Sobre o naturalismo em ética e política, Parte II – Uma resposta ao amigo Valdenor Júnior

Há alguns dias publiquei uma postagem chamada “Sobre o naturalismo em ética e política”, em que expunha sobre uma pretensão forte e uma pretensão fraca do naturalismo nos campos da filosofia prática. A pretensão forte seria resolver problemas éticos e políticos a partir do saber naturalista e do método experimental. Em relação a esta, disse que estava exposta às críticas às pretensões do positivismo nas ciências humanas e sociais desde o Séc. XIX. A pretensão fraca seria exigir do saber ético e político que entre em acordo com o saber naturalista todas as vezes que recorrer a hipóteses empíricas sobre o indivíduo e a sociedade. Ali eu disse que esta última pretensão podia ainda assumir duas formas: a de exigência de coerência de um saber totalizante unitário ou de exigência de responsabilidade empírica do saber filosófico. E disse ainda que, na primeira forma, a pretensão naturalista estava exposta às críticas ao saber totalizante unitário que se fez na linha continental desde a crítica a Hegel e na linha analítica desde as críticas ao Círculo de Viena, enquanto, na segunda forma, era aceitável, mas não garantia automaticamente um papel importante para o saber naturalista, porque o saber ético e político, se justificasse sua divergência em relação ao saber naturalista, já teria “prestado contas” do desacordo, o que já seria ter responsabilidade empírica.

O amigo Valdenor Júnior, que administra o excelente blog sobre Darwinismo e Libertarianismo chamado Tábula (Não) Rasa& Libertarianismo Bleeding-Heart e que tem sido meu interlocutor habitual em vários assuntos, escreveu uma postagem chamada “Sobre o naturalismo em ética e política – uma resposta ao Prof. André Coelho”, em que, na condição de entusiasta do naturalismo, critica minha abordagem do assunto na postagem original. Fazer a leitura atenta da postagem do Valdenor é recomendável antes de prosseguir lendo esta, embora aqui tente fazer um breve resumo de cada argumento utilizado por ele conforme vá avançando em minha resposta. O que pretendo fazer não é provar que o naturalismo em ética e política é uma pretensão falida, e sim mostrar que os motivos pelos quais os naturalistas pensam que ela é uma pretensão legítima são menos aceitáveis do que eles pensam que são.

Minha tréplica contém três partes. A primeira examina os argumentos de Quine em "Dois Dogmas do Empirismo" e o quanto tais argumentos de fato contariam em favor das pretensões do naturalismo. A segunda mostra como todo o discurso naturalista envolve uma assimetria em favor das ciências naturais e do método experimental que chamo de tese do privilégio epistêmico; além disso, lança a acusação de que o naturalismo esteja frequentemente associado com um projeto político específico, a saber, dar verniz cientificista ao liberalismo de cada época do capitalismo. A terceira consiste numa lista de desafios, teses a serem provadas com argumentos convincentes por quem quer que queira sustentar a posição naturalista em ética e política.

1 - Sobre Quine e "Dois Dogmas"

