Kelsen sobre Personalidade Jurídica
A certa
altura da “Teoria Pura do Direito” (IV, 7, principalmente "b"), Kelsen faz três afirmações surpreendentes
sobre o conceito de personalidade jurídica:
a) que ela
não é um conceito distinto do de direitos e obrigações, mas apenas uma ficção
conceitual, um suporte ou cabide em que direitos e obrigações são postos ou
pendurados, um fictício “portador” que nada seria sem as coisas que carrega
consigo;
b) que não
existe pessoa natural, no sentido de um ser no mundo a que o direito teria
necessariamente que atribuir o status de pessoa, sendo este status, no caso,
antes um reconhecimento do que uma constituição; toda pessoa em direito é jurídica,
constituída como tal pelo direito, nenhuma tem este status antes que o direito
lhe atribua, e o direito poderia atribuir ou deixar de atribuir este status a
quaisquer seres que assim quisesse;
c) que o
status de pessoa ser atribuído a algo ou alguém não implica que este algo ou
alguém pode reclamar ter direitos que a ordem jurídica não lhe atribuiu (dizendo
que, sendo pessoa, deveria tê-los) ou deixar de ter obrigações que a ordem
jurídica lhe atribuiu (dizendo que, sendo pessoa, não deveria tê-las); sendo
seu status de pessoa (como vimos em “b”) não preexistente, mas constituído pelo
direito e sendo tal status (como vimos em “a”), não a razão pela qual tem
direitos e obrigações, mas antes o resultado de tê-los, apoiar-se no status de
pessoa para fazer reivindicações sobre direitos e obrigações é um contrassenso.
Esta tese, porém,
precisa ser entendida levando em conta as seguintes advertências.
- Em
primeiro lugar, Kelsen está se referindo ao conceito jurídico, e não ao
conceito moral, de pessoa. Desta forma, mesmo que você acredite que existem
boas razões para atribuir a todos os indivíduos o status de pessoa moral,
atribuir ou deixar de atribuir aos mesmos indivíduos o status de pessoa
jurídica seria uma decisão do direito positivo. Se você tentar acusar Kelsen de
confundir pessoa moral e pessoa jurídica, é você, e não ele, que está caindo
neste equívoco. Se estiver querendo dizer que o conceito de pessoa jurídica tem
que estar necessariamente atrelado ao de pessoa moral, é você, e não ele, que
tem o ônus da prova aqui. Dado que há ordens jurídicas em que nem todos os
indivíduos são considerados pessoas e em que coisas inanimadas são consideradas
pessoas, os exemplos empíricos parecem estar a favor de Kelsen. Mas, mesmo que
estivessem em seu favor, seria apenas uma argumentação empírica, incapaz de
mostrar que o vínculo entre pessoa jurídica e pessoa moral é conceitualmente
necessário. No nível estritamente conceitual, parece mesmo impossível provar
que tal vínculo é necessário.
- Em
segundo lugar, Kelsen não está dizendo que uma ordem jurídica que atribuísse o
status de pessoas jurídicas a objetos, animais e prédios ou que não o atribuísse
a indivíduo algum poderia ser empiricamente encontrada ou seria empiricamente sustentável.
Mais uma vez: O argumento de Kelsen é antes conceitual que empírico. Mesmo que
fosse verdade que ordens jurídicas que tentassem impor aqueles exóticos regimes
de distribuição da personalidade jurídica estivessem todas condenadas ao
fracasso, o fracasso de uma ordem jurídica não é uma questão conceitual, mas
empírica. Tal fracasso provaria não que existe uma conexão conceitual necessária
entre pessoa jurídica e pessoa moral, e sim que ordens jurídicas que deixam de
contemplar esta conexão conceitualmente não necessária não alcançam, por razões
inteiramente empíricas, condições básicas de sustentação. Além disso, para
fracassar, uma ordem daquele tipo precisa existir, isto é, é preciso que seja
possível a existência de uma ordem jurídica que desconectasse pessoa jurídica
de pessoa moral, o que por si só já seria uma prova que entre ambos a conexão
não é necessária. Se a conexão fosse de fato necessária, então, uma ordem
jurídica que desconectasse pessoa jurídica de pessoa moral não seria condenada
ao fracasso, mas sim impossível. Se um crítico usar o argumento da condenação
ao fracasso, já estará implicitamente admitindo que a conexão entre as duas
coisas não é necessária.
