Entrevista com Kenneth Himma - Primeira Parte
Dando início a uma sequência de entrevistas com figuras representativas do quadro contemporâneo da filosofia do direito, apresento abaixo a primeira parte da versão traduzida da entrevista que fiz com o Prof. Kenneth E. Himma. Fiz as perguntas tendo em vista o contexto brasileiro e a necessidade do público leitor de ganhar mais familiaridade com o estado do debate de língua inglesa sobre filosofia do direito, e especialmente sobre o positivismo jurídico. Espero que apreciem.
1 – Gostaria de partir de um ponto que ainda é
conhecido da maioria dos estudantes e professores de filosofia do direito no
Brasil, que é o debate Hart-Dworkin. Qual é a sua compreensão pessoal do
verdadeiro objeto do debate? E em que ponto do espectro entre descritivo e
normativo você se localiza quanto a teoria do direito?
Kenneth E. Himma |
Tanto
Dworkin quanto Hart consideravam que o debate era entre um antipositivista e um
positivista. As primeiras obras de Dworkin criticavam várias das que ele
considerava serem doutrinas positivistas. Ele atribuía ao positivismo e
criticava as seguintes afirmações: (1) juízes tem uma discricionariedade de
tipo quase legislativo; (2) o direito consiste somente de regras (não de
princípios); (3) os critérios de validade são exauridos por normas convencionais;
e (4) não há conexão conceitual entre direito e moral. As críticas de Dworkin
forçaram os positivistas a esclarecerem várias de suas posições relativas às
quatro afirmações acima e contribuíram bastante para a forma que toma o
positivismo contemporâneo. Sua obra tardia em teoria do direito conceitual,
especialmente a obra-prima de Dworkin, O
Império do Direito, articulou o que ele considerava ser uma terceira teoria
conceitual do direito – o interpretativismo construtivo. De acordo com a visão
de Dworkin, o direito inclui não apenas as regras e padrões que são promulgados
pelas legislaturas e tribunais, mas também os princípios de justiça e equidade
que mostram aquelas regras e padrões à melhor luz moral, o que, para Dworkin,
envolveria fornecer a melhor justificação moral possível para uso estatal de
mecanismos coercivos de aplicação. Ele continuou a negar que os critérios de
validade (ou “fundamentos do direito”, como ele os chama) são exauridos por
regras convencionais (ou “sociais, como Hart as chama) – uma conclusão que ele
tenta justificar por meio do seu argumento famoso (ou infame) do aguilhão
semântico – ao longo de todas as fases de sua carreira.
Considero
muito do que Dworkin tem a dizer sobre decisão judicial e julgamento
convincente se não for interpretado como fazendo afirmações conceituais sobre a
natureza do direito. Construída como uma teoria de como os juízes moralmente
deveriam decidir e caracteristicamente decidem casos, as visões de Dworkin são
eminentemente plausíveis, pelo menos tais como soam para mim. Como uma questão
moral, os juízes deveriam, a meu ver, julgar casos difíceis encontrando a decisão
que melhor justifica o uso dos mecanismos de coerção estatal. Mas, construída
como uma teoria conceitual do direito, a “terceira” teoria de Dworkin não
parece mais plausível que as formas mais fortes de jusnaturalismo. Dworkin
critica, por exemplo, as decisões da Suprema Corte [norte-americana] que
sustentaram as “leis de escravos fugitivos” que requeriam a devolução de “escravos”
foragidos a seus “donos” como sendo um equívoco judicial do ponto de vista de
sua teoria. O problema é – e posso estar terrivelmente enganado a este respeito
– que, se o direito de uma comunidade é, como uma questão conceitual, as leis e
declarações judiciais que fornecem instâncias paradigmáticas do direito,
tomados conjuntamente com os princípios que mostram estas regras existentes em
sua melhor luz moral, as decisões dos tribunais mantendo o direito não estavam
fundados no direito, como deveriam estar, e não contam como direito. Da mesma
forma, se construída como uma teoria conceitual do direito, Dworkin parece
comprometido com defender que, quando os juízes revertem um precedente e
anunciam uma regra conflitante, uma das regras não é (ou não era) direito à
época. Estas teses são tão difíceis de reconciliar com a prática jurídica
ordinária que elas parecem inconsistentes com a ideia de que é nosso conceito de direito que de fato
importa. Nossos conceitos jurídicos, como Raz indica, são formados por nossas práticas
institucionais, linguísticas e jurídicas; por esta razão, Raz sustenta (e eu
concordo), nós não podemos estar sistematicamente enganados sobre o conteúdo
dos nossos conceitos – e a teoria de Dworkin parece sugerir que estamos.
