Explicando “Direito e Democracia” (4A): O Sentido da Tensão entre Facticidade e Validade
O conceito
de tensão entre facticidade e validade é central para o projeto e estrutura de “Direito
e Democracia”. É central para o projeto porque as tarefas que o livro se
atribui são duas: (1) usar a tensão interna
entre facticidade e validade para desfazer dicotomias persistentes nas teorias
normativas do direito e da democracia (legalidade e legitimidade, direitos
humanos e soberania popular, moral e direito, direito e poder, consistência e
correção etc.); e (2) usar a tensão externa
entre facticidade e validade para desfazer a dicotomia entre uma teoria ideal
da democracia com base na ideia de soberania popular e os modelos empíricos de
circulação de poder e formação da legislação com base em dinâmicas de luta e de
interesse. É central para a estrutura da obra porque, dos nove capítulos que
formam o livro, os dois primeiros (I e II) se dedicam a introduzir o conceito
de tensão entre facticidade e validade e sua metodologia de investigação
correspondente, os quatro capítulos intermediários (III a VI) se dedicam a
realizar a primeira tarefa a partir da tensão interna entre facticidade e validade e os três capítulos finais (VII
a IX) se dedicam a realizar a segunda tarefa a partir da tensão externa entre facticidade e validade.
Portanto, é seguro dizer que entender este conceito é fundamental para entender
a obra toda.
1 – O que é
a tensão entre facticidade e validade?
Esta
pergunta precisa ser respondida em duas partes: a primeira esclarecendo os
polos da tensão (o que é “facticidade” e o que é “validade”) e a segunda
indicando o que significa e que implicações decorrem de dizer que entre os dois
polos existe uma “tensão”. Vamos seguir esta ordem de coisas.
“Facticidade”
não se refere exatamente aos fatos ou à qualidade de ser um fato, mas sim à
necessidade de preencher certas condições para tornar-se um fato social, isto
é, para ter e manter existência fática numa sociedade concreta. Assim, a
coerção (ou melhor, o fato de que o direito é coercivo: limita o espaço de
liberdade dos indivíduos) será apresentada como condição da facticidade do
direito porque, sem ameaça e aplicação de coerção, o direito não teria eficácia, isto é, sem coerção, o direito
não se materializaria como fato na conduta dos indivíduos, eles não se
comportariam em conformidade com ele. Já a positividade (ou melhor, o fato de
que o direito é positivo: criado, modificado e extinto por um ato de decisão do
legislador político) será apresentada como condição da facticidade do direito
porque, sem positividade, isto é, sem que um ato político de decisão o
trouxesse ao mundo, o direito tal como é hoje (separado da natureza, da
religião e da tradição) não teria existência
como fato social, como instância que pode ser conhecida e levada em conta pelos
indivíduos. Assim, para que o direito seja um fato social real, ele precisa ser
coercivo (para ser eficaz) e positivo (para ser existente), o que é o mesmo que
dizer que coerção e positividade são elementos de sua facticidade.
“Validade”,
por sua vez, também não se refere exatamente aos valores ou à qualidade de ser
um valor, mas sim à necessidade de preencher certas condições para ter valor
social, isto é, para ser reconhecido como valioso pelos indivíduos em
sociedade. Assim, a liberdade (ou melhor, o fato de que o direito protege
liberdades individuais na forma de direitos subjetivos) será apresentada como
condição da validade do direito porque, sem que fosse protetor da liberdade, o
direito não seria reconhecido como valioso (e, portanto, como aceitável) no que
se refere ao seu conteúdo, isto é, não seria visto como correto. Já a
legitimidade (ou melhor, o fato de que o direito precisa apresentar-se como
direito legítimo, merecedor de obediência) será apresentada como condição da
validade do direito porque, sem que se apresentasse como legítimo, o direito
não poderia obter adesão racional por parte dos indivíduos, o que (da mesma
forma que a ausência de coerção) afetaria a obediência destes últimos e o
impediria de ser eficaz.
