Aula Gravada: "O Conceito de Direito" (2): Cap. III

Dando sequência às aulas gravadas sobre "O Conceito de Direito", de HLA Hart, desta vez me dedico ao capítulo III, "A Diversidade das Leis". Há bastante ênfase nos argumentos de Hart, seu sentido, suas forças e fraquezas. Espero que gostem. Abaixo o vídeo e, em seguida, o resumo que uso como base durante a explicação.


Resumo de CL, Cap. III

Cap. III – A Diversidade das Leis

Abrindo o capítulo, Hart lista objeções que surgem da comparação entre o modelo simples das ordens com base em ameaças e as diversas leis de um sistema jurídico desenvolvido. Neste caso, parecem desafiar o modelo simples: a) leis que conferem direitos a particulares ou poderes a funcionários; b) costumes não impostos por legislação; c) leis que se aplicam também a seus autores; e d) leis que não expressam a vontade de seus autores. Hart não nega que seja possível transformar o modelo simples de modo que acomode todos estes casos, mas ressalta que tais transformações tornam o modelo ao final quase irreconhecível. Hart organiza aquelas objeções em três grupos, a saber, as relativas ao conteúdo das leis, as relativas ao seu campo de aplicação e as relativas ao seus modos de origem, dizendo que as abordará neste capítulo, deixando para o seguinte a problematização do esquema soberano-súdito mediante hábito de obediência.

No item “O conteúdo das Leis”, Hart primeiro aponta regras que conferem direitos e poderes e regulam atos e procedimentos, que desafiam o modelo simples, e depois examina e critica os argumentos com que os juristas tentaram acomodá-las àquele modelo.

Hart começa concedendo ao modelo simples uma analogia razoável (embora não completa) com dois ramos do direito: o direito criminal e o direito de responsabilidade civil, pois em ambos certas condutas são definidas como proibidas (similar aos comandos) e violações são respondidas com sanções com vista a desestimular tais violações (similar às ameaças). Mas Hart aponta em seguida que a analogia falha redondamente para outros tipos de leis, como é o caso das que regulam contratos, testamentos ou casamentos, que, em vez de mandarem fazer ou deixar de fazer certa coisa, atribuem aos indivíduos poder de celebrar tais atos jurídicos e, aos que de fato os queiram celebrar, indicam o modo válido de fazê-lo. Este é um aspecto do direito pelo menos tão importante quanto o direito criminal e negligenciado pelo modelo simples. Indício importante é o uso do conceito de nulidade em vez do conceito de punição: se se celebra um contrato, testamento ou casamento de modo diverso do previsto pela lei, não se comete violação que torna a conduta passível de punição, e sim desconformidade que torna o ato passível de nulidade. Tais regras que regulam a celebração de tais atos podem ser divididas em três grupos: a) regras sobre a capacidade dos agentes; b) regras sobre a forma adequada de celebração; e c) regras sobre os limites dos direitos e obrigações criadas por meio dos atos.

De natureza semelhante (e acarretando os mesmos problemas para o modelo simples) são as regras que conferem poderes a funcionários em qualquer dos três poderes do Estado. Hart lista diversas regras de leis e regulamentos sobre tribunais que definem a competência dos juízes, a nomeação de cargos, o comportamento judicial correto, o procedimento a ser observado no tribunal etc. Afirma que tais leis, por um lado, não fixam coisas que os juízes devem fazer ou deixar de fazer, quer queiram, quer não e, por outro lado, não poderiam ser vistas como partes de uma lei maior que visasse impedir que os juízes exercessem sua função sem excederem seus poderes, porque a preocupação de tais regras “não consiste em impedir aos juízes a prática de atos impróprios, mas em definir as condições e limites em que as decisões do tribunal serão válidas”. Hart ilustra sua tese com uma regra relativa à competência do tribunal de condado para ações de recuperação de imóveis rurais cujo valor não exceda cem libras, sublinhando que, se um juiz do tribunal do condado julgar uma ação de recuperação de imóvel rural de valor superior a cem libras, a consequência não será, como no direito criminal, uma punição à violação, nem será, como no direito contratual, a nulidade do ato, mas será que a decisão em questão, que contém um vício (excesso de jurisdição), será passível de anulação por um tribunal superior, mas valerá enquanto tal declaração de nulidade não for proferida, fenômeno que Hart atribui ao interesse “óbvio” (que não esclarece qual é) da ordem jurídica de que uma decisão judicial valha até que seja cassada por um tribunal superior. O interesse de Hart é, contudo, não o de introduzir outra categoria de consequência para a desconformidade com este tipo de lei, e sim acentuar a semelhança entre esta consequência (anulabilidade por decisão de tribunal superior da decisão judicial que excedeu sua jurisdição) e a outra (nulidade desde a origem do contrato celebrado inadequadamente), atribuindo ao referido “interesse da ordem jurídica” a nota de diferença entre as duas.