Começo fazendo uma citação da postagem do Valdenor:
Em primeiro lugar, existem duas formas de naturalismo: metodológico e substantivo. O metodológico deriva da queda do muro que separava as questões filosóficas (verdades analíticas) das questões científicas (verdades empíricas), efetuada por Willard von Orman Quine em “Dois Dogmas do Empirismo”, de tal modo que, sendo todas as verdades suscetíveis de revisão empírica, a filosofia também se ocuparia de questões que, potencialmente, são também sujeitas à revisão empírica e, em alguns casos, de fato as questões filosóficas seriam realocadas em questões empíricas (como na epistemologia naturalizada de Quine). O substantivo relaciona-se com a ontologia usada nas nossas ciências mais bem-sucedidas, de tal forma que, grosso modo, os únicos objetos aceitos nessa ontologia seriam físicos ou redutíveis aos físicos, ou seja, uma forma de fisicalismo (obs: existem poucos naturalistas que não são fisicalistas, vide a chamada atitude ontológica natural).
Esta pequena passagem sozinha exigiria uma longa resposta examinando várias coisas. Uma das coisas que seria recomendável seria um exame pormenorizado das teses e argumentos de Quine em “Dois Dogmas do Empirismo”. Não tenho espaço nesta postagem para fazer um exame tão pormenorizado, embora, sendo um dos textos filosóficos mais importantes do Séc. XX na tradição analítica, não descarte que, no futuro, dedique uma postagem inteira a ele. No momento, tenho que me concentrar apenas em alguns aspectos. Com efeito, “Dois Dogmas” é um artigo que ataca duas coisas: a distinção entre analítico e sintético na primeira parte e um tipo de reducionismo lógico-semântico na segunda parte. A distinção entre analítico e sintético atacada na primeira parte consiste na tese de que existem certos enunciados (chamados analíticos) verdadeiros ou falsos em razão apenas do significado e outros (chamados sintéticos) verdadeiros ou falsos em razão do significado e de fatos no mundo. Já o reducionismo lógico-semântico atacado na segunda parte do artigo de Quine consiste na tese de que o significado total de uma expressão ou enunciado pode ser reduzido à soma dos significados isolados de todas as suas partes componentes. Como verão em seguida, ambas as partes do artigo tem implicações para as pretensões do naturalismo. (Embora a conexão do artigo “Dois Dogmas” com o programa naturalista posteriormente defendido por Quine deva ser feito com cautela. A pretensão de “Dois Dogmas” é atacar certo tipo de filosofia analítica que se fazia à época, e não preparar caminho para o naturalismo. “Dois Dogmas” não é uma defesa do naturalismo, e sim uma problematização de premissas não questionadas que subjaziam ao método analítico que, à época em que foi escrito, constituía o mainstream da filosofia. Essa observação não é uma crítica à referência que Valdenor fez a “Dois Dogmas” ao falar das pretensões do naturalismo, e sim uma prevenção contra certo tipo de má compreensão do que direi em seguida sobre a ligação entre “Dois Dogmas” e naturalismo.)

A primeira parte tem direta repercussão para as pretensões do naturalismo. Se houver enunciados analíticos, isto é, enunciados verdadeiros ou falsos em razão apenas do significado, então, parte do conhecimento total possível seria acessível de um ponto de vista não científico. Isto criaria espaço para um saber filosófico diverso e autônomo em relação ao saber científico. Então, se a filosofia não naturalizada, isto é, desligada do saber naturalista, tem a pretensão de conhecer alguma coisa que a ciência não pode conhecer, parece que esta pretensão depende inteiramente de que existam enunciados analíticos. Daí que o ataque de Quine à distinção entre analítico e sintético seja um dos pontos cruciais do debate sobre naturalismo. Contra a distinção entre analítico e sintético, Quine se limita a ressaltar aspectos obscuros da noção mesma de analiticidade, argumentando que enunciados analíticos estão fundados, em última instância, na ideia de sinonímia cognitiva, entendida como intercambialidade salva veritate (não tenho espaço para desenvolver em detalhe como Quine passa de analiticidade para sinonímia e de sinonímia simples para sinonímia cognitiva, mas recomendo lerem o texto original, que é claramente explicado). Noutras palavras, enunciados como “todo solteiro é não casado” dependeriam da tese da sinonímia entre sujeito e predicado, neste caso, da sinonímia entre “solteiro” e “não casado”, sinonímia esta que, postulando que “solteiro” e “não casado” são intercambiáveis em todos os contextos semânticos para fins cognitivos, estaria fundada num postulado que o filósofo analítico não pode comprovar desde o princípio com base apenas no significado, mas que precisa de consulta aos contextos de uso e de exame das implicações em cada caso de substituição para ser, aí sim, considerado aceitável. Por conseguinte, enunciados analíticos não seriam verdadeiros ou falsos a priori, com base apenas no significado, sem necessidade de qualquer consulta ou teste, mas apenas em função do êxito da sinonímia cognitiva em que se apoiam. Se é assim (e aqui está a parte da conclusão que vai para além do que está dito em “Dois Dogmas” e se vincula ao que Quine dirá depois em seu programa naturalista), então, enunciados analíticos são, em última instância, sintéticos, no sentido de que sua verdade ou falsidade estaria sujeita a um teste de uso e dependeria de um êxito de comprovação, no caso, do êxito da sinonímia cognitiva em que se apoiam em cada caso. Se é assim, a descoberta de novos fatos no mundo poderia alterar o êxito de comprovação da sinonímia cognitiva em que um enunciado analítico se apoia, fazendo passar de verdadeiro a falso, ou vice-versa. Na medida em que sua verdade ou falsidade pode ser alterada pela descoberta de fatos no mundo, tais enunciados não são verdadeiros ou falsos em razão apenas do significado. Se é assim, então, uma filosofia desligada do saber empírico seria simplesmente impossível, porque se teria provado que a analiticidade, que fundava a pretensão de autonomia do campo com que ela trabalha, depende do mesmo saber empírico de que queria desligá-la em primeiro lugar. Não haveria lugar para uma filosofia puramente analítica divorciada do saber empírico porque os enunciados "analíticos" a que ela se dedica são na verdade dependentes do saber empírico sobre o mundo.

