Explicando “Direito e Democracia” (1): O que é uma Teoria Crítica?
A primeira
coisa que você precisa saber sobre “Direito e Democracia” é que ele não é um
livro de filosofia política e filosofia do direito como os outros. Devido ao
fato de ele abordar temas como direitos humanos, democracia, interpretação
jurídica, controle de constitucionalidade, legislação e esfera pública, você
pode se sentir tentado a compará-lo com obras como “Uma Teoria da Justiça” e “O
Liberalismo Político”, de John Rawls, “A Moralidade da Liberdade”, de Joseph
Raz, “Sociologia do Direito”, de Niklas Luhmann, ou os recentes “A ideia de
justiça”, de Amartya Sen, e “Justice for Hedgehogs”, de Ronald Dworkin. Mas ele
se distingue destes outros livros porque ele não é uma tentativa nem de descrever
o direito tal como ele funciona (abordagem descritiva) nem de propor um modelo
ideal de como o direito deveria funcionar (abordagem normativa). Ele é um livro
que ilustra um tipo bastante peculiar de teoria, chamado de “teoria crítica”.
Isso exige uma explicação prévia, que nos ocupará nesta primeira conversa.
O que é uma teoria crítica?
Esta
pergunta precisa ser respondida a partir de quatro dimensões características da
teoria crítica: a dimensão teleológica,
do interesse de investigação; a dimensão perspectiva,
do ponto de vista da investigação; a dimensão objetal, do objeto da investigação; e a dimensão temporal, da configuração histórica do
objeto.
a) Dimensão Teleológica: Compromisso com a
Emancipação Social
Em primeiro
lugar, a teoria crítica está vinculada a certo interesse de investigação: ela é
teoria sobre a realização da emancipação social na atual configuração da
sociedade. Esta é a dimensão teleológica
da teoria crítica: Ela investiga a sociedade, primeiro, para saber qual o
estado atual de realização da emancipação social e, depois, para intervir na
sociedade em direção à emancipação social. Ela não é, pois, contemplativa,
neutra e desinteressada. Ela é investigação a partir de um interesse prático (a
emancipação social), que adota a postura de denunciar o que impede e promover o
que favorece a emancipação social e que se concebe a si mesma como parte da
sociedade que ela investiga, ou seja, como um estudo que só tem condições de
compreender seu objeto porque se situa dentro dele com interesse prático de
conduzi-lo em certa direção, em vez de outra. Esta direção é a emancipação
social.
Por emancipação social, devemos entender, em
sociedades modernas, a situação em que a sociedade vive em conformidade com
suas aspirações de máxima liberdade e igualdade. Mas, diferentemente de um
ideal abstrato ou utopia, a emancipação social é concebida como uma força em
movimento na sociedade, uma tendência que busca realização através das
estruturas e circunstâncias sociais concretas e cuja compreensão deve ser
atualizada a cada vez a partir do que sua realização concreta sinaliza como
desafios e potencialidades no presente. A emancipação social não é um ideal imaginado
pelo filósofo, mas uma força histórica de
realização da liberdade e igualdade que se mostra atuante nos avanços e recuos
das sociedades reais. Portanto, a atitude do investigador em relação à
realização da emancipação social não é a de imaginar que tipo de sociedade
realizaria maximamente a liberdade e a igualdade e em seguida checar até que
ponto a sociedade que temos hoje já corresponde a este ideal, e sim a de captar que tipo de configuração da liberdade
e da igualdade tem atuado como força de emancipação social nas circunstâncias
do presente. A sociedade não apenas informa até que ponto a emancipação
social está realizada, mas também que
configuração da emancipação social está atuante como força histórica do
presente.
No caso de Direito e Democracia, a emancipação
social que atua como força histórica de nosso tempo é identificada com a
realização da autonomia em suas faces privada e pública, disto resultando que
os direitos humanos (que protegem a autonomia privada de um modo que depende da
autonomia pública) e a soberania popular (que realiza a autonomia pública de um
modo que depende da autonomia privada) devem ser vistos como os potenciais
atuais de realização da emancipação social. Sendo assim, uma teoria crítica do
direito e da democracia é uma teoria sobre como o direito e a democracia se
situam no jogo de forças de realização e de bloqueio da emancipação social
concebida como dupla autonomia, ou, o que é o mesmo, de como direito e
democracia incorporam versões socialmente realizáveis dos direitos humanos e da
soberania popular e estão sob ameaça constante de forças que atuam com outros
propósitos e no sentido contrário. Tudo isso veremos em conversas posteriores sobre
a obra.
