Explicando “Direito e Democracia” (3): A Substituição da Razão Prática pela Razão Comunicativa
Nas duas
conversas anteriores, expliquei sobre aspectos preparatórios à compreensão de “Direito
e Democracia”, sem ainda, contudo, tratar do conteúdo do livro propriamente. Na
primeira,
mostrei que a obra deve ser entendida como uma teoria crítica da sociedade na
qual o direito e a democracia têm um papel chave a desempenhar. Na segunda,
recuperei o diagnóstico de modernidade que havia sido fornecido pela teoria da
ação comunicativa e como ele precisa ser levado em conta como pano de fundo da
obra de 1992. Nesta terceira conversa, entrarei, finalmente, no conteúdo do
livro. Explicarei um ponto muito importante, situado, na tradução brasileira, entre
as páginas 17 e 24 da obra. Habermas fala do conceito de razão prática, do
papel que desempenhou na modernidade, de seu esgotamento a partir da complexificação
social, das tentativas fracassadas de sua substituição e da tentação de despedida da razão,
antes de introduzir seu conceito de razão comunicativa e explicar as diferenças
que esta substituição acarreta para sua teoria. Desenvolverei agora a
explicação desta parte que, especialmente para acadêmicos da graduação e da
pós-graduação de Direito, costuma soar pouco familiar, obscura e incompreensível.
Espero contribuir para que se torne mais clara.
As duas
primeiras frases do Cap. 1 dizem: “A modernidade inventou o conceito de razão
prática como faculdade subjetiva. Transpondo conceitos aristotélicos para
premissas da filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamento da razão
prática, desligando-a de suas encarnações nas formas de vida culturais e nas
ordens da vida política” (DD 17). Quero começar a explicação esclarecendo esta
passagem. Em primeiro lugar, Habermas remete a origem do conceito de razão
prática a Aristóteles e afirma que, entre os gregos, a razão prática era concebida
como encarnada nas formas de vida culturais e nas ordens da vida política. Não
vamos disputar se esta é uma caracterização apropriada do conceito grego em
geral ou do aristotélico em especial de razão prática, mas apenas esclarecer o
que Habermas quer dizer com sua referência. Por razão prática devemos entender
a possibilidade de orientar a ação a partir de razões. Neste sentido, ela se
opõe a outras formas de orientar a ação, por exemplo, pela obediência às ordens
de uma autoridade, pela mera adesão ao costume ou à tradição ou ainda em reação
a impulsos instintivos ou emocionais. Ela tem este nome, que não é grego, e sim
moderno, porque corresponderia ao uso da razão não para obter conhecimento
sobre o mundo (razão teórica), mas para orientar a ação no mundo (razão
prática). Segundo Habermas, entre os gregos, ela não era concebida primariamente
como faculdade subjetiva, isto é, como uma capacidade que todo sujeito tem
enquanto tal. Isto quer dizer que ser capaz de orientar a própria ação por
razões dependia não apenas de ser um sujeito racional, mas de pertencer a certo
tipo de cultura social e de ordem política que tornavam possível a orientação
da ação com base em razões. É neste sentido que a razão prática entre os gregos
estava “encarnada” nas (no sentido de dependente das) formas de vida culturais
e nas ordens da vida política. Em Atenas, por exemplo, o indivíduo racional
encontraria uma cultura orientada para o saber no aspecto teórico e uma ordem
política orientada para a cidadania no aspecto prático, o que tornaria possível
para ele desvincular-se da autoridade, do costume, da tradição e das paixões e
procurar como fundamento de suas ações fins e valores que se justificassem do
ponto de vista racional. Portanto, o que tornava possível que ele orientasse sua
ação racionalmente era não apenas ser um indivíduo racional, mas pertencer ao
tipo de cultura e ao tipo de política que tornam possível exercer a sua
racionalidade para o aspecto prático. Numa cultura tradicional e obscurantista,
o indivíduo não teria como encontrar
fins e valores racionais, porque tal procura estaria vedada e desestimulada
desde o princípio, assim como, numa política autoritária e violenta, não teria
como orientar sua ação com base nos fins e valores racionais que encontrasse,
porque sua ordem social lhe estaria impondo o tempo todo motivos de ação
estranhos à sua razão e à sua vontade. Era porque pertencia a uma cultura
orientada não pela tradição, mas por boas razões para crer em certas coisas em
vez de outras, e porque pertencia a uma ordem política que tomava decisões não
com base na mera autoridade, mas em boas razões para agir de certas formas em
vez de outras, que o indivíduo podia de fato viver a racionalidade prática.
