O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral: Resumo do Artigo de Hart

Em 1958, Hart publicou o artigo “Positivism and the Separation of Law and Morals”, que registrava o conteúdo de uma conferência que havia ministrado em Harvard. Não é exagero dizer que este é um dos textos mais importantes da história da filosofia do direito e que ainda hoje, 55 anos depois de sua publicação, segue fornecendo uma das abordagens mais lúcidas e inspiradoras sobre o assunto. Trata-se de um clássico, que, como tal, vale a pena ser consultado de tempos em tempos, várias e várias vezes, por sua capacidade infinita de inspirar clareza e rigor, de contemplar ao mesmo tempo diversos aspectos da relação entre direito e moral e de chamar atenção para pontos importantes que um teórico não deve negligenciar quer esteja do lado positivista ou antipositivista da controvérsia. Por tudo isso, considero ao mesmo tempo uma honra e uma contribuição, verdadeiro serviço de utilidade pública, postar neste blog um pequeno resumo, expondo as teses e argumentos de cada uma das seis seções do texto de 58. Espero que sirva para professores e estudantes, não, claro, como substituto da leitura do texto (que consta da coletânea “Ensaios sobre teoria do direito e filosofia”, publicada no Brasil pela ed. Campus), mas como guia de pontos principais a serem contemplados em qualquer discussão séria a respeito do artigo de Hart.

RESUMO DAS SEÇÕES

[Introdução] Hart louva a clareza e adverte contra a obscuridade na teoria do direito. Diz que defenderá a tese da separação entre direito e moral, de Bentham e Austin, contra os que consideram que existe uma conexão inevitável entre os dois e que o que é e o que deve ser estão indissociavelmente ligados.

[Seção I] Nesta primeira seção, Hart tenta situar a tese da separação no contexto das ideias reformistas e utilitaristas de Bentham e Austin, esclarecendo no que a tese consistia e que problemas visava a evitar. Hart afirma que a tese foi formulada insistentemente por Bentham e Austin e tem sido atacada recentemente não apenas por ser intelectualmente enganosa, mas também por ter consequências práticas danosas, como diminuir a resistência à tirania e ao absolutismo e gerar desrespeito pelo direito. Para deixar claro que os autores da tese a formularam num quadro politicamente informado e responsável, relembra que os dois eram utilitaristas que combinavam o amor pela reforma com o respeito pelo direito e que suas ideias contribuíram para o avanço do regimes de liberdades e do estado de direito. Neste quadro, ambos pensavam que a tese da separação contribuía para compreender a natureza da autoridade do direito (livrando-o do ponto de vista do anarquista) e para manter a possibilidade de crítica ao direito (livrando-o do ponto de vista do reacionário). Hart esclarece que, da maneira como Bentham e Austin a propuseram, a tese não implicava nem que não houvesse coincidência considerável de conteúdo entre direito e moral nos sistemas jurídicos existentes nem que não fosse possível submeter legisladores e juízes a critérios e limites morais no exercício de suas funções. Implicava apenas que violar padrões morais não tornava uma norma jurídica inválida, assim como ser moralmente desejável não tornava uma norma juridicamente válida. Termina a seção lembrando como aquela tese da separação foi saudada pela posteridade jurídica como uma descoberta simples e luminosa.

[Seção II] Nesta segunda seção, Hart fala da associação da tese da separação com outras duas teses dos utilitaristas, a da teoria analítica do direito e a do caráter imperativo das normas jurídicas, atribuindo ao equívoco de supor que as três teses são inseparáveis a tendência de usar argumentos contra a tese da norma como comando como razões para abandonar a tese da separação entre direito e moral (recomenda-se toda atenção para a nota 25). Hart resume a tese da norma como comando dizendo que se trata do modelo em que comandos são expressões da vontade de um sujeito sobre como outro deve agir acompanhadas da ameaça de sanção em caso de desobediência, sendo requisitos para que um comando seja uma lei que ele seja geral e que ele seja expresso pelo soberano, isto é, por aquele que é habitualmente obedecido por todos e que não obedece habitualmente a ninguém. Aponta os problemas desta teoria: que o hábito de obediência não explica a relação entre corpos de soberanos e súditos que se sucedem no tempo; que os soberanos estão sujeitos a normas que tornam seus atos de poder válidos juridicamente; que, no caso das democracias, as figuras do soberano e do súdito se confundem; e que, se todas as normas forem concebidas como comandos, se distorce a natureza das normas que atribuem direitos e poderes e fixam condições para seu exercício. No caso desta última objeção, mostra como críticos ingleses e continentais detectaram corretamente o problema, mas supuseram equivocamente que ele se resolvia apenas com a admissão de que normas morais têm um lugar necessário no direito. Hart insiste em que é possível admitir todos os problemas da teoria da norma como comando e ainda assim manter a tese da separação.