Dizer que
existe uma “tensão” entre a facticidade e a validade do direito implica sustentar
quatro teses ambiciosas sobre o direito (a lista das quatro teses e seus nomes
respectivos são criação minha, não estão no texto de Habermas). Em primeiro
lugar, implica a Tese da Oposição
Complementar: As condições de facticidade e de validade formam dois pares
de condições (respectivamente, liberdade e coerção como primeiro par,
positividade e legitimidade como segundo par) opostas (no sentido de que a
realização de uma concorre com a da outra), mas complementares (no sentido de
que a realização de uma ocorre por meio da outra), quais sejam: a liberdade limita
a coerção, mas é ao mesmo tempo o que a torna aceitável, ao passo que a coerção
limita a liberdade, mas é ao mesmo tempo o que a torna possível; a positividade
limita a legitimidade, mas é ao mesmo tempo o que a torna possível, ao passo
que a legitimidade limita a liberdade mas é ao mesmo tempo o que a torna
aceitável. Em segundo lugar, implica a
Tese da Satisfação Simultânea: para todo direito socialmente existente, é
indispensável que satisfaça ao mesmo tempo às condições tanto de facticidade
quanto de validade. Em terceiro lugar, implica a Tese da Dependência Recíproca: existe uma dependência recíproca entre
satisfazer a condições de facticidade e satisfazer a condições de validade, no
sentido de que déficits de validade afetam a facticidade e déficits de
facticidade afetam a validade. Por fim, em quarto lugar, implica a Tese da Limitação Recíproca: a
necessidade de satisfazer às condições de facticidade impede que o direito
satisfaça plenamente às condições de validade, da mesma forma como a
necessidade de satisfazer às condições de validade impede que o direito
satisfaça plenamente às condições de facticidade. De acordo com a interpretação
que aqui proponho da tensão entre facticidade e validade, este conceito se
refere sempre ao mesmo tempo às três teses mencionadas. Gostaria de dizer algo
a mais acerca de cada uma delas.
A Tese da Oposição Complementar realiza
uma conexão entre o plano conceitual e o plano empírico da relação dentro de
cada par de condições, pois os pares reúnem condições que são opostas no plano
conceitual, mas complementares no plano empírico. Liberdade pode ser definida
como ausência de coerção e coerção como limitação da liberdade. Portanto, no
plano conceitual, ambos são opostos. Contudo, sem que houvesse coerção para
limitar a liberdade de cada um, as liberdades dos indivíduos se violariam umas
às outras, resultando numa perda universal de liberdade (como ilustrado no
cenário hipotético do estado de natureza hobbesiano). Logo, sem coerção, a
liberdade é impossível. Por sua vez, a coerção total, com controle completo
sobre cada passo da conduta de cada indivíduo, criaria um cenário insuportável
de negação e frustração da subjetividade, que levaria à rejeição total da
coerção. Logo, sem liberdade, a coerção é inaceitável. Em relação ao par
formado por positividade e legitimidade se passa algo semelhante. A
positividade implica possibilidade de tornar qualquer conteúdo em direito, ao
passo que a legitimidade obriga a que apenas certos conteúdos possam ser
tornados direito. No plano conceitual, novamente, ambos são opostos. Contudo,
sem legitimidade, a positividade consistiria em atos de decisão que não teriam
por que ser obedecidos, enquanto, sem positividade, os conteúdos que merecem
ser obedecidos não teriam atos de decisão com os quais se tornarem
obrigatórios. Novamente, sem positividade, a legitimidade é impossível, mas,
sem legitimidade, a positividade é inaceitável. O elemento de facticidade torna
possível o de validade (isto é, o traz para o mundo dos fatos), ao passo que o
elemento de validade torna aceitável o de facticidade (isto é, o traz para o
mundo dos valores). Assim, se, no plano conceitual, as condições que formam
cada um dos pares são opostas, no plano empírico elas se mostram complementares
entre si, porque uma dá à outra possibilidade e recebe dela aceitabilidade em
retorno.
