O desafio do Positivismo Normativo a Dworkin e a repolitização da Filosofia do Direito

Dworkin chama de comunicacional o modelo de interpretação de normas jurídicas que se preocupa em descobrir a intenção do autor. Seria comunicacional porque análogo ao modo como tentamos descobrir a intenção do locutor em atos de comunicação como conversas e cartas. Para Dworkin, no caso de atos de comunicação, faz sentido buscarmos a intenção do locutor, porque uma conversa ou uma carta não é algo distinto e independente da relação que temos com a pessoa que fala ou escreve para nós. Sendo assim, saber aquilo que S quis dizer com x é mais importante do que saber o que x pode significar em contextos distintos daquele em que S o enunciou.

Contudo, explica Dworkin, normas jurídicas não devem ser interpretadas como atos de comunicação, mas como instituições políticas de uma comunidade. Para ele, isto tem a consequência de que não devem ser interpretadas segundo o modelo comunicacional, e sim segundo o modelo construtivo. Este modelo compromete o intérprete com a busca do sentido capaz de apresentar o objeto sob sua melhor luz, o que, no caso de uma instituição política, quer dizer mostrá-la como o tipo de instituição que contribui para o tipo de comunidade que temos. Como Dworkin considera que o tipo de comunidade que temos não é uma comunidade meramente acidental nem uma comunidade de regras, e sim uma comunidade de princípios, e como uma comunidade de princípios está vinculada a tratar cada um de seus membros em conformidade com o ideal da integridade, interpretar uma norma jurídica implica descobrir de que forma ela contribui mais para a integridade. O duplo teste de ajuste institucional e apelo moral seriam requisitos com os quais se prova que certa interpretação realiza melhor o ideal de integridade.

Em resumo: (1) Normas não são atos de comunicação, e sim instituições políticas; (2) instituições políticas não devem ser interpretadas em função da intenção de seus autores, e sim em função do quanto contribuem para certo tipo de comunidade; (3) o tipo de comunidade que somos é uma comunidade de princípios regida pelo ideal da integridade; e (4) numa comunidade de princípios, isto quer dizer que devem ser interpretadas em função do quanto realizam a integridade.

O desafio que o positivismo normativo (Campbell, Waldron, MacCormick, Schauer) lança contra esta tese é o seguinte. Assumamos que, no tocante às teses acima, Dworkin esteja certo quanto a (1) e (2). Mas, em vez de nos vermos como uma comunidade de princípios, nos víssemos como uma comunidade liberal democrática, uma em que queremos ter controle sobre as condições de nossa convivência, protegendo a liberdade e respeitando as decisões democráticas tomadas. Suponhamos que, nesta comunidade, para que se realizasse o ideal da proteção da liberdade e da realização da democracia, fosse indispensável que o judiciário aplicasse o direito não apenas do modo como os legisladores queriam que ele fosse aplicado, mas também do modo como qualquer membro desta comunidade bem informado sobre o direito esperaria que ele fosse aplicado. Ou seja, para sermos uma comunidade liberal democrática no sentido posto acima, seria preciso que a aplicação do direito fosse intencionalista e direta, com quase nenhuma intervenção ou contribuição positiva do judiciário para o conteúdo das regras. Portanto, se, na tese (3), substituíssemos a comunidade de princípios por uma comunidade liberal democrática, então, teríamos, na conclusão (4), que as normas devem ser interpretadas de modo intencional e direto, pois assim contribuem mais para o ideal de proteção da liberdade e de realização da democracia.

Ou seja, todo o esquema de argumento proposto por Dworkin poderia ser assumido como correto e ainda assim levar à conclusão oposta à sua, dando preferência ao positivismo sobre o interpretativismo. Neste caso, Dworkin ainda poderia objetar que a comunidade de princípios que ele propôs protege melhor a liberdade e realiza melhor a democracia do que a comunidade liberal democrática baseada em regras intencionais e diretas. Mas – e isso é muito importante de ser entendido – neste caso a discussão teria se deslocado de foco: não seria mais uma discussão sobre o melhor modo de interpretar normas jurídicas, e sim uma discussão sobre o melhor modo de proteger a liberdade e realizar a democracia. Não seria uma discussão estritamente de filosofia do direito, mas sim sobre qual filosofia do direito está em conformidade com um tipo sustentável de filosofia política. O modo de interpretar as normas seria dependente de nossa concepção da comunidade política e seria no campo dos ideais políticos, e não dos métodos interpretativos, que a questão da interpretação das normas seria realmente decidida. Assim, mesmo que não concordemos com a proposta do positivismo normativo, esta mudança do foco do debate e esta reconexão da filosofia do direito com a filosofia política deve ser considerada ganhos substantivos decorrentes do desafio de Dworkin ao positivismo analítico e do positivismo normativo a Dworkin.

Comentários

Luana disse…
André, muito interessante esse debate! Novamente, gostaria de uma sugestão de leitura, especialmente sobre a ideia de interpretação intencional e direta como o melhor modo de proteger a liberdade e a democracia. Obrigada!

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