Sobre Ensino Jurídico: Mais Weber, Menos Kelsen

Sustento a seguinte tese: As disciplinas de introdução ao direito deveriam dar a Max Weber o tempo e a atenção que costumam dispensar a Hans Kelsen. Não que a teoria de Kelsen não seja importante para a história do pensamento jurídico e para a história do positivismo jurídico continental. Não apenas não nego esta importância como digo mais: Kelsen foi o maior filósofo do direito continental no Séc. XX. Mas a centralidade que se concede a Kelsen naqueles cursos não se deve à solidez filosófica de sua teoria, mas, ao contrário, normalmente deriva do equívoco de supor que a influência dominante do positivismo jurídico sobre a dogmática e sobre a prática jurídica tenha algo a ver com a teoria de Kelsen. Tal suposição deixa de perceber que muitas das ideias de Kelsen nunca tiveram recepção alguma da dogmática e da prática jurídica, como, para citar apenas algumas, o conceito kelseniano de constituição, de autoridade, de pessoa, de obrigação, de direito subjetivo, de sanção, sua concepção de liberdade, de norma completa, de interpretação, de decisão judicial etc. O próprio Kelsen, quando formula suas ideias a respeito destes pontos, se vê como reformando os modos de pensar dominantes no senso comum jurídico, e não como explicitando os critérios com que os dogmáticos e práticos já trabalham. (Por isso o momento certo de ver Kelsen é na disciplina de filosofia do direito, apresentando sua teoria como uma tentativa de impor ao estudo do direito uma cientificidade neokantiana baseada na ideia de formalismo metodológico, de construção conceitual e de descrição neutra.)

Na verdade, o formato positivista que a dogmática e a prática jurídica assumiram não tem a ver com a influência de nenhuma teoria em particular, e sim com as características do Estado moderno, da economia capitalista, da racionalidade formal, do saber jurídico especializado etc. que se tornaram dominantes na passagem das sociedades pré-modernas para as modernas. A explicação do nosso modo habitual de lidar com o direito é muito mais uma explicação histórica e sociológica que uma explicação filosófica. E, neste sentido, o teórico que pode fornecer um histórico social mais abrangente de como este processo se realizou e culminou no tipo de dogmática e prática jurídica que temos hoje é Weber. Em vez de investir tempo em fazer o aluno entender ideias abstrusas e pouco úteis na prática como de norma fundamental, sistema dinâmico, moldura de interpretação etc., um contato inicial com as ideias de separação das esferas de valor, de transição da razão substantiva para a razão formal, de burocratização, de autoridade legal, de formalização do direito, de especialização do saber jurídico etc. cumpriria melhor o papel de explicar ao aluno iniciante por que o direito que ele, mais tarde no curso, encontrará nas obras de dogmática e na prática jurídica dá primazia à lei, à autoridade, à forma, à segurança e à linguagem técnica. O “positivismo jurídico” ao qual o aluno iniciante precisa ser apresentado mais urgentemente não é a teoria filosófica (que dista bastante da dogmática e da prática), e sim o fenômeno histórico-social que moldou nossa forma contemporânea de lidar com o direito.

Recomendação Bibliográfica: Para professores que achem esta ideia interessante, minha recomendação de leitura preparatória e de uso (seletivo) em sala de aula são o cap. III da Parte 1 e os caps. de VIII-XI da Parte 2 de “Economia e Sociedade” (ed. UnB). Como complemento e orientação, recomendo o uso da obra “Max Weber” (que destaca o tema do direito), escrita por Anthony Kronman (ed. Campus Jurídico). Para aprofundamento, há uma coletânea excelente (com textos de Weber e sobre Weber) sobre a abordagem do direito em Weber chamada “Max Weber on Law in Economy and Society”, organizada por Max Rheinstein e cuja leitura é proveitosa. Para amparo de uma visão mais geral sobre Weber, recomendo, além da obra de Kronman, as obras “A sociologia de Max Weber”, de Julien Freund (ed. Forense Universitária), “Paradoxos da Modernidade”, de Wolfgang Schluchter (ed. UNESP), e “Crítica e Resignação”, de Gabriel Cohn (ed. Martins Fontes).