2 – Uma das razões por que muitos estudantes e
professores de filosofia do direito no Brasil estão desinformados dos
desenvolvimentos recentes na tradição analítica é que eles têm certas
concepções equivocadas sobre o positivismo jurídico que os faz pensarem que se
trata de uma teoria jurídica antiquada e obsoleta. “Positivismo jurídico” é
usado frequentemente em sentido pejorativo, dando nome a uma concepção
espantalho que quereria despir o direito de conteúdo moral, negar a existência
de princípios jurídicos, defender interpretações textualistas das fontes
jurídicas etc. Você pode nos dar uma explicação mais precisa de em que o
positivismo jurídico realmente consiste?
O
positivismo é uma teoria que explica a natureza do direito. O que ele diz, em essência,
é que o direito é um produto social do princípio ao fim. O conteúdo das regras
que regulam tanto a conduta dos cidadãos quanto dos funcionários em seus
poderes como funcionários é determinado por certos processos sociais. O direito
é, como uma questão conceitual, produzido por seres humanos por meio de certos
processos sociais. Isso não implica coisa alguma no que se refere a
interpretação das leis ou da constituição. A regra de reconhecimento define as
coisas que os funcionários devem fazer para criar ou modificar o direito; a
regra de reconhecimento poderia conter princípios que requeressem uma abordagem
textualista da interpretação constitucional ou que requeressem uma abordagem
que vise identificar a interpretação moralmente superior. Tampouco, no mesmo
sentido, o positivismo implica qualquer coisa a respeito de se os juízes têm ou
não têm uma discricionariedade quase legislativa; não se pode responder a esta
questão sem decidir se os casos difíceis envolvem uma lacuna no direito. Se
envolvem, então, parece que está sendo criado direito novo num caso difícil –
não importa qual é a sua teoria. Se não envolvem, então, pode-se sustentar que
não está sendo criado direito novo num caso difícil. Ambas as opções são
consistentes com o positivismo porque o positivismo simplesmente não se propõe
a dizer coisa alguma sobre o que distingue casos difíceis de outros casos.
Há um
sentido em que uma versão do positivismo tem algumas implicações que se parecem
com algumas das afirmações que você descreve acima como oferecidas pelos
críticos do positivismo. O positivismo exclusivo nega que a moral possa ser
incorporada ao direito (bem, falando estritamente, o positivista exclusivo nega
apenas que a moralidade possa ser incorporada à regra de reconhecimento). Num
sentido evidente, isso “despe o direito de seu conteúdo moral” – a saber, impede
que o direito possa incorporar conteúdo moral daquela forma. Considerações
morais não podem ser parte do direito, nesta visão.
Mas isso
não tem implicação prática alguma que lembre nem remotamente as que parecem
motivar os detratores do positivismo. Por exemplo, o positivista exclusivo não
nega que os juízes podem ter um dever jurídico de decidir casos de acordo com a
melhor interpretação moral dos materiais jurídicos relevantes. O positivista
exclusivo deve dizer que as considerações morais relevantes não são uma parte
pré-existente do direito; o que certamente é verdade. Mas isso não implica
coisa alguma que dispa o direito de seu conteúdo moral. Na medida em que os
juízes têm um dever de decidir casos de certo modo, o direito terá certas
qualidades morais favoráveis. A questão de se o princípio moral relevante já
era parte do direito antes de ter sido citado para justificar uma decisão é
interessante, mas não muda muita coisa; em particular, responder a esta questão
não nos dirá coisa alguma sobre a moralidade do conteúdo do direito.