Mas a segunda parte de “Dois Dogmas” também tem repercussão para as pretensões do naturalismo. Não tenho espaço para desenvolver todo o argumento antirreducionista de Quine, porque isso demandaria vários parágrafos (novamente remeto ao texto original). Mas enfatizo que, contrapondo-se a este reducionismo, Quine propõe um holismo de significado (a ideia de que o portador do valor de verdade é sempre um totalidade de significado), o qual, em filosofia da ciência, implica uma séria revisão da tese tradicional do verificacionismo: não seria possível testar os enunciados científicos um por um, obtendo qualquer resultado definitivo, porque o que é verdadeiro ou falso nunca é o enunciado isolado, mas a totalidade do saber científico; cada enunciado, para ser testado, é confrontado com apenas uma instância de sua hipótese e pressupõe muitos outros enunciados tomados como verdadeiros, de modo que, se for testado e “comprovado”, não se sabe se também o seria nas outras instâncias de sua hipótese, da mesma forma que, se for testado e “refutado”, não se pode saber se o que é falso é ele ou algum dos outros enunciados supostos como verdadeiros no experimento. Por isso, o que está sendo testado em cada experimento nunca é apenas o enunciado isolado, e sim a totalidade do saber científico disponível no momento. Se é assim (e aqui vai a consequência para o naturalismo que ultrapassa o que está dito em “Dois Dogmas”), então, deve haver um esforço de unidade e integração entre os vários ramos e campos do saber científico, porque apenas um saber unificado apoiado nas melhores hipóteses testadas em cada campo poderia ser um candidato apto a conhecimento científico. Do holismo de significado se passa ao holismo epistêmico de verificação, e disso se passa à pretensão de um saber totalizante unitário. Isso tem repercussão para o naturalismo em ética e politica porque estes ramos da filosofia prática, na medida em que seus objetos não podem ser puramente analíticos (primeira parte de “Dois Dogmas”), dependem de saber empírico sobre o mundo e, na medida em que apenas um corpo unificado de saber científico pode ser portador de verdade (segunda parte de “Dois Dogmas”), precisam recorrer às hipóteses mais bem estabelecidas em cada campo de saber em que suas hipóteses direta ou indiretamente se apoiem.

Assim como o artigo de Quine está entre os mais influentes do Séc. XX, está também entre os mais examinados, respondidos e criticados. Suas duas teses podem ser resumidas como segue: 1) Analiticidade depende de sinonímia, sinonímia depende de intercambialidade, e intercambialidade só pode ser comprovada dispondo de saber empírico sobre o mundo; logo, uma filosofia cujo objeto, por ser analítico, fosse autônomo e divorciado do saber empírico, é simplesmente impossível; 2) Termos dependem uns dos outros para terem significado e enunciados dependem uns dos outros para serem portadores de verdade, sendo apenas o todo, e nunca as partes, que pode ser submetido a teste e declarado verdadeiro ou falso. Por ambas as razões, precisa-se de um saber unificado que perpasse e integre todos os campos e, por ambas as razões, a filosofia não pode permanecer isolada em relação ao conhecimento científico. Ambas as teses, bem como sua conclusão, foram intensamente criticadas. Como não tenho interesse de defender nem a teoria estrita da analiticidade nem a teoria atomista da verificação, não vou entrar em detalhes sobre os pontos que os argumentos de Quine deixam de provar. Vou examinar apenas se as teses de Quine, caso fossem verdadeiras, contariam em favor das pretensões do naturalismo na ética e na política.

