Alexy, Fórmula de Radbruch e Positivismo Jurídico
Esta
postagem tem como objetivo examinar a defesa de Alexy da chamada “fórmula de
Radbruch”, segundo a qual a lei patentemente injusta não é lei, e mostrar que
esta tese, mesmo que fosse uma descrição acurada da prática de aplicação de
leis por parte dos juristas, não atingiria o objetivo que Alexy tinha em vista
com ela, isto é, fazer uma crítica devastadora ao positivismo jurídico. Nos itens
de 1 a 6, explicarei, muito brevemente, pontos importantes da tese de Alexy e,
nos itens 7 e 8, falarei das respostas que foram dadas a ela por parte do
positivismo jurídico exclusivo e inclusivo.
Robert Alexy |
1) Indicação
da fase do pensamento de Alexy: Esta afirmação de Alexy não tem a ver com sua
teoria dos princípios, e sim com sua adesão, em fase posterior, a um tipo de
rejeição do positivismo identificada com a chamada “fórmula de Radbruch”, a
fórmula segundo a qual a lei patentemente injusta não é lei. Sua principal obra
deste período é "Conceito e Validade do Direito" (2002). Portanto, não é necessário nem sequer é aconselhável associar esta
forte posição metateórica (pois diz respeito a como fazer boa teoria do
direito) com as teses mais metodológicas e práticas do período de "Teoria da Argumentação Jurídica" e “Teoria dos Direitos Fundamentais”.
2) A
fórmula não fala de lei injusta, e sim de lei patentemente injusta: Este
acréscimo é importante, porque permite vinculá-la com situações em que o juízo
de injustiça está para além de divergência razoável (ou, pelo menos, para além
de divergência razoável em sociedades modernas de tipo liberal e com forte
tradição democrática e constitucional). Portanto, o argumento clássico da divergência
a respeito da justiça, levantado por Kelsen, não se aplica aqui. Estamos falando
de situações em que todo sujeito razoável concordaria que a lei é injusta.
3) A
fórmula não subordina a lei à justiça, e sim destaca o papel que um nível
mínimo de justiça desempenha na validade da lei: Portanto, não se trata de
jusnaturalismo do tipo caricatural que foi descrito com intenção polêmica por Kelsen e Bentham, em que existe uma ordem suposta de
leis justas e uma ordem real de leis positivas que deveria corresponder, ponto
por ponto, àquela primeira ordem. Trata-se de mostrar que o tipo de razão
prática que está em jogo ao conhecer e aplicar normas jurídicas é tal que não
pode aceitar como lei aquilo cujo conteúdo ultrapassa certo limite de
injustiça, ou, o que é o mesmo, que há um núcleo mínimo de justiça necessário
para que alguma coisa conte como uma candidata séria ao status de lei jurídica.
4) A tese é
descritiva, e não normativa: Alexy não está dizendo que, na opinião dele ou
segundo alguma teoria moral do direito, a lei patentemente injusta não deve ser
considerada lei; ele está dizendo que, na prática, quando observamos o modo
como os juristas lidam com leis que são patentemente injustas, vemos que eles
não as tomam como sendo verdadeiras leis; trata-se de constatação, e não de recomendação.
5) A tese
considera que aplicação interfere na validade da lei: Para que a tese faça
sentido, é preciso considerar que, para Alexy, uma lei só é considerada como
tal por alguém se este alguém considera que tem razões bastantes para aplicá-la
a todo caso concreto que caia sob seu âmbito de vigência. Assim, Alexy afasta a
objeção positivista mais óbvia de que o fato de que um jurista não aplique uma
lei não faz com que ela deixe de ser uma lei (não retira sua validade formal),
mas faz apenas com que ela se torne uma lei que não é aplicada (retira sua
eficácia social). A resposta de Alexy a isto é que uma lei não pode ser
considerada válida em si mesma, independentemente de como seus destinatários e
aplicadores a tomam para sua conduta; dizer que uma norma é válida mas que
ninguém a toma como obrigatória para a conduta seria uma contradição, de forma
que, embora um caso ou um conjunto isolado de casos de não aplicação não tornem
uma lei inválida, a consideração generalizada de que, devido a seu conteúdo
patentemente injusto, uma lei não deve ser aplicada implica no esvaziamento de
sua validade, de modo que não se trata de uma lei que continua a ser lei mas
não é aplicada, e sim de uma lei que não é considerada como lei e carece de
validade.