De fato,
não acho que o positivismo possa nos dizer coisa alguma de interesse sobre o
que os juízes ou legisladores deveriam fazer. Estas questões são deixadas para
as teorias da legitimidade responderem. O positivismo é uma teoria da
legalidade (i.e., o que conta como direito), e não uma teoria da legitimidade
(i.e., quais qualidades o direito tem que ter para ser aplicado legitimamente
por meios coercivos). Eu considero, seguindo Austin, que a questão de o que
conteúdo do direito é e de o que o conteúdo do direito deveria ser são duas
questões diferentes que requerem duas metodologias diferentes para serem
respondidas.
3 – Muitos estudantes e professores de
filosofia do direito no Brasil não estão familiarizados com a disputa entre inclusivos
e exclusivos no positivismo jurídico contemporâneo. Você pode nos dar uma breve
caracterização de cada posição e suas razões pessoais para acreditar que o positivismo
jurídico inclusivo é uma concepção superior do direito?
O
fundamento conceitual do positivismo jurídico consiste em três compromissos: a
Tese dos Fatos Sociais, a Tese da Convencionalidade e a Tese da Separabilidade.
A Tese dos Fatos Sociais afirma que a existência do direito é tornada possível
por certos tipos de fato social. A Tese da Convencionalidade afirma que os
critérios de validade são de caráter convencional. E a Tese da Separabilidade, no
nível mais geral, nega que exista coincidência necessária entre direito e
moral.
Enquanto a
Tese da Separabilidade implica, assim, que não há critérios morais necessários
de validade moral, ela deixa aberta a questão de se critérios morais possíveis
de validade. Positivistas jurídicos inclusivos (também conhecidos como
positivistas fracos ou incorporacionistas) acreditam que podem existir tais
critérios; isto é, eles acreditam que são conceitualmente possíveis sistemas
jurídicos nos quais os critérios de validade jurídica incluem (ou incorporam)
princípios morais. Positivistas inclusivos proeminentes incluem H.L.A. Hart, Jules
Coleman, W.J. Waluchow e Matthew Kramer [além, claro, do próprio Kenneth E.
Himma]. Positivistas jurídicos exclusivos (também conhecidos como positivistas
fortes) negam que existam critérios morais de validade. Positivistas
exclusivos, como Joseph Raz, Scott Shapiro e Andrei Marmor, afirmam que a existência
e conteúdo do direito pode sempre ser determinado por referência a fontes
sociais.
A posição
positivista inclusiva é bastante fraca, enquanto a positivista exclusiva é
bastante forte. O inclusivista diz apenas que é possível para uma sistema
jurídico ter critérios morais de legalidade; em outras palavras, o inclusivista
defende que a ideia de critérios morais de legalidade não é incoerente (no
sentido em que a ideia de um solteiro casado é incoerente). Esta é uma
pretensão bastante fraca: dos incontavelmente infinitos mundos possíveis que
existem, pelo menos um tem critérios morais de legalidade. A pretensão
exclusivista é muito mais forte: nenhum do número incontavelmente amplo de
mundos possíveis no espaço lógico tem critérios morais de legalidade.
Eu acho que
nenhum dos argumentos exclusivistas contra o positivismo inclusivo funciona – e
publiquei vários papers criticando os melhores argumentos contra o positivismo
inclusivo, que incluem a obra de Joseph Raz sobre autoridade e a obra de algum
modo relacionada de Scott Shapiro sobre a orientação por regras. Os papers
desafiam as visões de Raz de que o direito necessariamente pretende autoridade
legítima (ver este e este) e de
que a tese da justificação normal propõe um princípio plausível de legitimidade
moral (ver este).
Também publiquei uma crítica ao argumento de Shapiro de que o positivismo
inclusivo é inconsistente com a visão hartiana de que o direito faz uma
diferença prática nas deliberações sobre o que fazer (ver este).
Também
publiquei uma monografia sobre o debate inclusivista-exclusivista em espanhol
que inclui uma tradução de versões revisadas dos papers originais. Estou
expandindo o livro, que está sob contrato com a Oxford University Press (ver aqui).
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