Esta dependência
da razão prática em relação a certa cultura social e certa ordem política
justificava uma distinção, por exemplo, entre gregos e bárbaros (que depois se
estendeu à distinção entre romanos e bárbaros), com base no fato não de que uns
eram superiores aos outros por natureza (afinal, por natureza, eram todos seres
humanos, enquanto tais capazes de razão), mas de que haviam sido socializados
em formas de cultura e política que os predispunham uns à racionalidade, outros
ao barbarismo. O mesmo valia para os que, vivendo dentro daquelas culturas e
políticas, não eram participantes plenos de sua vivência da razão prática, como
mulheres, estrangeiros e escravos. Isto tem a consequência de tornar a
racionalidade prática não um atributo universal do humano enquanto tal, mas o
tipo de faculdade subjetiva que apenas se desenvolve nos que vivenciam o tipo
certo de cultura e de política. É aqui que se encontra a ruptura produzida pela
renovação do conceito de razão prática nas mãos dos pensadores modernos. Ora,
lembremos agora do que foi visto a propósito da TAC. O que a modernidade fez
foi esvaziar a autoridade da tradição e da religião e submeter a economia, a
política e a cultura a um processo de racionalização. Como consequência,
aquelas condições da racionalidade prática, antes confinadas a uns poucos povos
dotados da cultura e da política apropriadas, se tornaram universalmente
acessíveis a todos os seres humanos. Num contexto em que as condições sociais
tornaram a racionalidade prática acessível a todos, é esperável que ela deixe
de ser concebida como atrelada à cultura e à política e passe a ser concebida
como atributo de todo indivíduo racional enquanto tal. Quando as condições
contextuais necessárias existem para certos indivíduos sim, outros não, fica evidente
a dependência da razão prática em relação a tais condições. Mas, quando as
mesmas condições existem para todos, a dependência do contexto deixa de ser
visível e passa-se a conceber a razão prática como atributo natural de todos os
seres humanos. É por isto que, na modernidade, a razão prática passou a ser
concebida como faculdade natural de todos os sujeitos: é neste sentido que “a
modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva”,
isto é, como atributo universal de todos os sujeitos, natural e não dependente
de contexto, decorrente do simples fato de serem indivíduos racionais. Ser um
ser humano capaz de ser sujeito de cognição ou de ação era suficiente para
vivenciar racionalidade prática, e esta, por sua vez, passou a ser concebida
como tendo a ver com os fins de todos os seres humanos.
Habermas
distingue entre duas versões desta subjetivação/universalização da razão
prática: Uma, própria do Séc. XVIII, em que os sujeitos são os indivíduos e outra,
própria do Séc. XIX, em que os sujeitos são os povos. A primeira, tributária do
Iluminismo, “tornou possível referir a razão prática à felicidade, entendida de
modo individualista, e à autonomia do indivíduo, moralmente agudizada” (DD 17).
Nesta versão, o sujeito é um esquema formal (como o “cogito” cartesiano, o “eu
penso” kantiano e as unidades do utilitarismo) que se aplica a todos os
indivíduos, independentemente de histórias de vida e filiações coletivas. Neste
caso, a razão prática visa a um duplo fim: para cada indivíduo, trata-se da capacidade
de buscar a felicidade, enquanto, na convivência entre os indivíduos, trata-se
da capacidade para obedecer a deveres morais, que fixam limites com os quais a
procura da felicidade de um pode tornar-se compatível com a de todos os demais.