6) A tese
descritiva tem, contudo, consequências normativas não para o jurista, mas para
o filósofo do direito: se é verdade que os juristas não tomam as leis que são
patentemente injustas como verdadeiras leis, então, tal fato deveria ser
reconhecido por qualquer teoria que pretenda descrever o que é o direito; isto
quer dizer que qualquer teoria que descreva o direito como simples forma,
passível de qualquer conteúdo (que é o que Alexy pensa do positivismo jurídico),
estaria em desconformidade com o modo como os juristas de fato lidam com o
direito e, em vez de ser descritiva (isto é, em vez de descrever como o direito
funciona e o que de fato acontece), estaria sendo prescritiva e advogando um
tipo de formalismo que não corresponde à prática real e que esta rejeita.
Sobre esta
posição mais recente de Alexy, há duas respostas do positivismo jurídico:
7) Da parte
do positivismo jurídico exclusivo, representado aqui na figura de Joseph Raz
(v. “The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism”, 2007,
que pode ser baixado aqui), a resposta é bem simples: O
positivismo jurídico jamais sustentou a ideia de que, não importa o quão
injusto seja o conteúdo de uma lei, todo jurista a aplicará sem resistência ou
hesitação. Em primeiro lugar, porque o positivismo é uma teoria sobre o que o
direito é, e não sobre como ele é aplicado. A ideia de Alexy de que ambas
as coisas estão ligadas entre si é um erro, porque, enquanto o juízo do
filósofo que analisa o direito é um juízo teórico que pode levar em conta
apenas aspectos jurídicos, o juízo do jurista que aplica o direito é um juízo
prático, que tem que levar em conta, além dos aspectos jurídicos, muitas outras
coisas (circunstancias, consequências, coerência com decisões anteriores,
valores da comunidade etc.). Portanto, é perfeitamente possível que, em certa
comunidade, os juristas costumem não considerar como lei a lei que tem conteúdo
patentemente injusto, mas isto não interfere nas considerações do filósofo de
que ela de fato era uma lei válida e de que, até que revogada, segue sendo uma
lei válida. Aliás, não é apenas que o fato de os juristas agirem assim não
invalide a concepção formalista de lei, mas, na verdade, só é possível
identificar que os juristas agem assim se se tem uma concepção formalista de
lei. Porque, se a lei que não é aplicada não for lei, então, logo que
promulgada e antes de ter chance de ser aplicada, o que ela era? Uma não-lei? Por
acaso os legisladores produzem não-leis que só vêm a tornar-se leis nas mãos
dos juristas? E, se for isto, então, não é que os juristas deixem de aplicar certas
leis quando são patentemente injustas, e sim que deixam de aplicar não-leis, o
que não é particularmente informativo sobre eles, já que não aplicar não-leis é
um dos padrões óbvios da atividade jurídica. Pior ainda: tem-se um círculo
vicioso, porque a não-lei não é aplicada porque não é lei, mas não é lei porque
não é aplicada, sendo a não aplicação ao mesmo tempo causa e consequência de
ela não ser uma lei. Enfim, Alexy, ao enveredar por esta linha de argumentação,
não consegue outra coisa que não causar confusão e cair em contradições, tudo
porque não tomou a cautela analítica de separar claramente juízo teórico sobre
validade legal de juízo prático sobre aplicação legal.
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