[Seção III] Nesta terceira seção, Hart procura responder à crítica dos realistas americanos de que a tese da separação não resistiria a um exame de como juízes decidem casos. Hart usa o exemplo da proibição de veículos no parque e do enfrentamento com casos problemáticos (bicicletas, patins, carrinhos de brinquedo, aviões) para distinguir, quanto a cada regra, um núcleo de sentidos estabelecidos, onde estariam casos não problemáticos, e uma zona de penumbra, em que estariam casos que têm semelhanças e diferenças em relação aos não problemáticos e cuja disciplina pela regra em questão não é óbvia. Na medida em que todas as regras tivessem zonas de penumbra, os juízes seriam desafiados a tomarem decisões com critérios que não derivam dedutivamente das regras, critérios estes que, segundo aqueles críticos, se referem ao que o direito deve ser e coincidem com normas morais. O erro de conceber as decisões judiciais como deduções mecânicas a partir das regras é chamado de formalismo, e a acusação de formalismo pode ser feita tanto contra os teóricos do direito quanto contra os juízes. Contra os teóricos, significa que deixam de contemplar um aspecto importante de como o direito funciona. Este não era o caso de Austin, que admitia vagueza nas leis, aceitava a ideia de que em casos obscuros os juízes legislavam e advogava pelo exercício da legislação judicial com vista a fins socialmente relevantes. Contra os juízes, assume a forma de uma acusação de uso exagerado da lógica, mas, como a lógica nada tem que ver com como interpretar termos particulares, o que os críticos de fato estão apontando é para um uso mecânico e não responsável dos conceitos (o qual é raro na prática, sendo mais frequente que certas decisões ou assumam a intepretação literal como política social ou usem dela para tomar decisões conservadoras). Porém, nada nesta crítica prova que a tese da separação é falsa, pois os críticos não negam que decisões mecânicas sejam direito, apenas as consideram mau direito, o que, em vez de refutar a separação, lança mão dela.

Para afastar a tese da separação, seria preciso reformular a crítica ao formalismo dizendo que os critérios morais e políticos que os juízes usam para ir além das regras são parte do direito e que seu emprego, em vez de legislação judiciária, é parte da descoberta do que o direito é. Haveria continuidade entre os casos de aplicação clara e os da zona de penumbra, a qual seria obscurecida pelo uso da expressão legislação judicial. Hart adverte que, do fato de decisões inteligentes (isto é, não mecânicas) levarem em conta o que o direito deveria ser, não se segue que usem necessariamente o parâmetro moral, pois a moral é apenas um dos parâmetros que uma decisão inteligente pode levar em conta; é inclusive possível que digamos que uma decisão foi acertada por ter contemplado os objetivos próprios daquela ordem jurídica, sem que concordemos que tais objetivos sejam moralmente aprováveis. Num regime tirânico, decisões penais poderiam ser tomadas de forma não mecânica, mas conectadas com o objetivo de reforçar a situação de tirania: neste caso, seriam decisões inteligentes, mas não moralmente corretas. Como Hart vê a ideia de considerar os critérios adicionais usados pelos juízes para decidir casos de penumbra como parte do próprio direito não como uma tese, a ser confirmada ou refutada, mas como um convite, a ser aceito ou recusado, fornece duas razões para recusá-lo: a primeira, de simplicidade explicativa, é que podemos explicar as decisões inteligentes de modo menos misterioso assumindo que o direito é incompleto e que, em casos da zona de penumbra, é preciso legislar de maneira inteligente, segundo objetivos sociais; a segunda, de clareza conceitual, é que é preciso mostrar que existem casos claros em que os juízes estão claramente vinculados pelo núcleo duro de sentido das regras, distinguindo-os do que ocorre nos casos de fronteira (sob pena de que, inclusive, perca sentido a ideia de as regras controlarem as decisões dos tribunais).

[Seção IV] Nesta quarta seção, Hart aborda o apelo passional para remover a distinção entre direito e moral feito pelos que, tendo vivenciado regimes perversos, supõem que considerar que leis patentemente imorais não são leis seja o modo certo de resistir a estas leis e de justificar a punição posterior dos que, durante o regime perverso, agiram sob sua proteção. Hart leva em conta sobretudo o caso de Radbruch. Contra a tese de que aquele seja o modo certo de resistir a leis perversas, Hart defende que é ingênuo supor que crenças sobre a natureza do direito sejam decisivas para a atitude dos povos sob regimes perversos e que a constatação descritiva de que uma lei é juridicamente válida não precisa ser a resposta final para a questão normativa de se se deve, no fim das contas, obedecê-la (não há contradição em que uma lei seja juridicamente válida mas imoral demais para ser obedecida). Já contra a tese de que aquele seja o modo certo de justificar a punição posterior dos que, durante o regime perverso, agiram sob sua proteção, Hart lança a acusação de que seria um atentado contra a franqueza e a simplicidade que doutrinas morais devem ter, isto é, por um lado, uma tentativa de escamotear o dilema moral que realmente temos nas mãos (perversidade versus não retroatividade) e, por outro lado, o recurso a uma doutrina moral obscura e questionável (de que leis perversas não são leis de verdade) quando outra mais simples e direta estaria disponível, a saber, a de que certas leis que são direito são, contudo, perversas demais para serem obedecidas (que é o que defenderiam os utilitaristas).