A segunda versão, tributária do Romantismo e do Idealismo Alemão, “acrescenta a
esse repertório de conceitos (...) a dimensão histórica: O sujeito singular
começa a ser valorizado em sua história de vida, e os Estados – enquanto sujeitos
do direito internacional – passam a ser considerados na tessitura da história
das nações” (DD 17). Nesta versão, os indivíduos não devem ser considerados
todos como instanciações do mesmo “cogito”, mas sim como dotados de biografias únicas
e irrepetíveis entretecidas pelo pano de fundo comum de uma história nacional.
Neste caso, a razão prática visa, novamente, a um duplo fim: para cada povo ou
nação, trata-se da capacidade de desenvolver uma visão de mundo e um regime de
valores particulares e distintivos, enquanto, para cada indivíduo, trata-se da capacidade
de apropriar-se de modo original da cultura comum e, em analogia com a obra de
arte, traçar para si uma história de vida autêntica. Ambas as versões, uma
individualista, formal, a-histórica e moral (no sentido deontológico que vamos
esclarecer em postagens posteriores), outra coletivista, substantiva, histórica
e ética (no sentido axiológico que vamos esclarecer em postagens posteriores)
atrelavam a razão prática a um duplo sujeito: o indivíduo e a coletividade. Mas
o indivíduo da primeira versão era formal-hedonista, preocupado com a própria
felicidade, e a coletividade era formal-moral, preocupada em tornar as
felicidades individuais compatíveis entre si. O indivíduo é a peça-chave,
enquanto a coletividade é um agregado de indivíduos buscando convivência pacífica
e coordenada. Já o indivíduo da segunda versão era substantivo-biográfico,
preocupado com viver uma vida autêntica, e a coletividade era substantivo-ética,
portadora de cosmovisão e de constelação de valores próprias e distintivas
(sendo um povo ou nação particular). O povo ou nação é que é a peça-chave,
enquanto o indivíduo é alguém que se forma a partir dos valores da comunidade
(embora tentando ir além de forma original). Por isso, na primeira versão o
indivíduo é o sujeito portador da razão prática, que quer conciliar liberdade
(procura da felicidade por cada um) com igualdade (coordenação das liberdades).
Já na segunda versão o povo ou nação é o sujeito portador da razão prática, que
quer conciliar solidariedade (a pertença de todos a uma história e cultura
comuns) e autenticidade (a apropriação original deste pano de fundo por cada
projeto biográfico singular). Mas em ambos os casos, embora de maneiras bem
distintas, a razão prática é universal, porque o equilíbrio entre liberdade e
igualdade ou entre solidariedade e autenticidade estará presente onde quer que
seres humanos estejam em convivência uns com os outros.
Com esta
nova concepção da razão prática como faculdade subjetiva seja de indivíduos
seja de coletividades, a modernidade procurava explicar a cultura, a política,
a economia e a história dos povos da época. A razão prática tornou-se, assim, o
conceito a partir do qual era possível dar sentido ao mundo humano em geral. Contudo,
as sociedades se tornaram, já de meados para o fim do Séc. XIX, excessivamente
complexas. No campo da cultura, o pluralismo fazia com que, em cada sociedade,
convivessem diversas visões de mundo e formas de vida, muitas vezes conflitantes
e rivais entre si, tentando prevalecer umas sobre as outras, muitas vezes
mediante perseguição e violência. No campo da economia, o regime capitalista
tinha avançado para muito além da troca entre produtores, comerciantes e
consumidores, pois o monopolismo no plano interno e o imperialismo no plano
externo tinham criado entidades econômicas dotadas de mais poder do que era
possível controlar, bem como o crescimento do setor financeiro e da especulação
sistemática haviam tirado da economia sua previsibilidade imediata. No campo da
política, os Estados haviam criado burocracias de planejamento, gestão e
intervenção e tecnologias de vigilância, controle e violência que os tornavam
cada vez mais ameaçadores não apenas uns para os outros, mas cada um para seu
próprio povo. Nem os indivíduos em particular nem as coletividades em geral se
sentiam mais no controle do que estava acontecendo e um espectro de alienação e
de impotência era experimentado de modo generalizado. Neste contexto, a ideia
de razão prática como faculdade subjetiva perde credibilidade. Para usar os
termos da TAC, esta ascensão da racionalidade sistêmica implicou um retraimento
do mundo da vida, com a correspondente experiência de perda de liberdade e
perda de sentido. Uma vez que o rumo dos acontecimentos perde qualquer relação
imediata aparente com as decisões dos agentes individuais ou reunidos, perde
também plausibilidade a ideia de que a razão prática (neste caso, a escolha de
cursos de ação a partir de razões) tenha papel importante a desempenhar.
