Sobre o naturalismo em ética e política
Okay, vamos
discutir a questão do naturalismo em ética e política com um pouco mais de
cuidado. Vamos distinguir, primeiro, entre uma versão forte e uma pretensão
fraca do naturalismo ético-político. A pretensão forte é a do
sujeito que diz: “Agora que já sabemos bastante sobre o indivíduo e a sociedade
de um ponto de vista natural (via abordagens evolucionistas), podemos resolver
os problemas mais dramáticos e recorrentes da ética e da política, vendo para
qual lado da controvérsia as descobertas apontam em cada caso”. A pretensão deste
sujeito é fundacionista: Existe uma classe C1 de enunciados
duvidosos, a saber, os da ética e da política, e uma classe C2 de
enunciados não duvidosos, ou menos duvidosos, a saber, os do saber naturalista,
e o modo epistemicamente adequado de solucionar uma controvérsia entre
enunciados de C1 ou mesmo de fundamentar um enunciado de C1 é
recorrer a enunciados de C2 como razões para crer em enunciados de C1.
Para o
defensor desta visão, a partir do momento em que assumimos que valores,
preferências, normas, instituições, bem-estar, sentimentos etc. não são
entidades diversas dos fatos empíricos, mas apenas tipos particulares de fatos
empíricos, toda a autonomia que a ética e a política historicamente
reivindicaram na modernidade (especialmente de Hume e Kant em diante) cai por
terra, porque não apenas as questões éticas e políticas passam a estar
acessíveis ao método experimental como os fatos do mundo natural, descobertos e
comprovados como tais pelo saber naturalista, têm consequências diretas para o
tipo de saber ético e político que é empiricamente sustentável defender. Questões
como se o aborto é certo ou errado, se o socialismo é possível e, se for, se é
superior ao capitalismo, se um governo pelo povo é possível e, se for, se é
desejável, se a educação e a saúde devem ser públicas ou privadas etc. seriam
todas questões sobre fatos no mundo, e algum nível de saber factual, seja o que
temos agora, seja o que teremos com mais algumas décadas de pesquisa, será
capaz de responder a elas de modo definitivo – ou o mais próximo de definitivo
que a ciência puder oferecer; de qualquer modo, bem mais definitivo do que as
respostas até então tinham sido capaz de ser.
Esta é a
versão mais problemática do naturalismo ético-político, que rejeito mais veementemente
e para a qual se aplicam praticamente todas as mesmas críticas que se dirigiram
ao positivismo nas ciências humanas e sociais desde o Séc. XIX. Ela supõe que o
dualismo metodológico que separa o cultural do natural e o normativo do
empírico teria que estar fundado num correspondente dualismo metafísico em que
a cultura fosse considera um reino metaempírico. Isto é falso. Mas não vamos
nos ocupar muito tempo desta variante, vamos logo tratar da pretensão
naturalista mais fraca, que tem maior apelo teórico.
Nesta outra
abordagem do tema, o que se supõe não é que o saber natural é superior ao saber
ético e político e por isso deveria ser a base em que fundar este último, e sim
que todo saber ético e político envolve inevitavelmente pressupostos empíricos,
isto é, certos enunciados sobre características, potenciais, necessidades,
limites, tendências, aspirações etc. do indivíduo e da sociedade, e que algum
tipo de acordo entre e os do saber naturalista é desejável. Torna-se empiricamente
insustentável qualquer teoria normativa sobre os assuntos humanos que se apoie
em crenças sobre o indivíduo e a sociedade que são, em última instância,
falsas, ou pelo menos francamente distintas e até opostas ao que o saber naturalista
tem descortinado sobre a existência humana.
Mas não foi
à toa que usei a expressão “algum tipo de acordo” para caracterizar a relação
que esta versão fraca do naturalismo ético-político exige que exista entre os
pressupostos empíricos das teorias éticas e políticas e os enunciados do saber
naturalista: É que existem duas submodalidades como esta exigência pode se
manifestar. Uma é a exigência lógico-sistemática de um saber total unitário e
coerente. Nesta submodalidade, seria empiricamente inadequado sustentar teorias
que recorrem a pressupostos empíricos não coerentes com o saber naturalista
atualmente disponível. Eu pessoalmente considero esta submodalidade
desinteressante, porque muito apoiada numa concepção de totalidade doo saber
como sistema e, por isso, suscetível à toda a crítica da metafísica da
totalidade que se encontra desde os críticos de Hegel até os críticos do
Círculo de Viena.
A outra
submodalidade do naturalismo ético-político fraco, no entanto, é mais
interessante. Ela diz que toda teoria que se apoie, mesmo que apenas
indiretamente, em pressupostos empíricos deve, em contrapartida, ser
empiricamente responsável. Ser empiricamente responsável implica não em
incorporar, mas em dialogar com o saber empírico disponível, e isso, no caso do
saber sobre o indivíduo e a sociedade, inclui o saber naturalista. A meu ver, o
chamado à responsabilidade empírica é irrefutável, mas torna o papel do saber
naturalista bastante mais modesto. Sem dúvida, um autor que, como Habermas, diz
que a socialização se dá por meio da linguagem, ou um autor que, como Honneth,
diz que a constituição da identidade depende do reconhecimento intersubjetivo,
ou ainda um autor que, como Rawls, diz que a liberdade é uma das bases sociais
do autorrespeito, precisam prestar contas se, por acaso, o saber naturalista estiver fazendo descobertas que vão no sentido precisamente inverso
a estas afirmações. Mas este “prestar contas” pode assumir as mais diversas
formas, uma das quais sendo apoiar-se no dualismo metodológico e mostrar por
que suas afirmações não são comprováveis por meio do método experimental,
dizendo, por exemplo, que este método está comprometido com um objetivismo que
privilegia a perspectiva do observador e a mensuração quantitativa etc. Ou
seja, do fato de ter responsabilidade empírica implicar dialogar com o saber
naturalista, não resulta que este diálogo precise produzir algum tipo de
convergência: Uma divergência justificada com relação ao saber naturalista já
seria suficiente para ser empiricamente responsável.
Daí que,
para mim, a versão mais interessante do naturalismo ético-político, que é esta
última, da responsabilidade empírica, seja ao mesmo tempo a que dá menor
centralidade ao saber naturalista, tornando-o, no máximo, um interlocutor
necessário, mas não uma instância privilegiada de conhecimento.
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