Digamos que, seja porque dependam de sinonímia e intercambialidade (acho que não é por isso, que aqui Quine está enganado, mas okay, prossigamos), seja por alguma outra razão, enunciados analíticos requeiram, para sua verificação, algum tipo de saber empírico sobre o mundo. Disso não se segue que o saber empírico que eles requerem seja do tipo fornecido pelas ciências. Aliás, não me parece que qualquer conhecimento empírico das ciências naturais possa contribuir em nada para a verificação de um enunciado como “todos os solteiros são não casados”. O filósofo que afirma que “todos os solteiros são não casados” é uma verdade analítica precisa se apoiar, é verdade, em certo saber sobre como se usam as expressões “solteiro” e “casado” em nossas convenções padrão, mas este é um conhecimento que ele pode ter por participação numa comunidade de fala que adota e usa regularmente tais convenções. Trata-se precisamente do tipo de know-how que apenas um participante da referida comunidade de fala poderia ter, e que não poderia ser substituído por nenhum exame objetivista, quantitativista ou estatístico sobre formas de uso de “solteiro” e “casado”. A falácia criada pelo argumento de Quine vem da suposição de que, se um saber não deriva diretamente do significado, então, tem que ser empírico e, se é empírico, então, é do tipo provido pelas ciências naturais. Isto é simplesmente falso. Um filósofo pode ainda defender a autonomia da filosofia analítica perante as ciências mesmo que aceite que algum conhecimento empírico está envolvido na analiticidade: basta que o conhecimento empírico envolvido seja do tipo que um participante de uma comunidade de fala pode ter com segurança sem recorrer ao saber científico, que pouco poderia ensinar a este respeito a alguém que já não fosse um falante bem treinado daquela comunidade. Para dar um exemplo, as questões examinadas por H. L. A. Hart em “O Conceito de Direito”, tais como “É obrigação o mesmo que coerção?”, “Faz sentido falar de uma norma sendo válida num sentido não moral?”, “Uma regra é mais bem entendida como um comando ou como uma prática?”, “Pode a nulidade ser vista como uma forma de sanção?” não podem ser respondidas por qualquer tipo de pesquisa experimental. É preciso uma reflexão conceitual a seu respeito, reflexão que, embora recorrendo a algum saber empírico, certamente não recorre ao saber empírico fornecido pelas ciências naturais, e sim àquele adquirido pelo participante de uma comunidade de fala que usa aquelas expressões. Existe, então, ainda um campo de questões conceituais que são mais bem tratadas e resolvidas mediante os procedimentos da filosofia analítica do tipo não naturalizada. (Haveria mais a dizer a este respeito, especialmente sobre como a crítica de Quine se volta contra certa compreensão de analiticidade em termos lógicos ou quase lógicos que prevalecia entre os herdeiros da guinada linguística, do Círculo de Viena e do primeiro Wittgenstein, mas atinge pouco ou nada a noção mais ampla e flexível de analiticidade com que os herdeiros do segundo Wittgenstein já trabalhavam à época, mas o que foi dito já basta para nosso fim, que é mostrar que o argumento não conta a favor do naturalismo na filosofia.)