A Tese da Satisfação Simultânea permite não
apenas o raciocínio progressivo (das condições para a realidade: Se A, então B)
de que, para vir a ser direito socialmente existente, o direito deve
satisfazer, em medida suficiente, às condições tanto de facticidade quanto de
validade, mas também o raciocínio regressivo (da realidade para as condições:
Se B, então A) de que, para todo direito que já é socialmente existente, se
pode pressupor que ele satisfaz, em medida suficiente, às condições tanto de
facticidade quanto de validade (afinal, do contrário, não teria conseguido ser
direito socialmente existente).
A Tese da Dependência Recíproca funciona
por causa da função conectiva e retroalimentadora exercida pela legitimidade: a
legitimidade é ao mesmo tempo condição direita
de validade (faz com que o direito seja reconhecido como merecedor de
obediência) e condição indireta de
facticidade (predispõe o destinatário a de fato obedecer ao direito). Daí que,
por exemplo, sem liberdade (que é, em princípio, elemento de validade), o
direito deixa de ser reconhecido como correto, deixa de ser merecedor de
obediência, perde em eficácia e, portanto, em facticidade; sem coerção (que é,
em princípio, elemento de facticidade), o direito perde em eficácia, a falta de
eficácia leva o indivíduo a não se sentir obrigado a seguir obedecendo ao
direito, o que afeta sua legitimidade e, por conseguinte, sua validade; sem
positividade (que é, em princípio, elemento de facticidade), o direito
permanece dependente de algum elemento natural, metafísico ou tradicional,
desligando-o da vontade dos indivíduos, o que afeta sua legitimidade e, por
conseguinte, sua validade. Daí que, por causa e por meio do filtro geral da
legitimidade, déficits de facticidade afetam a validade e déficits de validade
afetam a facticidade. Por causa da dependência recíproca, o direito tem que se
manter satisfazendo ao mesmo tempo às condições de facticidade e validade, o
que mostra que a Tese da Dependência Recíproca termina por reforçar a Tese da
Satisfação Simultânea.
Já a Tese da Limitação Recíproca ao mesmo
tempo decorre da Tese da Satisfação Simultânea e concorre com a Tese da
Dependência Recíproca, criando um ciclo dinâmico entre as três teses. Decorre
da Tese da Satisfação Simultânea porque, como é preciso satisfazer às condições
tanto de facticidade quanto de validade, cenários em que a satisfação de algum
aspecto da validade dependeria da supressão de algum aspecto da facticidade (por
exemplo, em que a máxima realização da liberdade implicasse abrir mão da
coerção) ou vice-versa (por exemplo, em que a absoluta positividade implicasse
abrir mão de qualquer legitimidade) se tornam impossíveis (não no sentido de
uma impossibilidade teórica, do tipo lógico, metafísico ou empírico, mas no
sentido de uma impossibilidade prática, isto é, é impossível que tal cenário se
verifique e o direito em questão siga sendo socialmente existente). Concorre
com a Tese da Dependência Recíproca porque, se déficits de validade afetam a
facticidade, e vice-versa, mas a realização plena de condições de facticidade é
impossível devido à necessidade de seguir satisfazendo condições de validade, e
vice-versa, então, é inevitável que o direito se mantenha socialmente existente
mediante uma gestão de déficits de facticidade e de validade. O direito, para
ser socialmente existente, sempre atenderá a todos os aspectos da tensão em
alguma medida, mas nunca os atenderá plenamente, o que significa que sempre
será deficitário em todos eles. Isto cria um ciclo dinâmico entre as três teses
porque estes déficits são precisamente o que dá ao direito um esquema de
renovação constante: para assegurar novas formas de liberdade são precisas
novas formas de coerção, que por sua vez exigem novas proteções da liberdade;
para exercer nova positividade, é preciso assegurar legitimidade, a qual, por
sua vez, tem que ser vertida em nova positividade mais uma vez. Como as pernas
de um quadrúpede, as quatro condições do direito usam seus déficits de
satisfação para manter sua perpétua caminhada.
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