- Em terceiro
lugar, sendo o conceito de pessoa aqui discutido o jurídico, e não o moral, ele
não vem acompanhado de reivindicação nenhuma. Noutras palavras, uma vez que é o
direito que atribui a um ser o status de pessoa quando lhe atribui direitos e
obrigações, não faz sentido supor que haja certos direitos que toda pessoa
deveria ter ou certas obrigações que nenhuma pessoa deveria ter. O motivo para
atribuir a algo ou alguém direitos e obrigações é uma decisão legislativa, e
não o status de pessoa que este algo ou alguém previamente já carregasse; pelo
contrário, este algo só se torna uma pessoa jurídica a partir do momento em que
lhe são atribuídos direitos e obrigações (pois, como vimos, uma pessoa sem
direitos e obrigações seria um simples vazio conceitual), sendo, então, o
status de pessoa antes o resultado que o motivo daquela atribuição. Se um
indivíduo fosse privado, por exemplo, de sua liberdade de expressão, não faria
sentido que ele dissesse que não pode ser privado deste direito por ser uma
pessoa jurídica, uma vez que ser uma pessoa jurídica não implica nenhuma
reivindicação. (Faria sentido dizer que tal indivíduo não deveria ser privado
de seu direito por ser uma pessoa moral, mas, para tanto, seria preciso mostrar
que ser uma pessoa moral tem alguma implicação para o direito positivo, o que,
segundo Kelsen, exigiria mostrar que existe entre pessoa jurídica e pessoa
moral algum vínculo conceitual necessário, coisa que, como já vimos, é mais
difícil do que parece.)
-
Finalmente, em quarto lugar, é claro que um crítico poderia alegar que em
várias ordens jurídicas modernas todos os indivíduos devem ser tratados como
pessoas e alguns direitos (como os direitos fundamentais) se aplicam
automaticamente a quem quer que seja reconhecido com o status de pessoa. Sendo
assim, o crítico poderia sustentar que, nestas ordens jurídicas, ser uma pessoa
moral implica ser uma pessoa jurídica (mesmo que o contrário não se aplique) e
que ser uma pessoa jurídica implica ter certos direitos e não ter certas
obrigações. Kelsen não negaria nada disso. Mas ele forçaria o crítico a reconhecer
que, nestas ordens jurídicas, as coisas só são assim porque certas normas fazem
com que seja, isto é, que não existe algo no próprio conceito de pessoa
jurídica que a conecte à pessoa moral e não existe algo no próprio conceito de
pessoa jurídica que a conecte com direitos e obrigações específicos. Tanto não
há que é preciso uma norma que faça tal conexão. Fosse conceitualmente necessária,
a conexão produzida pela norma seria redundante. Sendo assim, haver normas que
conectam a pessoa jurídica à pessoa moral e a certos direitos e
obrigações é antes uma prova em favor do argumento de Kelsen, e não em
contrário. Apenas ordens jurídicas que já admitiram que a conexão do conceito
de pessoa jurídica com o de pessoa moral e com certos direitos e obrigações não
é necessária se dariam ao trabalho de produzir normas que suprissem
normativamente a falta de conexão dos conceitos.
Mesmo no
caso destas ordens jurídicas que produzem normativamente a conexão que não
existe conceitualmente entre pessoa jurídica e pessoa moral, este fato teria
que ser entendido com certas reservas. Não significa, automaticamente, que
estas ordens jurídicas tenham contemplado a pessoa moral em sua inteireza, isto
é, que tenham dado validade jurídica a qualquer reivindicação que a pessoa
moral estivesse autorizada a fazer. O que ocorre é que o mesmo portador da
personalidade moral (isto é, o indivíduo) se torna nestas ordens jurídicas
também o portador da personalidade jurídica. Disto não se segue que ambas as
personalidades tenham a mesma extensão. Uma ordem jurídica ditatorial poderia
reconhecer a todos os indivíduos o status de pessoa jurídica e, no entanto,
restringir para tais indivíduos diversos direitos que eles teriam como pessoas
morais, bem como impor-lhe diversas obrigações de que estariam moralmente
dispensados. Além disso, mesmo em ordens jurídicas liberais e democráticas, faz
sentido dizer que uma pessoa moral tem o direito de que lhe digam sempre a
verdade e de que nunca cometam adultério contra ela, mas a pessoa jurídica não
o tem, ou de que a pessoa moral não tem a obrigação de votar ou de ser soldado
na guerra, mas a pessoa jurídica a tem. Isto quer dizer que, mesmo que uma
ordem jurídica reconheça todo portador de personalidade moral como sendo também
portador de personalidade jurídica, a personalidade moral continua não sendo a
base com que reivindicar os direitos e obrigações que a personalidade jurídica
pode ou deve ter. É preciso, mesmo nestas ordens jurídicas, que existam normas
de direito positivo dizendo quais direitos e obrigações todas as pessoas
jurídicas devem ter: é com base nestas normas, e não no próprio status de
pessoa jurídica, que em seguida as reivindicações serão feitas.
Digamos que
esta contra-argumentação tenha convencido você de que Kelsen tem razão: não
existe mesmo conexão conceitual necessária entre pessoa jurídica e pessoa moral
e toda conexão neste sentido só pode ser normativa, criada pelas normas de
certa ordem jurídica particular. Qual seria a consequência disso? Do ponto de
vista da filosofia do direito, seria um argumento importante em favor da tese
da separação (ou da conexão não necessária) entre direito e moral. Invocar o
status de pessoa como base ou como limite do que o direito deve ou pode fazer
com seus destinatários é uma estratégia que está explícita ou
implicitamente contida em boa parte (mas não em todos) dos argumentos do
jusnaturalismo e do interpretativismo. Na guerra de trincheiras entre
juspositivismo e jusnaturalismo, seria a conquista de um entreposto importante
para a primeira abordagem.
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