Habermas se refere ao fato de que “a própria teoria marxista da sociedade
convencera-se da necessidade de renunciar a uma teoria normativa do Estado” (DD
18), normalmente justificada pela tese de que o Estado é sempre um instrumento
de dominação de classe, não sendo possível teorizar sobre um Estado justo
porque onde houvesse justiça nenhum Estado se faria mais necessário,
tratando-se antes de criar condições de justiça para a superação do Estado do
que de reformar o Estado com vista a uma situação de justiça. No uso que faz
desta renúncia a um teoria do Estado justo por parte do marxismo, Habermas
parece sugerir que tal coisa não fazia mais sentido já desde o final do Séc. XIX
porque a sociedade se tinha tornado complexa demais para supor que alguma
entidade racional, mesmo que fosse o Estado, fosse realmente capaz de governá-la
para a direção que quisesse. Neste caso, a renúncia marxista a uma teoria
normativa do Estado seria um sintoma da crise da ideia de razão prática desde as
vésperas do Séc. XX.
Em vista
desta crise, Habermas relata o recurso da modernidade a três saídas igualmente
defeituosas, um verdadeiro “trilema” em que ela se perde (DD 19). Há, em
primeiro lugar, a filosofia da história. Com este nome, Habermas se refere à
tentativa de encontrar no curso da história a realização de um projeto
racional. Ora, mesmo que os indivíduos e as coletividades não estivessem no
controle do que acontece, a história, como uma espécie de substituto laico da
Providência divina cristã, poderia encarregar-se de conformar o rumo dos
acontecimentos a um plano preexistente de progresso rumo à realização da razão.
No entanto, Habermas relembra que os elementos de racionalidade que a filosofia
da história pode decifrar nos processos históricos são “somente os que ela
mesma nele introduzira, servindo-se de conceitos teleológicos” (DD 18).
Habermas se refere aqui a uma crítica à filosofia da história recorrente em sua
obra (v. Teoría y Práxis [1963], Cap.
