, por um passe de mágica, em politicamente superior em legitimidade,
tornando-nos todos reféns dos remotos acordos do fim dos anos 80. Não quero
dizer com isto que a ideia da constituinte extraordinária fosse necessariamente
boa e tivesse que ser apoiada. Isto está aberto à discussão, é claro. Mas
insisto que esta discussão é política à luz do ideal do constitucionalismo, e
não jurídica à luz do texto da constituição. Não saber reconhecer quando se
está diante de fenômeno político que foge à ordem instituída e achar que o que
as teorias dogmáticas do direito constitucional dizem representa o limite
concreto de nossa imaginação política e institucional são demonstrações do
quanto os juristas pensam que é o mundo que serve ao direito, em vez do
contrário. Aparentemente, o que não cabe em nossas teorias jurídicas não cabe
na vida, porque constatar que a vida vai além dos nossos livros de direito
seria demais para o domesticado coração político do jurista profissional.
Por fim, depois desta digressão para fazer uma autocrítica
de nossa classe jurídica, quero terminar esta postagem com observações
importantes e considerações críticas voltadas ao público em geral. Primeiro, faço
questão de dizer que o motivo pelo qual escrevi este texto e tentei relacionar
nosso contexto atual com as análises teóricas de Arendt e Sunstein não é nem
que eu concorde com estas análises nem que eu pense que elas dão a melhor leitura
de nossa situação, e sim que considero que os dois autores nos dão um quadro
teórico coerente com que interpretarmos e uma ferramental conceitual adequado
com que corporificarmos certas intuições políticas que todos nós devemos ter
tido em algum momento ao longo do processo de mobilização popular do último
mês. Trata-se menos de convencer o leitor de que o fenômeno deve ser lido pelo
viés cívico republicanista destes dois autores, e mais de conscientizar o
leitor de que a linguagem do sono e do despertar com que temos nos expressado
sobre o que tem acontecido está vinculada a um quadro cívico republicanista de
fundo. Aliás, boa parte do encanto que produz a visão do povo nas ruas se deve
a este quadro de fundo.
Ulisses preso ao mastro ouvindo o canto das sereias |
Segundo, é preciso ter em mente que a teoria destes autores
está sujeita às mais diversas críticas. Para começar, do ponto de vista
descritivo, a ideia de uma ciclicidade entre política morta e política viva é
uma tese metafísica que não conta com comprovação empírica. Evoca-se tal ideia
diante da emergência de movimentos e revoluções neste ou naquele país, mas,
fosse ela verdadeira, todas as sociedades políticas passariam, de tempos em
tempos, por fervores revolucionários do mesmo tipo, dando regularidades
confiáveis e preditíveis a estes fenômenos. Tal, contudo, não apenas não é o
caso na maioria dos países que adotam sistemas representativos como, se a causa
do retorno cíclico das revoluções for a reação da cidadania asfixiada pelo
individualismo e pela representação, a teoria não explica por que as
democracias diretas da Grécia antiga e da Itália renascentista eram regimes mais
(e não menos) sujeitos a crises revolucionárias em sucessão do que as modernas
democracias representativas. Parece mais provável que crises institucionais se
expliquem a partir das fragilidades políticas dos regimes em questão e da
expectativa de sucesso dos grupos desatendidos e insatisfeitos.
Do ponto de vista normativo, a tese da dualidade temporal
qualitativa pressupõe que existe uma política verdadeira e outra falsa e que a
diferença entre elas está em quem exerce o poder (povo ou representantes) e com
que atitude mental e emocional os cidadãos se envolvem com ela (protagonista ou
destinatário). Esta suposição revela, por um lado, um compromisso nostálgico
com a superioridade da democracia ateniense, ignorando que tal democracia,
longe de ser um modelo repetível e desejável, era dependente do regime
escravista de trabalho, do confinamento dos estrangeiros ao comércio e da
opressão feminina no espaço doméstico, que liberavam os homens livres adultos
locais para dedicarem todo o seu tempo à atividade política. Ignora, também,
que a democracia direta pôs Atenas nas mãos dos oradores talentosos, produziu
decretos tirânicos, levou Atenas a guerras estúpidas e golpes de Estado
sucessivos e a tornou alvo fácil de vitória e conquista para os Impérios
organizados e militarizados primeiro de Alexandre, depois de Roma. As
democracias individualistas e representativas da modernidade, neste sentido,
proporcionam cidadania e sufrágio universal, se mostram mais comprometidas com
o respeito pelo ser humano e mais eficientes na manutenção de condições de
estabilidade política de longo prazo. Se a democracia ateniense for a mais
elevada manifestação da democracia verdadeira, é preciso refletir seriamente
sobre até que ponto a democracia verdadeira é realmente desejável.