Esta
tentativa de captar a configuração do ideal de emancipação social que está
atuante como força histórica do presente, de verificar até que ponto esta
emancipação social está realizada, de descobrir quais forças sociais atuam como
obstáculos ou como potenciais para a sua realização e de, por fim, contribuir
para o avanço da emancipação social é o objetivo de investigação presente numa
teoria crítica. Desta dimensão teleológica de sua atividade derivam as outras
três dimensões: perspectiva, objetal e temporal.
b) Dimensão Perspectiva: Além da Dicotomia
entre Real e Ideal
Em segundo
lugar, a teoria crítica acredita que está em contraposição a um outro tipo de
teoria, normalmente chamado de teoria tradicional (seja na sua versão
descritiva, seja na sua versão normativa). Isto acontece porque, diante de
certo quadro histórico de realização da emancipação social, é possível adotar três
perspectivas: uma é de tentar descrever como as coisas na sociedade são
(abordagem descritiva), outra é de tentar propor um modelo ideal de como as
coisas na sociedade deveriam ser (abordagem normativa) e outra é contribuir
para a realização concreta do tipo de emancipação social que atua como força
histórica no presente (abordagem crítica). As duas primeiras, do ponto de vista
de uma teoria crítica, resultam em distorções.
A abordagem
descritiva pressupõe que seu objeto tem uma identidade atemporal que pode ser
enunciada e é uma unidade ordenada em que todos os elementos contribuem para a mesma
coisa. A teoria crítica nega que seja assim, porque objetos sociais não têm essências,
apenas papeis contingentes em situações históricas transitórias, e não são
unidades ordenadas, porque neles se revela sempre o conflito entre forças
históricas que impulsionam e que bloqueiam a realização da emancipação social.
Portanto, objetos sociais são relacionais e conflituosos, o tipo de coisa que
não é passível de simples descrição. Toda vez que se tenta meramente descrever um
objeto social se assume que sua função na configuração social atual corresponde
à sua essência e se normaliza a situação presente de bloqueio parcial da
emancipação social como se fosse mais ou menos inalterável. Toda teoria que se
pretende ser “mera descrição” contribui, portanto, para a aceitação da situação presente como resultante de essências e forças
normais e imutáveis e, por isso mesmo, é um desserviço à emancipação
social.
Já a
abordagem normativa se arroga a uma pretensão, a de dizer ao mundo concreto que
rumo ele deveria tomar, que está acima das capacidades humanas em pelo menos
dois sentidos: porque não é possível saber que configuração social seria a
ideal sem conhecer quais seriam todas as suas condições e consequências no
mundo concreto, coisa que é impossível meramente imaginando um mundo hipotético
diferente do atual, e porque a história segue o curso que segue a despeito dos
ideais abstratos, não no sentido de que este curso seja inevitável e
indiferente a qualquer ideal, e sim no sentido de que ele é composto por uma
multidão de atos livres e imprevisíveis, que escapam ao controle de qualquer
agente transformador individual ou institucional e que realizam um ideal de
tipo distinto, inscrito no curso mesmo da história de cada época. Ao querer
colher ideais sociais não da história concreta, mas da imaginação e aspiração
abstrata, a abordagem normativa se torna vazia
no conteúdo e impotente na força de realização. (É importante perceber que,
na teoria crítica, ideal e real não são opostos e, quando falamos de “jogo de
forças”, não se trata de conflito entre ideal e real, e sim de conflito no
interior do real entre forças favoráveis e desfavoráveis à realização do ideal.
O ideal é uma força histórica que atua no interior do real e o real é uma
configuração de forças conflitantes que ora promovem ora bloqueiam a realização
do ideal.)
No caso de Direito e Democracia, este jogo de
forças entre ideal e real é representado pela tensão entre facticidade e
validade e as abordagens normativa e descritiva a serem afastadas consistem na
tentativa, por um lado, de propor teorias da justiça desvinculadas das forças
sociais concretas (o normativismo abstrato das teorias filosóficas da justiça)
e na tentativa, por outro lado, de descrever o funcionamento do direito
ignorando o jogo de forças no interior do real em relação ao ideal (o realismo cético
das teorias empíricas da democracia). No caso do direito o risco a ser evitado
é precisamente de contraposição ingênua entre ideal e real, caindo na tentação
de contrastar a idealidade das normas previstas com a realidade dos fenômenos sociais
que não correspondem plenamente às normas (por exemplo, entre o que está
prometido na constituição e nas leis e o que se mostra na prática etc.). É
preciso abordar tanto as normas quanto as práticas sociais como “jogos de força”
no interior do real em relação ao ideal, ou, como Habermas fará ao longo da
obra, como esferas distintas de manifestação da tensão entre facticidade e
validade. Tudo isso, também, veremos ao longo das outras conversas.