5), de que depende de uma metafísica de fundo que vê a história como progressão
guiada por fins e que dota tais fins de força causal sobre atos humanos livres
e contingentes, concepção insustentável no marco de um pensamento
pós-metafísico. Há, em segundo lugar, a antropologia. Aqui Habermas não se
refere à disciplina acadêmica homônima, e sim a uma tendência teórica,
encontrada em várias disciplinas e teorias, de querer encontrar elementos invariáveis
da constituição humana (histórica ou natural) e deles derivar imperativos
normativos que estariam para além da diversidade cultural e do pluralismo
razoável. Na versão da antropologia a que Habermas aqui se refere, a
constituição humana invariável forneceria um substituto para a razão prática se
certas orientações racionais fossem inerentes à condição humana e, assim,
tivessem necessariamente que realizar-se em alguma medida onde quer que seres
humanos convivessem entre si. Habermas diz que, se referindo especificamente à
forma que este projeto toma em Schelen e Gehlen, que uma antropologia deste
tipo “é alvo da crítica das ciências que a antropologia tenta em vão tomar a
seu serviço – as fraquezas de uma são simétricas às da outra” (DD 18). Novamente,
Habermas se refere a outra crítica recorrente em sua obra (v. A Lógica das Ciências Sociais [1970],
caps. 3, 4 e 5, e Teoria da Ação
Comunicativa, Parte I, cap. 4) ao que ele costuma chamar, de modo genérico,
de “positivismo nas ciências sociais”, ou seja, às abordagens que adotam a
perspectiva do observador, que explicam o comportamento humano a partir de métodos
exclusivamente empíricos e cometem sistematicamente falácia naturalista ao
tentar passar da descrição para a prescrição sem a devida nota crítica. E há,
em terceiro lugar, o contextualismo, entendido como a tendência teórica que
busca nas tradições bem sucedidas (isto é, no fato de que certas sociedades têm
uma história que foi afirmadora da racionalidade de sua cultura e de suas
instituições) um substituto fático da ideia de razão prática. Se, contudo,
adverte Habermas, a razão prática quiser manter sua vocação universalista (se
estendendo como possibilidade inclusive para os povos que não estão entre os “felizes
herdeiros” (DD 18) das tradições do Atlântico Norte), esta não pode se
apresentar como uma alternativa verdadeiramente atraente. (Fazendo remissão ao
que falei nas postagens anteriores, sublinho que estas críticas à filosofia da
história, à antropologia e ao contextualismo, ainda que em princípio queiram
mostrar-se convincentes, de um ponto de vista analítico, para toda abordagem
teórica, estão atreladas à história da teoria crítica e ao diagnóstico de
modernidade típicos da linha de desenvolvimento das obras anteriores de
Habermas.)
O fracasso
do trilema anterior, denotando que a razão prática não apenas se tornou um
conceito ultrapassado, mas também não encontrou até o momento um substituto
aceitável, poderia convidar a uma despedida da razão, numa das duas versões (dramática
e sóbria) mais comuns no pensamento contemporâneo: “nas formas dramáticas de
uma crítica da razão pós-nietzscheana ou à maneira sóbria do funcionalismo das
ciências sociais” (DD 19). Habermas se refere, respectivamente, ao
pós-modernismo e à teoria dos sistemas. No primeiro, a razão é apresentada como
um autoengano da modernidade, a ser substituída pelas estruturas no nível
explicativo e pela pura afirmação da vontade no nível normativo. Na segunda,
renuncia-se explicitamente a uma teoria normativa, explicando a ordem em termos
de adaptação funcional a partir de estruturas cegas porém seletivas. Em ambos,
prevaleceria a ideia de que a razão não teria mais qualquer papel relevante a
desempenhar em nossas concepções do sujeito, da sociedade, da moral e da
política. (Perceba-se aqui a semelhança desta estratégia retórica de Habermas
em relação à refutação da Dialética do
Esclarecimento na sua Teoria da Ação
Comunicativa, que vimos na postagem
anterior: em ambos os casos há um cenário em que não haveria mais qualquer
papel para a razão até que surge a razão comunicativa, na TAC para resgatar a
modernidade do conceito unilateral de razão instrumental e agora para
resgatá-la do conceito fracassado de razão prática.) Porém, em vez de apostar
numa estratégia tão radical e contraintuitiva (e – ainda que Habermas não o
diga aqui – imprestável para uma Teoria Crítica), ele prefere “encetar um
caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a
razão prática pela comunicativa” (DD 19). Em seguida, Habermas passa a listar as
consequências diferenciais que surgem desta substituição.
