Sobre o Futuro da Teoria Crítica - Entrevista com Thomas McCarthy
O excerto abaixo foi extraído de uma entrevista concedida por Thomas McCarthy em 1996 e publicada em 2001 como anexo final na coletânea "Pluralism and the pragmatic turn: The transformation of critical theory", organizada por William Rehg e James Bohman. Trata-se da última seção da entrevista, que traduzi para o português e agora disponibilizo aqui no Filósofo Grego. As perguntas estão marcadas em itálico.
Gostaríamos agora de fazer algumas perguntas
relativas a certos problemas e prospectos para o futuro desenvolvimento da
teoria crítica. Parece haver uma percepção comum, pelo menos aqui na Europa, de
que a teoria crítica de Habermas se tornou não muito mais do que uma versão do
constitucionalismo liberal. Como a teoria crítica hoje se diferencia do
liberalismo?
Acho que se
deve ler a obra de Habermas nas últimas duas décadas como um todo em desenvolvimento,
em vez de ler sua obra mais recente como uma mudança de posição. Isto quer
dizer que a versão do constitucionalismo desenvolvidos em Direito e Democracia tem que ser entendido no pano de fundo da Teoria da Ação Comunicativa. Na verdade,
pode-se dizer inclusive que desde Mudança
Estrutural da Esfera Pública, em 1962, até Direito e Democracia, de 1992, ele esteve elaborando um único e
mesmo projeto: conceitualizar uma organização genuinamente democrática da
sociedade. Mas não há dúvida de que em algum ponto ele passou a acreditar –
pelo menos com Teoria da Ação
Comunicativa – que uma democratização direta de todas as instituições
politicamente relevantes, incluindo as econômicas, não era possível em
sociedades vastas e complexas. E isso significava que não podemos simples nos
livrar dos mercados e administrações estatais – como Marx algumas vezes sugeriu
que podíamos – mas tínhamos que aprender como domá-los, para usar as palavras
de Habermas. Esta mudança o trouxe, é verdade, mais perto das preocupações
tradicionais do constitucionalismo liberal. A questão agora passa a ser como
melhor assegurar uma agenda completa de direitos básicos para todos, como
estruturar instituições e processos políticos de modo que os indivíduos e
grupos tenham voz nas decisões que os afetam, e como formular mecanismos
distributivos e redistributivos para assegurar que todos tenham recursos
adequados para exercer seus direitos e perseguir seus projetos de vida. Isto é,
certamente, um projeto menos radical do que a visão marxista, mas fornece uma
perspectiva crítica sobre todas as formas realmente existentes de liberalismo
político. Nenhuma sociedade existente chega perto de corresponder a estes
padrões. Então, eles ainda possuem potencial crítico [critical bite].
Muitas destas preocupações seriam
compartilhadas por liberais, como John Rawls, por exemplo. Como Habermas se
diferencia de Rawls?
Bem, o
princípio da diferença de Rawls é um princípio redistributivo bastante forte,
que poderia, como ele próprio diz, abarcar qualquer coisa até o socialismo
democrático. A diferença com Habermas é que Rawls faz teoria política normativa
num estilo anglo-americano contemporâneo, sem um completo pano de fundo teórico-social.
Isso faz uma enorme diferença no que ambos consideram serem as questões
cruciais. A segunda diferença, que vem à tona no recente debate entre eles no Journal of Philosophy, é que Habermas
considera que Rawls privilegia os direitos pessoais individuais. Acho que isso
é verdade e vemos isso, por exemplo, em Direito
dos Povos, onde Rawls está disposto a renunciar explicitamente a
preocupações igualitárias ou participatórias. Aquilo a que Rawls quer se manter
firme é uma certa agenda de direitos individuais, e isso o leva numa direção
muito diferente da de Habermas.
Dada a proximidade percebida entre a teoria
crítica e o liberalismo contemporâneo, o senhor acha que a tradição deveria
agora abrir mão de suas aspirações radicais?
Há
proximidade num sentido mas não em outro. As ideias da tradição liberal são sem
dúvida a matéria-prima desta concepção de justiça social. Mas não é o
liberalismo do primeiro período moderno – não o liberalismo, digamos, de Locke –
mas o liberalismo informado pelas lutas democráticas desde o Séc. XVIII e pela
luta por justiça social desde o Séc. XIX. O termo “liberalismo” veio desde então
a cobrir tudo desde o individualismo possessivo até a social democracia, e a
distância entre os polos, é claro, faz uma grande diferença. Os teóricos
críticos deveriam cuidar de não falar como se não fizesse. Do modo como
Habermas as entende, as ideias de direitos pessoais, políticos e sociais, sua
plena institucionalização jurídica e sua implementação procedimental podem ser
usadas para conceitualizar tudo desde a democracia social até o socialismo
democrático. E elas impõem apenas constrangimentos formais amplos à
experimentação individual e grupal com formas de vida emancipada. Acho que a
questão é: Qual é a alternativa?
Habermas tem caracterizado a tarefa da
filosofia em termos pós-metafísicos. Isso exclui, alguns diriam que de forma
draconiana, certos tipos de especulação ontológica. O senhor também vê a
necessidade de defender essa concepção deflacionada das tarefas da filosofia?