Examina em seguida as leis que atribuem competência a uma autoridade legislativa subordinada como regras que também não podem, “sem distorção”, ser assimilada a uma ordem geral. Compara tais regras com as que fixam os movimentos possíveis no xadrez, pois são “operativas”: obedecidas, tornam o movimento válido; desobedecidas, o tornam inválido. Algumas dessas leis especificam o objeto em relação ao qual o poder legislativo pode ser exercido, outras, as qualificações ou a identidade dos membros do poder legislativo, outras ainda, o modo de legislação e o procedimento a ser seguido etc. Da sua desobediência derivam consequências diversas, mas em muitas deles os atos praticados se tonam nulos ou passíveis de cassação por tribunal superior (tornando-as, assim, análogas às leis sobre contratos e sobre competência jurisdicional). De qualquer modo, a terminologia própria do direito criminal (violação, punição) estaria aqui fora de lugar. Afirma que uma taxonomia completa da diversidade das regras de um sistema jurídico desenvolvido, liberta do preconceito de que todas devem ser redutíveis a um modelo único simples, ainda está por ser feita, sendo as distinções que ele introduziu apenas um passo inicial neste sentido (uma taxonomia mais detalhada talvez revelasse outras diferenças além das já indicadas), mas suficiente para problematizar a relação de várias regras importantes do sistema jurídico com o modelo simples de ordens baseadas em ameaças. Contudo, segundo Hart, sendo forte a “tentação de uniformidade” na teoria do direito, os juristas criaram dois argumentos para acomodar as regras que conferem direitos e poderes e regulam atos e procedimentos ao modelo simples: o argumento da nulidade como sanção e o argumento de que são regras incompletas, constitutivas de (e preparatórias para) regras imperativas. Examina e critica os dois argumentos nos três subitens a seguir.

No subitem “A nulidade como sanção”, Hart examina e critica o seguinte argumento: a nulidade de que ficam passíveis os atos desconformes às leis acima referidas é uma sanção, porque é um mal imposto aos desobedientes, que frustra suas expectativas e seus objetivos. Hart primeiro levanta as críticas “banais” (porque respondíveis com “algum engenho”) de que os envolvidos podem não ter particular interesse na validade dos atos que praticam e podem não considerar a nulidade como um mal. Depois levanta o que considera a objeção principal: o “absurdo” está em assimilar a ideia de celebração legítima com a de conduta desejada e a ideia de não reconhecimento jurídico como a de medida de desencorajamento. Outra forma de dizê-lo (que Hart trata como idêntica à objeção anterior) é que, no caso das regras criminais, a existência das mesmas regras, privadas das sanções, seria “inteligível” (ainda que não como regras jurídicas), ao passo que, no caso do direito contratual, a existência das mesmas regras, privadas das nulidades, não o seria (nem mesmo como regras não jurídicas). A nulidade seria parte indispensável destas regras, de um modo que a sanção não é daquelas. Hart diz que neste argumento os juristas recorrem a uma ampliação do conceito de sanção para fins de inclusão das regras não imperativas, ao passo que, no outro argumento, recorrem a uma restrição do conceito de lei para fins de exclusão destas regras.

No subitem “As regras que conferem poderes como fragmentos de Leis”, Hart examina e critica o seguinte outro argumento: regras jurídicas são regras dirigidas a funcionários, que mandam que apliquem sanções caso certas circunstâncias se verifiquem (Hart usa Kelsen como paradigma da “forma extrema” deste argumento). Assim, todas as leis, inclusive as que conferem direitos e poderes e regulam atos e procedimentos, podem ser vistas como fixando condições em vista das quais funcionários estejam autorizados a aplicarem sanções. A celebração adequada seria condição da validade do contrato, que seria condição para a aplicação de sanções ao contratante inadimplente; o respeito à competência legislativa seria condição para a validade da lei que fixa a regra e o respeito à competência jurisdicional seria condição para a validade da sentença que sanciona aquele que desobedeceu tal regra. Tornam tais regras “cláusulas condicionantes”, e não regras completas. Hart chama atenção primeiro para o papel que a sanção passa a desempenhar neste modelo transformado: em vez de encorajar obediência ao comando, passa a ser objeto do comando, porque este passa a ser sobre em que circunstâncias aplicar a sanção. O comando, por sua vez, pode ser ou não baseado em ameaças (neste caso, ameaças ao funcionário que não aplicar a sanção nas circunstâncias assinaladas ou que a aplicar fora destas circunstâncias). Depois, distingue duas variedades do modelo transformado: a menos extrema, em que regras imperativas são regras jurídicas completas, que prescindem de reformulação e são comandos dirigidos aos cidadãos para se conduzirem de certa forma (mantendo seu sentido mais “intuitivo”), mas regras não imperativas devem ser reformuladas como comandos dirigidos a funcionários com vista à aplicação de sanções; e a forma mais extrema, em que todas as regras devem ser reformuladas para comandos dirigidos a funcionários com vista à aplicação de sanções. Num comentário que não desenvolve por ora, aponta em ambas as versões do modelo a seguinte fraqueza: consideram que as diversas regras são redutíveis a um modelo único, consideram a sanção como central e indispensável e falharão se for demonstrado que uma regra jurídica carente de sanção é perfeitamente concebível. Por fim, mostra como pretende refutar o modelo: mostrando que compra a uniformidade ao preço da distorção.