Digamos, agora, que, seja por causa do holismo do significado, seja por outra razão, enunciados isolados realmente não podem ser testados, mas apenas conjuntos vastos de enunciados. Mesmo assim, seria duvidoso se tal conjunto vasto teria que chegar à “totalidade do saber disponível” em cada momento. É certo que uma hipótese só pode ser testado apoiando-se em certo número de hipóteses pressupostas: Até para medir uma superfície com uma régua é preciso pressupor que as marcas gravadas na régua contam os centímetros corretamente e que a régua não sofreu nenhum tipo de desvio de direção nem distorção de tamanho. Se a hipótese que se está testando sugeria que a superfície medisse 1cm mas na experimentação ela mediu 0,7cm, pode ser ou porque a hipótese era falsa, ou porque o experimento foi mal conduzido, ou porque a régua está mal graduada, torta ou dilatada. Nisso Quine tem razão: toda hipótese principal se apoia em várias hipóteses auxiliares, e toda experimentação testa este conjunto, e não apenas a hipótese principal. (Embora Quine dê menos importância do que devia à questão da hierarquia entre hipóteses e do papel que paradigmas de pesquisa e o estado da arte desempenham na construção de hipóteses complexas, bem como o papel que o estado da técnica e os protocolos padrão desempenham na experimentação, mas isso também é outro assunto, vamos prosseguir.) Mas é difícil saltar daí para a ideia bastante contraintuitiva de que, se levássemos em conta todas as hipóteses auxiliares que estão sendo testadas, chegaríamos ao conjunto de todo o conhecimento disponível. Num experimento para medir a visão de cães com o uso de lentes, as leis conhecidas da ótica e as propriedades das lentes se colocam no mesmo nível do conhecimento biológico sobre cães como hipóteses auxiliares; mas é difícil supor como as leis da ótica e as propriedades das lentes poderiam ser hipóteses auxiliares se se estivesse testando a preferência dos cães por esta ou aquela ração com sabor artificial de carne. A natureza da hipótese e o tipo de experimento determinam quais teorias, leis e pressupostos contarão como hipóteses auxiliares em cada caso, mas, primeiro, esse conjunto varia de um experimento para outro e, segundo, ele nunca chega a remontar a todo o conhecimento científico disponível. Em lugar de holismo, devíamos falar em holismo flutuante ou holismo qualificado. Uma vez que admitamos isto, passaremos da afirmação bastante controversa de que o saber naturalista é sempre relevante para todas as hipóteses da ética e da política para a afirmação, bem mais modesta e sensata, de que ele é às vezes relevante, em graus variáveis, dependendo do quanto a hipótese em questão dependa de saber sobre o mundo, sobre o indivíduo e sobre a sociedade do tipo que o saber naturalista pode fornecer.

Sendo assim, e encerrando esta primeira parte, não é verdade que Quine tenha “derrubado” a separação entre analítico e sintético: ele apenas chamou atenção para o grau em que a analiticidade requer saber empírico, mas não provou que este saber empírico seja do tipo que só pode ser fornecido pelas ciências. Também não é verdade que o holismo de Quine conte sozinho em favor de um saber científico totalizante e unificado: ele conta, quando muito, em favor da percepção de que existem sobreposições e interdependências entre os campos e ramos do saber, e que se deve aprender a lidar com estas interseções de modo responsável. Uma vez que, segundo argumentei, ainda existe um campo autônomo para a reflexão analítica, a pretensão do naturalismo deixa de ser interpretada em termos de uma reconfiguração do saber por razões epistêmicas e passa a ser vista como aquilo que ela de fato é: a proposta de um programa alternativo ao analítico, no qual o saber empírico das ciências naturais é tomado como ponto de partida e limite de teste das hipóteses éticas e políticas com que se estaria autorizado a trabalhar. Não é que, depois de “Dois Dogmas”, esta seja a única maneira sensata de fazer ética e política; é apenas a que está em conformidade com o temperamento cientificista que privilegia o experimental e objetivista e que reflete o entusiasmo naturalista provocado pelos recentes avanços das disciplinas cognitivas e evolucionárias. O naturalismo em ética e política é apenas ética e política feita sob encomenda para o gosto dos naturalistas – nada além disso.

2 – Privilégios Epistêmicos e Parcialidade Ideológica

Eis uma referência feita pelo Valdenor ao que pode acontecer quando as ciências humanas e sociais não se apoiam devidamente no saber naturalista:
E a consequência de não ter esta integração conceitual nas ciências humanas, por exemplo, é a de permanecermos na situação lamentada por Cosmides, Tooby e Barkow, em que encontramos biólogos evolucionários postulando processos cognitivos que possivelmente não resolveriam o problema adaptativo sobre consideração, psicólogos propondo mecanismos psicológicos que nunca poderiam ter evoluído e antropólogos fazendo suposições implícitas sobre a mente humana que nós já sabemos serem falsas.
A passagem deixa transparecer bem o que eu, seguindo aqui a linha da crítica ao velho positivismo oitocentista, chamarei de tese do privilégio epistêmico. Eis em resumo como esta tese se articula: Certos campos do saber são mais bem fundados que outros; o que torna um campo de saber mais bem fundado que outro é seu formato experimental e seu suporte empírico; assim, os campos das ciências naturais estão mais estabelecidos que os das humanas e sociais; por isso, faz sentido dizer que um psicanalista freudiano ou um sociólogo marxista está trabalhando com uma premissa que já foi refutada pela psicologia cognitiva ou pela antropologia evolucionista, mas não faria sentido dizer que um psicólogo cognitivo ou um antropólogo evolucionista está trabalhando com uma premissa que já foi refutada pela psicanálise freudiana ou pela sociologia marxista; quando as teses com que um e outro destes campos trabalham colidem, são os campos menos bem fundados que estão errados e devem se ajustar ao que os campos mais bem fundados já “provaram” ou já “refutaram”. A tese do privilégio epistêmico tem vários componentes.