Complemento:

A questão sobre incluir ou não Kelsen no conteúdo de introdução ao direito depende do propósito que se tem em vista. De certa maneira, temos dificuldade de chegar a um consenso aqui porque não temos um consenso prévio acerca do que deveria fazer uma disciplina de introdução ao direito. Por um lado, o formato antigo, em que se estudavam conceitos como coisa, pessoa, relação jurídica, negócio jurídico, fontes formais e materiais etc. já se pode considerar superado, mas não é claro, por outro lado, qual deve ser o formato alternativo a ser adotado em vez daquele. O professor tem muitas opções, entre as quais (coisa que eu fazia quando dava a disciplina) a de transformar o curso de introdução ao direito num pré-curso de filosofia do direito e colocar o aluno logo em contato com Kelsen, Hart, Dworkin, Alexy etc. Se o professor de introdução ao direito acha importante que o aluno tenha contato com teorias filosóficas sobre o direito desde o início, não há problema em ver Kelsen, uma vez que Kelsen definitivamente é uma das teorias filosóficas importantes a serem vistas. E, sim, concordo que Kelsen é mal compreendido e desfazer os equívocos da má interpretação que se faz dele deve estar entre os objetivos do professor de filosofia do direito e, se se concebe introdução ao direito tomando inspiração em filosofia do direito, também do professor de introdução.

Mas o meu ponto não é este. O meu ponto é que Kelsen, por mais qualificada que seja sua teoria positivista, não pode ser invocado e usado para compreender o tipo de positivismo jurídico que predomina em nossa dogmática e prática jurídica moderna. Isso porque o positivismo que predomina em nossa dogmática e nossa prática não é positivismo kelseniano, como não é benthamiano, nem austiniano, nem hartiano, nem raziano etc. Ele é um tipo de positivismo que se desenvolveu em resposta a uma série de transformações sociais e institucionais típicas da modernidade e que, por isso mesmo, não pode ser apresentado como resultante de nenhuma teoria filosófica em particular, tendo que ser explicado por meio de uma explicação ampla do que é a modernidade, a racionalização, a especialização, a burocratização etc. E nisso Weber tem muito mais a ajudar do que Kelsen. Este é o meu verdadeiro ponto. Quer dizer: se o professor de introdução organiza o seu curso como um pré-curso de filosofia do direito, então, claro, Kelsen tem um lugar nele. Mas, mesmo que o professor opte por tal ênfase filosófica, ele ainda está na posição de ser o primeiro professor que vai dizer ao aluno o que o direito é e como ele funciona, e nesta tarefa Kelsen é um mau intermediário, porque a dogmática e a prática jurídica, embora de corte bastante positivista, não seguem as ideias básicas de Kelsen. É para desempenhar esta tarefa de dizer ao aluno o que o direito é e como ele funciona que Weber fornece mais ferramentas que Kelsen. Eis o que estou defendendo.

E, a meu ver, não cabe delegar esta tarefa exclusivamente ao professor de sociologia geral e sociologia do direito. Primeiro porque, quando este professor falar de Weber, será numa sequência de seu programa em que precisa falar de vários clássicos da sociologia, e assim terá tanto tempo para Weber quanto teve para Comte, Durkheim, Marx, Simmel, Mead, Schutz, Garfinkel, Bourdieu, Giddens etc. Segundo porque, quando falar de Weber, o professor de sociologia do direito estará preocupado em primeiro lugar em mostrar como Weber concebe a tarefa da sociologia, em falar de sociologia compreensiva, do problema do Verstehen, dos tipos ideais, da tipologia das ações, da tipologia das relações, do papel da ética protestante etc. Ou seja, não apenas Weber terá o mesmo espaço que aqueles vários outros clássicos, como este espaço que ele terá ainda terá que ser ocupado por todos os seus conceitos sociológicos fundamentais para, se der tempo, falar da sua concepção sobre o direito no fim do espaço dedicado a ele. Terceiro porque, mesmo que o professor de sociologia do direito consiga espaço decente para falar da abordagem do direito em Weber, ele o fará com uma ênfase distinta daquela com que o professor de introdução o faria. Isto porque o professor de sociologia do direito, tem, por ofício de sua posição pedagógica, o dever de enfatizar a relação do direito com fenômenos sociais mais amplos e, assim, encorajar no aluno desde o princípio uma visão do direito que não o aprisione como fenômeno isolado, passível de ser estudado apenas segundo sua própria lógica interna. O professor de sociologia do direito que não estiver fazendo isto não está cumprindo com um dos misteres básicos de sua tarefa. Já o professor de introdução, se viesse a seguir minha sugestão e abordar Max Weber, não o faria porque Weber é um dos clássicos da sociologia e porque Weber ajuda a ver as relações do direito com fenômenos externos a ele, e sim porque a abordagem do direito em Weber ajuda a realizar uma das tarefas do professor de introdução, a saber, a de dizer ao aluno o que o direito é e como ele funciona. A dogmática e a prática jurídica em que o aluno será treinado durante todo o restante do curso estão dominados pela centralidade do Estado, pela centralidade da lei, pelo primado da forma, pelo ofício burocratizado e especializado etc., ou seja, elas têm precisamente a forma com que Weber as descreveu e que Weber ajuda a explicar de onde vieram. Então, mesmo que Weber fosse visto tanto na sociologia do direito como na introdução ao direito, seria de formas distintas, com ênfases e propósitos distintos.