No subitem “A distorção como preço da uniformidade”, Hart usa quatro variantes do argumento da distorção. Na primeira, considera o tipo de técnica de controle social que o direito criminal representa, em que se informa aos indivíduos o que devem ou não fazer e a que sanções estão sujeitos; na medida em que distorce este fato considerando as regras como dirigidas aos funcionários para aplicação de sanções, a versão extrema do modelo acima explicado obscurece um aspecto importante do direito. Na segunda, considera o ponto de vista a ser levado em conta ao determinar a natureza das regras jurídicas; ao dar primazia ao ponto de vista do homem mau ou dos tribunais, ambas as versões do modelo deixam de lado o também importante ponto de vista do homem ignorante ou confuso e dos que são investidos dos direitos e poderes que aquelas regras atribuem. Na terceira, usa a relação primário-secundário (aqui em sentido quantitativo-teleológico) para mostrar que o modelo opera uma inversão: as regras de direito que são primárias são aquelas que informam aos indivíduos como se conduzir, enquanto as regras que informam aos funcionários como tratar os desobedientes são secundárias e auxiliares. Finalmente, na quarta, usa a relação primário-secundário (agora em sentido hierárquico-funcional) para mostrar que, ao assimilar as regras de legislação e jurisdição às regras de dever, o modelo deixa de captar uma diferença importante que resulta da introdução daquelas regras, fato que representou o passo de transição do mundo pré-jurídico para o jurídico.

No item “O âmbito de aplicação”, Hart ataca o modelo simples na sua incapacidade de dar conta das regras que se aplicam inclusive aos seus autores (problema que se apresenta mesmo quando aplicado às regras criminais). Faz isso de duas formas. Da primeira forma, mostra que comandos são essencialmente voltados para outros, enquanto regras jurídicas, embora possam ser voltadas apenas para outros, não o são essencialmente, de modo que, tendo em vista isto, não são comandos. Da segunda forma, ataca um possível contra-argumento que consistiria em reelaborar o modelo dos comandos distinguindo, na pessoa de seu autor, dois aspectos: um público, que manda como soberano, e um privado, que obedece enquanto súdito. Hart afasta este contra-argumento com duas objeções. Uma que diz que a distinção entre público e privado pressupõe as regras atribuidoras de direitos das quais já teria provado que o modelo simples não dá conta. E outra que diz que aquela distinção entre aspectos da mesma pessoa é uma complicação desnecessária, uma vez que se pode explicar de modo mais direto a autorreferência em regras jurídicas, de forma análoga às promessas, como produto do exercício por certas pessoas de poderes a elas concedidos por regras prévias, que determinam os possíveis âmbitos de aplicação, fixando várias vezes que o próprio autor deve cair dentro do âmbito de aplicação da regra que cria. Distingue regras e promessas apontando o elemento da bilateralidade, ausente das regras, mas considera que o modelo em que regras são criadas de modo análogo a promessas, isto é, seguindo regras prévias, é instrutivo para entender a autorreferência legislativa.

No item “Os modos de origem”, Hart aborda duas objeções conexas, relativas a casos em que as regras não correspondem a expressões de vontade: os costumes e as leis aprovadas sem claro conhecimento ou vontade de seus autores quanto a seu conteúdo. No caso dos costumes, acomodá-los ao modelo simples exige adotar o argumento de que o que os subordinados do soberano estão autorizados a decidir funciona também como ordem do soberano. Neste caso, o costume só se converteria em jurídico após um tribunal declará-lo como tal e, de forma indireta, ele ser objeto de uma ordem do soberano. Hart aponta contra este argumento três objeções: A de que não é verdade que o costume não seja jurídico antes de ser declarado tal por um tribunal (tal tese seria ou pura dogmática ou petição de princípio); e a de que não é verdade que o que os subordinados decidem é querido por seu superior (a não ser distorcendo bastante o conteúdo original do modelo simples).

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