Primeiro, ela supõe que todos os objetos de investigação são mais bem explicados a partir do método experimental. Vejam bem, com isso ela não quer dizer apenas que todo objeto é passível de investigação experimental, no sentido de que, por menos intuitivo e por mais desafiador que seja descobrir como, é sempre possível bolar um modo experimental de estudar o objeto. Com isso eu concordaria sem problemas. É possível estudar de modo experimental o sentido das regras sociais, os padrões de valoração artística aplicados pela crítica especializada, as diferenças entre óperas de Wagner e Puccini, os critérios de julgamento de rostos perigosos e amistosos etc. Potencialmente, tudo pode ser estudado de modo experimental. Isso não quer dizer que os resultados alcançados com tal estudo serão nem relevantes, nem verdadeiros, nem superiores aos obtidos de outra forma. Apenas ocorre que não há limite para a criatividade metodológica do saber experimental e os objetos no mundo são tais que, se deixam marcas no mundo empírico, podem ser estudados a partir destas marcas. Mas a tese do privilégio epistêmico vai além do reconhecimento da universalidade potencial do método experimental; ela afirma sua superioridade cognitiva a qualquer outro método de investigação de qualquer objeto. Há um momento do texto do Valdenor em que ele diz, a respeito dos que defendem o dualismo metodológico, que:
Essa postura é anti-naturalista: você assume, aprioristicamente, que os métodos das ciências naturais não podem ser informativos às ciências humanas, ao invés de fazer um argumento empírico robusto contra aplicar tais e tais resultados de um campo ao outro.
É interessante que essa acusação caiba contra as ciências humanas e sociais mas não caiba contra o próprio naturalismo. Por que alguém não poderia demitir o naturalismo usando esta mesma acusação, isto é, dizendo que ele assume, aprioristicamente, que os métodos não experimentais não podem ser informativos a ciência alguma, incluindo as humanas e sociais, ao invés de fazer um argumento conceitual e normativo robusto contra aplicar tais e tais resultados entre os que já existem naqueles campos? Por que o psicanalista não pode exigir do naturalista um argumento psicanalítico robusto contra a psicanálise, e o marxista não pode exigir do naturalista um argumento marxista robusto contra o marxismo, mas o naturalista pode exigir dos anteriores um argumento “empírico” (ou seja, empírico-experimental, isto é, naturalista) contra o naturalismo? Esta assimetria tem uma razão de ser: precisamente a tese do privilégio epistêmico. Quando se remove este privilégio, observa-se do que realmente se trata a contenda: Cada lado demite o outro de modo igualmente apriorístico, um porque concebe seu método como o único legítimo para todos os objetos possíveis, e o outro porque concebe seu objeto como tendo uma natureza tal que não é acessado adequadamente por meio do método experimental. Nenhum dos dois pode provar estas teses grandiloquentes, porque elas são menos afirmações sobre o mundo e mais formas de ver o mundo, cosmovisões distintas e incomensuráveis. O naturalista, para se declarar em posição superior, apontará seus resultados experimentais (pedindo que se veja como são objetivos, claros, testáveis, repetíveis, uniformes etc.) e acusará o outro lado de não ter resultados experimentais, apenas ideias e hipóteses “soltas no ar”, castelos de areia sujeitos às marés do modismo e da inclinação; já o antinaturalista, para se declarar em posição superior, apontará a irrelevância, relatividade e parcialidade dos resultados experimentais do naturalista e mostrará que, servindo-se de outro modo de conhecer as coisas, alcançou resultados mais satisfatórios e frutíferos. Mas é impossível dizer qual dos dois realmente detém os resultados mais satisfatórios e frutíferos, porque, para tanto, seria preciso um juiz imparcial, que já não estivesse previamente comprometido seja com a visão de mundo monista naturalista, seja com a dualista antinaturalista. E tal juiz não existe. O universo do saber é disposto de modo tal que distintos métodos de conhecimento levarão a distintos resultados, todos eles interessantes por algum motivo. (Não cabe aqui dizer que, em vez de interessantes, deviam ser verdadeiros, e que os resultados verdadeiros estão do lado do saber experimental, porque, para tanto, é preciso já ter uma concepção de verdade e uma concepção de verificação marcadas pelo temperamento experimental; o psicanalista e o marxista também podem dizer que o que importa é a verdade, mas darão tanto à verdade quanto aos sinais pelos quais se reconhece a verdade um sentido bastante distinto.) Ocorre apenas que o pluralismo perspectivo do mundo frustra a pretensão monista do naturalista, de modo que, enquanto o dualista vê pouca utilidade em provar que o saber experimental sobre seu objeto é falso, o naturalista faz profissão de fé de provar que seu método de investigação é o único aceitável. Todo naturalista é um católico lutando contra a heresia.

