Perelman sobre Princípio da Inércia: Explicação e Crítica

Perelman usa o conceito de “princípio da inércia”: a teoria já amplamente aceita tem preferência na discussão, cabendo a qualquer teoria concorrente um ônus argumentativo duplo de provar, primeiro, que a teoria já aceita está errada e, depois, que sua alternativa é melhor que a dela. Se X já é aceita, Y precisa provar primeiro que X está errada e depois que é melhor que X; se não o faz, X prevalece. A analogia com a primeira lei de Newton é bem evidente: assim como um corpo tende a permanecer em seu estado de repouso ou movimento a menos que uma força intervenha para produzir uma mudança, um auditório tende a permanecer com as ideias em que já acredita a menos que uma teoria concorrente as derrube e as substitua satisfatoriamente.

Mas, diferentemente da primeira lei de Newton, o princípio da inércia não é uma representação apenas de como os auditórios se comportam, mas também de como têm boas razões para se comportar, de como deveriam se comportar: Eles deveriam tratar seu regime de crença de acordo com o princípio da inércia, porque uma teoria que já conta com ampla aceitação, especialmente se já foi testada e aprovada no uso prático, tem a seu favor não apenas razões teóricas de convencimento (as boas razões com que suas teses podem ser defendidas), mas também razões práticas de convencimento (as duas razões adicionais de já contar com ampla aceitação e uso testado e aprovado). É como se, em caso de empate em razões teóricas com a teoria nova concorrente, as razões práticas desempatassem a disputa em favor da teoria já aceita. Então, é como se, num jogo decisivo contra sua desafiante, ela jogasse pelo empate. À desafiante não resta outra saída que não vencer, e vencer requer se desincumbir do referido duplo ônus de argumentação. Portanto, para Perelman, um auditório que se serve do princípio da inércia é mais racional que um que não o fizesse.

Na minha opinião, existe um sentido aceitável e outro inaceitável do princípio da inércia de Perelman. O sentido aceitável é de como as teorias desafiantes devem pressupor (ao nível de hipótese tomada como verdade) que o auditório as tratará em comparação com a teoria já aceita. Neste caso, ele é uma espécie de ficção heurística útil, voltado para uso regulativo: a ficção de que o auditório se comportará em conformidade com o princípio da inércia obriga toda teoria desafiante a fazer um duplo esforço de convencimento, dando ao seu auditório boas razões não apenas para aceitá-la em si mesma, mas também para aceitá-la de preferência à teoria que o auditório aceitava até então. Isso é útil para o livre jogo de ideias, porque ajuda o auditório a se decidir entre concorrentes não apenas em vista das boas razões que existem para aceitá-los, mas também das boas razões que existem para rejeitá-los. Ao atacar a teoria dominante e obrigar esta a se defender de volta, a teoria desafiante amplia a percepção do auditório sobre boas razões para dar uma chance a novas teorias, não apenas àquela mesma que lançou o desafio, mas a qualquer outra que o faça com igual competência. Ao tornar a adesão a teorias (aceitas ou desafiantes) uma matéria mais governada por razões do que por motivos pré-racionais (intuições, preferências e inclinações), a teoria desafiante contribui para o esclarecimento do auditório. Se o princípio da inércia, adotado como hipótese de trabalho, como ficção heurística, consegue produzir este resultado, desta forma conquista também sua justificação. Dar preferência ao já aceito e duplo ônus ao desafiante produz mais esclarecimento do que lhes dar o mesmo ônus desde o princípio.