Tanto a
abordagem descritiva quanto a normativa compõem um modo de investigação a que a
teoria crítica se refere com o nome de teoria tradicional e ambas devem ser
igualmente afastadas. A teoria crítica retém da abordagem descritiva seu
compromisso com o real e da abordagem normativa seu compromisso com o ideal,
mas vai além das duas no sentido de que pretende investigar a realização do
ideal no real, colhendo o ideal com que trabalha a partir da força histórica
que atua no próprio real e abordando o real como espaço de conflito entre
forças de realização e de bloqueio de emancipação. Não distorce o real
assumindo que é imutável e unitário nem distorce o ideal tornando-o refém de
fantasias impotentes. Ela opera com o ideal que se realiza por meio do real e
com o real como conflito de promoção e bloqueio, de avanços e recuos de ideal
na história concreta.
c) Dimensão Objetal: Teoria do Objeto Situado
na Sociedade como um Todo
Em terceiro
lugar, o objeto de uma teoria crítica é sempre a sociedade como um todo. Mesmo
que ela seja uma teoria crítica do direito, ou da democracia, ou da jurisdição
etc., ela será sempre uma teoria crítica sobre o papel do direito, da
democracia ou da jurisdição na sociedade como um todo. Na abordagem crítica, há
uma teoria social no interior da qual se situa a teoria sobre qualquer outro
objeto. Esta é a dimensão objetal da
teoria crítica: ela é sempre teoria da sociedade como um todo ou de como certa
instituição, estrutura ou fenômeno social interage com a sociedade como um todo. Ela vê o seu objeto integrado com uma
totalidade social na qual desempenha um papel, o que tem duas implicações: a
primeira é que a clássica pergunta da teoria tradicional sobre “o que é”
determinada coisa (por exemplo, o direito) é substituída por outra pergunta,
típica da teoria crítica, sobre qual o papel daquela coisa (por exemplo, o
direito) na sociedade como um todo; a segunda é que o objeto de estudo é
concebido desde o princípio como integrado numa rede de relações de influência,
interferência, complementaridade e conflito com outros vários fenômenos da
sociedade, não sendo possível conhecê-lo isoladamente, mas apenas no interior
desta rede de relações. Sendo assim, em terceiro lugar, uma teoria crítica sobre
certa coisa é uma teoria de como aquela coisa se situa no interior de uma
teoria da sociedade como um todo. Como veremos, isto vale para o tipo de
abordagem do direito, dos direitos humanos, da soberania popular, da democracia
representativa, do controle de constitucionalidade, da esfera pública etc. ao
longo de Direito e Democracia.
d) Dimensão Temporal: Teoria que Parte de (e
Retorna a) um Diagnóstico de Época
Em quarto
lugar, a teoria crítica se compromete desde o princípio com produzir uma dupla vinculação
de seu objeto a um diagnóstico de época. Esta é a dimensão temporal da teoria crítica: ela é sempre teoria do objeto
situado na sociedade como um todo sob
certa configuração histórica. Por isso, seu ponto inicial e seu ponto final,
a configuração social na qual ela situa seu objeto no princípio e a
configuração social que passou a ser possível perceber depois do estudo deste
objeto no final, são diagnósticos de época. Um diagnóstico de época é uma
resposta à pergunta: “Que tempos são estes em que vivemos?” do ponto de vista
do interesse pela emancipação social. Portanto, um diagnóstico de época fixa,
no início da investigação, com que tipo de sociedade estamos lidando hoje, qual
tipo de ideal de emancipação social (liberdade e igualdade) se mostra atuante
nela como força histórica e quais forças contribuem para a promoção e para o
bloqueio da emancipação social. É neste contexto que o objeto da investigação
será situado e estudado. Depois de ter-se mostrado como o objeto da
investigação interage com este jogo conflituoso de forças em prol e contra a
emancipação social típica de seu tempo histórico, este conhecimento crítico
acerca do objeto enriquecerá, também ele, novamente o diagnóstico de época de
que se dispõe. Como veremos, tanto o capítulo inicial (Cap. I) quanto o capítulo
final (Cap. IX) de Direito e Democracia
fornecem diagnósticos de época: o primeiro, herdeiro da teoria social ampla da obra
Teoria da Ação Comunicativa, de 1981,
e o segundo, resultante da percepção de uma paradigma
procedimental como força emancipatória que se insinua na configuração
histórica presente da realização do direito e da democracia.
Comentários
Qual a diferença entre Teoria Crítica e Hermenêutica da Suspeita?
abraços