Já vimos,
na postagem
anterior, o que é a razão comunicativa e como ela se distingue da razão
instrumental ou sistêmica. Contudo, de modo sucinto, podemos dizer que a razão
comunicativa é um tipo de racionalidade que opera sempre que dois ou mais
sujeitos tentam se entender sobre algo no mundo por meio da linguagem. Devido
às forças racionalizantes da linguagem e do discurso (que ficarão mais claras
na próxima postagem), quem fixa acordos comunicativos como base para sua ação
posterior se engaja num processo de racionalização da ação por meio da
linguagem. Acordos alcançados comunicativamente são racionais e ações que se
baseiam nestes acordos se tornam igualmente racionais. Nisto já se pode notar a
primeira diferença que Habermas aponta da razão comunicativa em relação à razão
prática: ela “[transporta] o conceito de razão para o medium linguístico e o [alivia] da ligação exclusiva com o elemento
moral” (DD 19). Ela “[transporta] o conceito de razão para o medium linguístico” no sentido de que o
portador da racionalidade não é o sujeito falante, mas a linguagem em si mesma:
“O que torna a razão comunicativa possível é o medium linguístico, através do qual as interações se interligam e
as formas de vida se estruturam” (DD 20). A racionalidade da ação não está
dependente da racionalidade dos sujeitos envolvidos, e sim da racionalidade do
meio (medium) com que estes sujeitos
obtiveram o acordo em que baseiam sua ação. Isto também quer dizer que os
sujeitos em questão não precisam estar inteiramente conscientes e no controle
dos processos de racionalização social em que se engajam. A racionalidade dos
processos decorrentes de sua ação pode ultrapassar o poder de previsão e
controle dos agentes, sem que deixe de ser decorrente da racionalidade comunicativa.
Desta forma, a racionalidade comunicativa se prova capaz de fazer referência a sociedades
complexas, em que os fenômenos ultrapassam o poder de previsão e de controle
dos indivíduos e das coletividades. Portanto, a razão comunicativa não é uma
faculdade subjetiva, e sim uma potência processual: é no processo de
entender-se por meio da linguagem que habita a possibilidade de racionalização.
Ao mesmo tempo, a racionalidade comunicativa toma o conceito de razão e “o [alivia]
da ligação exclusiva com o elemento moral”, porque podem ser os mais diversos
os tipo de ação coordenada entre indivíduos que requerem a formação prévia de
acordos comunicativos, desde os que de fato dizem respeito à fixação de limites
morais para a convivência até outros que tangem à autocompreensão ética de um
grupo, à solução pragmática de problemas no mundo e à obtenção de acordos por
meio de negociação. Não há nenhum compromisso prévio da razão comunicativa com
a moral em detrimento destes outros usos, como havia com a razão prática.
(Habermas aqui parece ter em mente a versão kantiana da razão prática, que é
razão legisladora na dimensão moral, mediante imperativos categóricos, porque os
imperativos hipotéticos relativos a fins determinados ou à felicidade eram produto
da razão teórica e não requeriam liberdade prática do agente. Neste caso, a
razão prática kantiana estava de fato exclusivamente conectada com o elemento
moral. Mas não se pode dizer o mesmo das versões da razão prática, por exemplo,
de Hobbes, Hume, Bentham ou Hegel. Assim, seria mais exato dizer que, ao não
ligar-se exclusivamente ao elemento moral, a razão comunicativa se prova
superior à razão prática kantiana, e
não à razão prática em geral.) Portanto, além de transferir o conceito de razão
do sujeito para o médium da
linguagem, a razão comunicativa também o torna capaz de conectar-se não apenas
com argumentos de tipo moral, mas com uma gama mais ampla de argumentos práticos
(envolvendo os éticos, os pragmáticos e as negociações).