Ainda se pode acrescentar um quarto motivo, que é que o aluno que entra na graduação em direito assimila o conteúdo de introdução ao direito e o conteúdo de sociologia do direito em duas caixinhas distintas do seu cérebro: enquanto o conteúdo de introdução ao direito vai para a caixinha das coisas importantes que são preparatórias para o que vou ver nas disciplinas dogmáticos e na prática jurídica e com que vou trabalhar pela vida toda, o conteúdo de sociologia do direito vai para a caixinha das coisas interessantes que me ensinam nas disciplinas propedêuticas mas que depois não estão mais conectadas com nada do que vou ver adiante nem tem um uso imediatamente prático para o tipo de profissão que vou ter. Estou apenas descrevendo aqui como a mente do graduando funciona. Podemos – e até devemos – contestar que ele tenha boas razões para pensar assim, mas não podemos negar que seja de fato assim que o aluno pensa. Então, o professor de sociologia do direito usar Weber e dizer “isto aqui é o direito moderno” soa de uma forma para o aluno, com certo grau de autoridade, mas o professor de introdução, quer dizer, aquele que está preparando o aluno para o que ele vai encontrar no restante do curso e na vida profissional, usar Weber e dizer “isto aqui é o direito moderno” soa de forma completamente diferente e com outro grau de autoridade. Neste comentário não vai nenhum demérito à sociologia do direito nem aos colegas que a ensinam, pelo contrário: considero que esta seria uma ótima oportunidade para tornar o professor de introdução ao direito porta-voz de uma lição importante, neste caso, da lição de que aquilo que o direito é e como ele funciona só pode ser entendido adotando um ponto de vista multidisciplinar mais amplo, que envolve inclusive os clássicos da sociologia. Meu ponto é apenas que ouvir “isto aqui é o direito moderno” do professor de introdução ao direito tem para o aluno um peso distinto de o ouvir de qualquer outro professor das disciplinas propedêuticas do primeiro ano.

Comentários

maria cristina disse…
Acredito que haja também um outro elemento aqui: Kelsen era leitor de Weber (ainda que Weber tratasse seu conterrâneo com certa distância). E essa leitura - ainda que não tenha se convertido em uma conversa prolongada, tinha um motivo: o diálogo efetivamente estabelecido entre direito e sociologia. As perguntas eram muitas: quais os campos de análise, a questão da subjetividade, a projeção do direito sobre a sociedade (a leitura de Bobbio a esse respeito é valiosa), as divergências com Kantorivicks e com o marxismo. No Brasil, especialmente, Kelsen virou um protocolo que poucos entendem - e muitos julgam ser um "anti-sociólogo" que nunca dialogou com a sociologia. Arauto dos cursos de direito no período militar, foi tão massacrado no Brasil que tornou-se o porta voz de um EStado que rejeitava a produção teórica da sociologia, identificada (com razão) com a crítica ao próprio Estado.
Anônimo disse…
Não consigo esquecer a profundidade de suas aulas, bem como a explanação sistemática e perfeitamente dentro do cronograma.

Poucos professores tem a capacidade de iniciar e terminar uma aula tão perfeita e metodicamente clara, que o aluno sequer tenha tempo de ter dúvidas. A ligação entre a introdução, desenvolvimento e conclusão é tão real que parece muito mais uma palestra do que uma simples aula de direito.

Tive o privilégio de ter professores assim no CESUPA. Obviamente o senhor é um deles.

Parabéns pelas conquistas.

Remi Barros.

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