Mas há também um outro sentido do princípio da inércia, que Perelman endossa e que, de minha parte, considero inaceitável. Perelman considera, como expliquei acima, que o princípio da inércia prescreve não apenas o modo como as teorias desafiantes devem pressupor que o auditório se comportará, mas também o modo como o auditório de fato deveria se comportar. Para Perelman, o auditório que se comporta conforme o princípio da inércia é mais racional que um que não o faz. Este sentido, em contraposição ao anterior, que é regulativo, chamarei de prescritivo. (Esta distinção não é de Perelman, e sim minha. Perelman parece considerar que os dois sentidos caminham juntos e decorrem um do outro. Por isso não os distingue.) No sentido prescritivo, o princípio da inércia é um padrão a ser adotado na escolha entre teorias rivais. Em caso de empate de razões, um auditório racional deveria dar preferência à teoria já aceita. Isso cria uma vantagem real e injusta em favor da manutenção do status quo teórico: Enquanto a teoria já aceita não tem que provar que resiste às críticas e que é superior a todas as demais, as teorias desafiantes têm que provar primeiro que há boas razões para rejeitar a teoria já aceita e depois que há boas razões para aceitá-la de preferência à teoria já aceita. Se um auditório seguisse esse padrão, acabaria persistindo por longo tempo convencido de teorias já aceitas que estão longe de serem comprovadamente superiores até que uma teoria desafiante de tipo comprovadamente superior surgisse para desbancá-la. A teoria aceita gozaria do privilégio de ter chegado primeiro, isto é, de ter sido conhecida e empregada antes.

Nem mesmo o argumento das razões práticas que vêm a socorro das razões teóricas em caso de empate bastaria para dar a este comportamento justificativa bastante: Se a teoria desafiante ainda não foi testada e não foi aprovada (nem, frise-se, reprovada) na prática, então, não sabemos se, caso testada, ela se sairia melhor ou pior que a teoria já aceita. Não estamos dando preferência a uma teoria por razões práticas porque já sabemos que, no aspecto prático, ela é superior à concorrente; estamos dando preferência a uma teoria por razões práticas mesmo sem saber se ela é, no aspecto prático, superior ou não à sua concorrente, com base no simples fato de não termos feito o teste e não sabermos o resultado. Trata-se de um argumentum ad ignorantia de tipo pragmático. Esta já testamos e foi bem sucedida, aquela ainda não testamos e, mesmo havendo chance de ela ser mais bem sucedida que a primeira, a simples chance de ela ser menos bem sucedida já funciona como razão para darmos preferência à outra. Este não é, a meu ver, especialmente num ambiente de pluralidade e transformação teórica constante, um padrão de conduta que credencie um auditório como racional.

A meu ver, o resultado verdadeiramente racional surge quando o auditório trata teorias já aceitas e teorias desafiantes em igual condição, mas exige da teoria desafiante que cumpra com seu duplo ônus de argumentação. Isto parece contraditório: Se o auditório as trata em igual condição, porque só a desafiante ficaria com o duplo ônus? Mas o que não se explica num quadro estático se explica num dinâmico. O auditório deve exigir da teoria desafiante que ataque a já aceita e em seguida se mostre superior a ela, mas, assim que a teoria desafiante de fato o fizer, o duplo ônus deve ser transferido para a teoria já aceita. Agora é esta que tem que não apenas defender-se dos ataques da desafiante, mas também contra-atacá-la, mostrando por que deve seguir sendo considerada superior à concorrente. Se o fizer, novamente, o duplo ônus se transfere para a desafiante, e assim sucessivamente. Desta forma, o auditório consegue maximizar a disponibilidades de razões de aceitação e de rejeição de todas as teorias conflitantes e consegue ampliar o horizonte de racionalidade com que decidirá sua adesão a uma delas.

Por isso, considero fundamental que, no sentido regulativo, como ficção heurística útil, o princípio da inércia seja mantido e respeitado, mas, no sentido prescritivo, como padrão de conduta para auditórios racionais, ele seja rejeitado na forma estática (o duplo ônus cabendo sempre e somente à teoria desafiante) e seguido apenas na forma dinâmica (o duplo ônus se transferindo, como movimentos de um jogo de xadrez ou como a bolinha num jogo de tênis, de um lado para o outro, assim que cada um se desincumba de sua parte). Obrigar todas as teorias a fornecerem o máximo de razões de aceitação e de rejeição, aumentando o espaço de razões com que tomar sua decisão é, este sim, o padrão a ser exigido de um auditório verdadeiramente racional.

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