Mais um coisa que a tese do privilégio epistêmico pressupõe é que os resultados recentemente obtidos pelo novo saber naturalista são de algum modo mais verdadeiros e mais definitivos que os obtidos pelas versões anteriores do naturalismo. Em todo novo nascimento do naturalismo existe este espírito entusiástico e otimista de “Agora sim, agora vai!”, no sentido de que agora se dispõe dos métodos e técnicas necessários, se conhecem as hipóteses de fundo relevantes e se estão alcançando, enfim, os resultados pretendidos. É o que torna o evolucionista atual confiante de que as teses que agora defende não serão vistas pelo futuro como tão ridículas quanto as que eram defendidas pelo neodarwinismo dos Séc. XIX e do Pré-Guerra. Os que àquela época também se chamavam naturalistas defenderam coisas tais como o caráter natural da desigualdade social, dado que existem fortes e fracos, o lado positivo de fomes, pestes e crises, dado que favorecem a seleção dos mais fortes a aptos, a competição por recursos escassos com exclusão dos perdedores como método educacional para a infância, dado que reproduz com fidelidade a evolução da vida natural, a necessidade de superação da moralidade cristã, dado que altruísmo, proteção e cuidado detêm a evolução, em vez de impulsioná-la etc. Com a mesma dose de confiança e empolgação, os naturalistas de agora defendem em grande medida as teses contrárias. Dizem que o ambiente competitivo tem que ser justo, que a cooperação é uma estratégia eficaz de sobrevivência, que a moralidade (pelo menos certa moralidade liberal moderna) não é o que detém a evolução, mas antes é o que a impulsiona e é produto dela, que a educação floresce num ambiente em que a competição é limitada e temperada pelo respeito e pelo cuidado etc. Não deixa de ser curioso que o naturalismo de cada época seja tão parecido com as versões prevalecentes do liberalismo na política e da ética corporativa no campo empresarial. Para quem alega estar descobrindo verdades transistórias, trata-se sem dúvida de uma afortunada coincidência histórica.