Ainda neste viés, cabe observar, com Habermas (v. Direito e Democracia, vol. I, cap. VI),
que tanto a distinção liberal entre um momento pré-político constituinte em que
atua a racionalidade fria dos direitos e princípios e um momento político
ordinário em que a razão é presa dos interesses e turbulências passionais,
quanto a distinção cívica republicanista entre o momento revolucionário de emergência
da política viva e a rotina morta da burocracia e institucionalidade cotidianas
têm dois elementos indesejáveis em comum: a ideia de que entre constituição e
política há uma descontinuidade e a ideia de que a supremacia da constituição
precisa fundar-se na superioridade política do momento constituinte. Ambos são
equívocos, que deixam de apreender o caráter aberto e contínuo do projeto
constituinte, que se desenvolve ao longo do tempo como um processo de
aprendizado democrático. A constituição não é uma prefixação das regras de um
jogo que será jogado depois, ela é a expressão, em certo momento do tempo, dos
compromissos que se entendem serem fundamentais para a convivência política, o
que deixa espaço para que cada geração se reaproprie de seu texto,
interpretando-o de modo inovador e completando-o no que lhe parecer necessário.
Não é necessário fazer uma constituição para aí fazer política dentro do
círculo desenhado por ela, mas, ao contrário, fazer política é, constantemente,
reavaliar qual regime de direitos e fins merece, por seu elevado grau de
generalização, ser posto no patamar constitucional, isto é, ser assumido como
um compromisso sem o qual estaria prejudicada a legitimidade mais básica de
nossa convivência democrática como um todo. A superioridade do poder
constituinte sobre o poder constituído, portanto, não precisa ser concebida
como uma superioridade de autoridade entre dois sujeitos históricos, e sim como
superioridade de conteúdo entre condições de legitimidade da democracia e
configurações alteráveis do jogos de interesses democráticos. A democracia é,
pois, um jogo que só se joga não segundo regras de fundo previamente decididas
em definitivo, mas aprendendo a cada novo desafio quais deveriam ser as suas
regras de fundo. A democracia é, assim, um processo permanente de aprendizado
sobre suas próprias condições de legitimação.
Por fim, que conclusão acho que deveríamos retirar destas
reflexões para o modo como pensamos a retórica do “gigante adormecido” e do “gigante
desperto”? Considero que a sensação de que algo foi desperto, no sentido de que
existia antes como um sentido latente e agora se converteu em ação, não deve
ser ignorada. Mas eu renunciaria à linguagem metafórica de apelo retórico da
ciclicidade entre adormecido e desperto e adotaria, no lugar dela, a linguagem mais
realista de um processo de aprendizado que se colocou em curso. Assim como, em
nosso processo de nos tornarmos adultos, temos alguns momentos cruciais de
percepção da responsabilidade pela nossa própria vida e por nosso destino,
também as sociedades democráticas, em sua curva de aprendizado pela exposição a
um ambiente aberto e público de debate e de escolha, passam por momentos
cruciais de percepção do poder e do fardo que a democracia representa e, quando
tais percepções ocorrem, passam a ver o estágio anterior como de infância ou de
sonolência em comparação com o atual (o qual, por sua vez, será provavelmente
de infância ou sonolência em comparação com um estágio futuro, e assim
sucessivamente). O que aconteceu com o gigante é que, depois de 25 anos, ele
sentiu o efeito do choque de democracia e abriu os olhos para a realidade de
que, sempre que assim quiser, pode se colocar no comando de seu próprio
destino. Para um gigante adormecido por tantos anos de autoritarismo e
impotência, já é bastante coisa. Contudo, levantar-se, escolher seu destino e
caminhar decidido, como o antropomorfizado Pão-de-Açúcar do comercial de
whisky, exigirá provavelmente muito mais tempo de democracia e aprendizado.
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