No final do
Séc. XX, acho que o ônus do argumento está do outro lado; quais formas específicas
de especulação ontológica deveríamos levar a sério e por quê? Até onde vejo,
tentativas de reviver formas premodernas, por exemplo, em algumas versões da
ecologia radical, incorrem imediatamente nos mesmos problemas aos quais
sucumbiu o pensamento metafísico no período moderno. Isso se estende, acredito,
às formas pós-modernas largamente derivadas de Heidegger. Tenho de fato
bastante simpatia com esforços para trazer à consciência as pressuposições ontológicas
do pensamento e da ação – tornar-se mais consciente de nosso enraizamento e
incorporação, por assim dizer. Mas vejo isso mais como uma radicalização do
projeto crítico iniciado por Kant que como um retorno à metafísica
especulativa. Não é tanto que sinta uma necessidade de me defender contra esta
última – não sinto. É apenas que não achei nenhum dos esforços recentes nesta
direção muito convincentes. Mas talvez você tenha alguma coisa específica em
mente?
Além de Heidegger, a tradição
idealista alemã ocorre à mente. Podemos considerar esta tradição engajada não
tanto com propor pretensões de validade específicas ou dar fundamentos para as
teorias científicas da natureza, mas com especular sobre o que significa ver a
natureza “do modo correto”.
Sou mais simpático com esta última que com as versões especificamente
heideggerianas. Houve um tempo em que estive totalmente entusiasmado com a
ideia de refazer uma filosofia hegeliana ou schellingiana da natureza num
contexto contemporâneo. A proposta seria reelaborar a ciência da nossa época.
Isso significaria uma filosofia da natureza que fosse feita não desconsiderando
a ciência, ou alegando que existe um modo totalmente diferente de falar da
natureza que é mais profundo e pode ignorar a ciência. Seria uma releitura da
ciência em terminologia filosófica. Quando estava na Alemanha alguém estava
tentando fazer isso com Hegel. Achei tremendamente excitante – um tipo de
leitura completa da natureza. É claro, lidando como lida com Geist, tal projeto provavelmente não
satisfará uma preocupação com uma concepção não antropomórfica da ética da
natureza. No caso hegeliano se teria que ler de cima abaixo todas as diferentes
ordens da natureza até o nível inorgânico, em termos de um vocabulário
completamente distinto. Esse seria uma projeto muito interessante. Até tentei
convencer alguns estudantes de pós-graduação a realizá-lo. Não acho que ninguém
o tenha feito ainda, embora não tenha nada contra que tentem fazê-lo.
O próprio Habermas parece
sugerir que sua estrutura conceitual se baseia na tradição religiosa
judaico-cristã. Qual você considera que seja a relação entre teoria crítica e
religião?
Concordo com Habermas que o próprio medium da teoria é o discurso raciocionado.
Claro, nas formas hermenêuticas de Habermas, ele pode ser usado para trabalhar com
e para além das ideias culturalmente transmitidas de verdade, justiça,
liberdade, emancipação, vida boa e assim por diante, incluindo aquelas
transmitidas por diferentes tradições religiosas e mantidas vivas em formações
culturais variadas e diversas. Mas, uma vez que se apele a tais ideias como religiosas, por exemplo, como
garantidas por revelação ou por experiência regiligiosa, ou qualquer coisa
semelhante, acho que se abandona o reino da teoria, que entendo como dirigido
para uma audiência potencialmente universal. Por outro lado, a teoria não é a
totalidade da vida, e há espaço nesta última para muitas coisas que não
pertencem à primeira.
A teoria crítica sempre se
compreendeu como mais que uma disciplina acadêmica. Como o senhor acha que ela
pode evitar o risco do isolamento acadêmico?
A teoria crítica no Séc. XX esteve, de fato, intimamente ligada com o
trabalho acadêmico. A maioria de seus praticantes – de Horkheimer, Adorno e
Marcuse até Habermas, Wellmer e Honneth – passaram a muito de suas vidas
produtivas conectados, de um modo ou de outro, com universidades e institutos
de pesquisa. Os únicos modos que vejo para ela evitar ser absorvida na rotina
acadêmica são os já conhecidos, isto é, por um lado, resistir às enormas
pressões da especialização disciplinar a que a profissionalização expõe os acadêmicos
– manter nossos olhos nos problemas que nos interessam e então deixar que as
fichas disciplinares caiam onde quiserem – e, por outro lado, manter contato
vital com os movimentos sociais progressistas da época. A teoria feminista, a
teoria da raça, os estudos gays e lésbicos, os estudos pós-coloniais e outros
semelhantes tem recentemente sido melhores nisso do que a teoria crítica –
embora eles também tenham tido seus problemas com a excesiva distância em
relação às formas oprimidas de vida sobre as quais teorizam. A tradição marxista se vinculou
primariamente à política de classe, e em muitos países industrializados essa
forma de política desapareceu. Em qualquer caso, novas formas de política
surgiram e existe uma necessidade constante de desenvolver a teoria crítica de
forma a articular as preocupações dos novos movimentos sociais. É isso que, de
certo modo, Seyla Benhabib, Axel Honneth e outros tem tentado fazer
recentemente.
Quais os senhor vê como os principais desafios
da teoria crítica hoje?
Os
principais desafios, penso, vêm do senso geral de exaustão social e cultural
que se infiltra tanto na teoria como na prática hoje em dia, o ceticismo geral
sobre a teoria em qualquer forma mais forte que a irônica ou desconstrutiva, o
sentimento geral de desamparo em face de forças impessoais e a fragmentação da
vida. Estas coisas militam contra qualquer tipo de renovação do projeto do
esclarecimento, ainda mais um com os impulsos utópicos da teoria crítica. Não
acho que haja muito mais que se possa fazer aqui como um teórico exceto tentar
entender e teorizar estas forças e relacioná-las com as preocupações políticas
de nosso tempo.
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