De certa forma, todo empreendimento científico está sujeito a ser ridicularizado pelo futuro, e toda metodologia, por promissora que pareça, pode ser provada inadequada por evidências futuras. O físico atual pode afirmar muitas coisas em contrário à física newtoniana, o geômetra atual pode afirmar muitas coisas em contrário à geometria euclidiana, o lógico atual pode afirmar muitas coisas em contrário à lógica aristotélica. Nisso não há nem surpresa nem vergonha. Mas enquanto o físico, o geômetra e o lógico atuais conseguem mostrar que as versões anteriores, longamente prevalecentes, de suas disciplinas não eram falsas, e sim incompletas, sendo na verdade casos especiais das teorias hoje dominantes, o naturalista de hoje não encontra no naturalismo oitocentista mais do que pura ideologia pseudodarwiniana, diante da qual reclama o privilégio de ser o primeiro naturalismo realmente científico, e não pseudocientífico. Não será surpreendente se esta for também a posição do próximo naturalismo em relação ao atual. (Aqui o naturalista corre o risco de, para sair da frigideira, cair no fogo: ele pode tentar mostrar que o naturalismo atual não é mero endosso de uma nova versão do liberalismo, e sim um programa de pesquisa que reúne pesquisadores e hipóteses dos mais diversos feixes teóricos e ideológicos, não estando mais comprometido com o liberalismo do que, por exemplo, com o socialismo, com o anarquismo ou com o feminismo; digo que isto seria sair da frigideira para cair no fogo porque, para se livrar da acusação de parcialidade ideológica, ele estaria mostrando que, dentro do naturalismo, se reproduz a mesma multiplicidade de perspectivas e posições que a ética e a política não naturalistas já contemplam, não sendo claro, neste caso, nem como isso prova a neutralidade ideológica, porque parece provar exatamente o contrário, que as pesquisas são todas conduzidas a partir de premissas ideológicas, nem como o naturalismo poderia ajudar a superar as longas divergências ideológicas da ética e da política se é marcado pelas mesmas divergências. Além desse perigo do fogo, isso ainda implicaria uma má interpretação da frigideira: não é que o único naturalismo que exista seja o liberal, e sim que em cada época o naturalismo que ganha destaque no mundo acadêmico e extra-acadêmico, que é mais sistematicamente estimulado, financiado, citado e usado, é o naturalismo liberal, ou melhor, o liberalismo de cada época travestido do naturalismo da vez. É por causa da esperança de que o naturalismo produza uma confirmação metaideológica do liberalismo que o Estado liberal e as empresas capitalistas investem em pesquisas naturalistas.)

3 – Conclusão e desafios

Por fim, para que possíveis continuações deste diálogo não caiam em meras repetições das mesmas teses adornadas com novas críticas e provocações, gostaria de deixar alguns “desafios”, consistindo em tarefas que o interlocutor naturalista deveria ser capaz de executar para atingir seu intento. Estes desafios são a pauta necessária de qualquer tentativa de réplica ao que escrevi neste texto:

1) Provar que a distinção entre analítico e sintético foi superada nos termos em que o naturalismo gostaria que tivesse sido, usando para isso algum argumento mais convincente que o de Quine.

2) Provar que a distinção entre normativo e empírico foi superada nos termos em que o naturalismo gostaria que tivesse sido, usando para isso algum argumento mais convincente que o simples fisicalismo fraco (como em Searle: “se apenas entidades físicas existentes, normas, se existem, têm que ser entidades físicas de algum tipo”) ou que o argumento da determinação física (como em Putnam: “normas, se fazem algum sentido, são relações entre situações físicas, reais ou possíveis, justificadas com base em outras situações físicas, reais ou possíveis”), os quais não chegam a consistir argumentos em favor do tipo de pesquisa naturalista que os naturalistas atuais propõem, e sim a favor da “fisicalidade” de qualquer que seja o status e sentido atribuídos às normas, ideais, valores, aspirações e preferências.

3) Provar que o conhecimento humano só tem sentido e valor quando concebido como um projeto totalizante unificado que envolve os saberes de todos os campos e disciplinas com algum argumento mais convincente do que o que se baseia no holismo semântico e no holismo verificacional.

4) Provar que o único método legítimo de conhecimento é o método experimental com algum argumento que não dê preferência apriorística às características dos resultados obtidos pelo método experimental. Fornecer, em vez disso, um argumento pelo qual seja impossível outro método de investigação legítimo.

5) Provar que os conhecimentos sobre o ser humano recentemente obtidos por meio do novo saber naturalista são superiores a qualquer teoria ética ou política de tipo não naturalizada por meio de um argumento que não seja uma variante da simples superioridade do método experimental.

Claro que, se meu interlocutor nominado, Valdenor, e meus outros possíveis interlocutores não nominados, abraçarem estes cinco desafios e fornecerem argumentos convincentes em favor da tese enunciada em cada um deles, estarão por conseguinte no pleno direito de formularem para mim uma lista correspondente de desafios, isto é, de tarefas que eu, como teórico antinaturalista, deveria ser capaz de executar em favor da posição que sustento. Fico feliz com este debate e espero que ele prossiga e seja enriquecedor tanto para os que escrevem como para todos os que leem.

Comentários

Muito esclarecedor e didático André!

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