Outra
diferença relevante é que a razão comunicativa, ao contrário da razão prática,
não é legisladora nem informativa,
isto é, “não fornece nenhum tipo de indicação concreta para o desempenho de
tarefas práticas” (DD 21). A razão comunicativa fixa um processo (no caso, o
discurso) com que os próprios participantes podem, em caso de problematização,
chegar a um acordo racionalmente motivado sobre a melhor maneira de agir. Ela
não diz de antemão nem qual a melhor maneira de agir nem qual será o resultado
da discussão entre os falantes. Pelo contrário, ela atribui a este resultado,
qualquer que ele seja, a presunção de ser racional em razão de ter sido obtido
mediante um discurso. Da mesma maneira como, no processo de legislação, uma
conduta se torna obrigatória não por ser boa em si mesma, mas porque a decisão
dos legisladores a apontou como tal e assim a tornou, também no caso do
discurso não existem resultados considerados válidos em si mesmos, senão que se
tornam válidos em vista de terem sido objeto de acordo racional entre os
participantes de um discurso. Não é o discurso que se justifica em vista do
resultado, mas antes o resultado que se justifica em vista do discurso. Assim,
a racionalidade comunicativa não é fonte de normas, mas é fonte do processo com
o qual normas podem ser justificadas. Além disso, a razão comunicativa, ao contrário do que era atribuído à
razão prática, não é capaz de gerar motivação
para o agir. Ela permanece “aquém de uma razão prática [de novo, de tipo kantiano], que visa à motivação e à condução da vontade” (DD 21). O grau de motivação que um agente terá para agir em conformidade
com o objeto do acordo que tenha atingido em discussão com outros agentes é
proporcional ao quanto é capaz de ser motivado a fazer o que é legítimo ou
correto. A racionalidade comunicativa do resultado não acrescenta por si mesma
um tipo adicional de motivação que já não existisse antes, ou seja, apenas os
agentes motivados a agir de acordo com o que é mais racional se sentirão também
motivados a agir em conformidade com acordos obtidos comunicativamente.
Desta
forma, a razão comunicativa, além de não ser fonte de normas, também não é
fonte de motivação para agir conforme normas. Ela fornece apenas, para o teórico, uma forma de reconstrução racional do agir orientado
por normas que se mostra na conduta dos agentes. Isto quer dizer que seu uso
por parte de uma Teoria Crítica não está em explicar certos processos sociais (o
fato de certa comunidade ter adotado certa norma, e não outras, ou o fato de
certa comunidade obedecer ou não a certa norma) remetendo-os diretamente à
razão comunicativa. Está, sim, em proporcionar ao teórico crítico um “fio
condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e
preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado
conforme o direito” (DD 21). Se uma comunidade política adota uma norma que
obriga o uso do cinto de segurança para prevenir danos pessoais em possíveis
acidentes de trânsito e os indivíduos reagem a esta norma positivamente,
acatando-a e agindo em conformidade com ela, não é necessário, para uma Teoria
Crítica, nem provar que a norma que obriga o uso do cinto está em maior
conformidade com a razão comunicativa do que a norma que não o fizesse (a razão
comunicativa não informa quais normas adotar) nem provar que o motivo por que
os indivíduos obedecem a dita norma é o respeito pela razão comunicativa (pois
esta também não é motivadora do agir). É necessário apenas que a referida
Teoria Crítica observe que os procedimentos com os quais dita norma foi
produzida respeitam os requisitos da razão comunicativa (o que passa por uma
teoria discursiva da esfera pública [cap. VIII] e da legislação [cap. VII]) e
que, por conseguinte, a norma em questão deixa aos agentes tanto a
possibilidade de a obedecerem em razão da sanção quanto a possibilidade de a
obedecerem em razão do respeito por sua legitimidade. Esta reconstrução
racional, sendo menos exigente (pois não cobra derivação da norma a partir da
razão nem condução da vontade a partir da razão) do que a razão prática,
permite também que a Teoria Crítica que trabalhe com ela “a conexão com modos
de ver funcionais e com explicações empíricas” (DD 19) ao mesmo tempo que “coloca-nos
nas mãos uma medida crítica que permite julgar as práticas de uma realidade
constitucional intransparente” (DD 22), com “intransparente” significando que
não é imediatamente óbvio quando as práticas e normas adotadas são legítimas ou
não do ponto de vista racional.
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