[Seção V] Nesta quinta seção, Hart examina a tese de que a conexão necessária entre direito e moral, ainda que fosse uma tese falsa quanto a cada norma considerada individualmente, fosse uma tese verdadeira quanto ao sistema jurídico considerado como um todo (como seria o caso com a conexão entre direito e sanção e entre validade e eficácia). Afinal, os fatos mostrariam que sistemas jurídicos que não satisfazem necessidades básicas dos seres humanos e não respeitam um mínimo de justiça procedimental não cumprem com sua função básica e não têm motivos para serem obedecidos além do medo. Hart admite este fato, mas rejeita a ideia de que isto torne a conexão entre direito e moral necessária e de que autorize qualquer defesa do direito natural. A conexão entre direito e moral, se fundada em fatos da natureza humana, é contingente, não necessária, porque sujeita a mudar se os fatos em que se funda mudarem também. Além disto, tal conexão tem limite modesto. Pode-se dizer que, no que se refere ao mínimo necessário para a sobrevivência dos seres humanos, os sistemas jurídicos têm um compromisso indeclinável, porém, em relação a objetivos para além deste mínimo, sobre os quais os homens têm menos acordo, o argumento naturalista já não prospera. Quanto ao mínimo de justiça procedimental, implícito no próprio fato de que, sendo um sistema de regras, o direito deve ser aplicado tratando casos iguais como iguais (justiça da aplicação do direito, não do direito), isto seria admitido pelos positivistas, mas não ameaçaria a separação entre direito e moral, pois tais critérios de justiça procedimental mínima podem ser respeitados mesmo por regimes profundamente perversos ou desiguais.

[Seção VI] Nesta sexta e última seção, Hart examina um dos motivos de resistência à tese da separação, a saber, a crença equivocada de que esta tese se baseia numa distinção entre proposições sobre o que é (que seriam cognoscíveis e objetivas) e proposições sobre o que deve ser (que seriam incognoscíveis e subjetivas). Ou seja, a ideia de que o fundamento da tese da separação é algum tipo de não-cognitivismo moral. Depois de descrever formas de sustentação e de refutação à tese do não-cognitivismo moral correntes em seu tempo, Hart explica que, ainda que aceitássemos o cognitivismo moral (que proposições morais são passíveis de conhecimento e demonstração), isto não faria qualquer diferença para a tese da separação entre direito e moral, a não ser, talvez, tornar passível de demonstração a acusação moral contra leis iníquas, sem que elas deixassem de ser, contudo, juridicamente válidas por causa disto.

Em seguida, passa a considerar o argumento de Fuller, segundo o qual, quando as leis são aplicadas a casos além dos que os legisladores tinham em mente ao produzi-las, tal aplicação segue um propósito que não se atribui aos legisladores, mas à própria regra, como o que lhe dava sentido desde o princípio. Neste caso, a ideia positivista da legislação judicial não daria conta deste fato, porque os juízes não têm nas mãos o tipo de liberdade criativa que têm os legisladores, já que devem seguir uma linha de propósito que já está implícita no direito existente. Hart distingue três pontos: o primeiro é de que, ao interpretarmos o que as pessoas dizem, levamos em conta objetivos humanos comuns supostos; o segundo, que, confrontado com um caso problemático, o falante descreva o propósito que agora aparece como relevante como sendo parte do que ele tinha querido dizer desde o princípio; o terceiro, que, quando se usa um propósito deste tipo para decidir o caso problemático, se tenha a impressão de que seria falso dizer que se trata de propósito atribuído por decisão, parecendo ser, ao invés, uma descoberta do que já estava implícito no que tinha sido dito desde o princípio. Hart admite a plausibilidade dos três pontos, mas nega que eles prejudiquem a tese da separação, fazendo dois alertas a este respeito: um de que, como ele disse na seção III, dizer que uma lei deveria abarcar certo caso não implica que tal “deveria” tem necessariamente sentido moral; outro de que querer estender a rara experiência de só conseguir relacionar uma lei com um fim possível para todos os casos de aplicação duvidosa da lei seria tentar encobrir o fato de que os juristas têm que lidar com fins concorrentes e escolher em condições de incerteza. Sendo assim, mesmo para os casos ilustrados por Fuller, seria mais prudente e honesto manter intacta a tese da separação entre o direito e a moral tal como tinha sido proposta originalmente pelos utilitaristas.

Comentários

Carol disse…
André, muito obrigada! Estou estudando o texto e nas últimas sessões fiquei meio empacada. Seu resumo me ajudou muito!
Abs.,
Eu que agradeço pela sua visita e o seu comentário. Tenho um áudio gravado da aula que dei sobre este texto. Talvez ainda venha a postá-lo por aqui em forma de vídeo. Abraços!
... disse…
Parabéns muito bem explicado o texto, também estou estudando o texto em metodologia e seu resumo me ajudou a entender melhor!
Anônimo disse…
Bom dia,
sou aluna do curso de Direito e estou com um seminário pra fazer sobre " A crítica do positivismo tradicional por L.A.HART" e o texto é muito complexo você poderia me da algumas dicas?
Obg: Julia

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