Explicando “Direito e Democracia” (4B-I): A Tensão entre Facticidade e Validade no Interior da Linguagem
Depois de
certo tempo (ok, muito tempo), retomo as postagens sobre Direito e Democracia, de Habermas. Havia parado na primeira
parte da explicação sobre a tensão entre facticidade e validade, em que
decompus a ideia de “tensão” em quatro teses distintas, a saber, as teses da
oposição complementar, da satisfação simultânea, da dependência recíproca e da
limitação recíproca. Agora que já sabem o que Habermas quer dizer com “tensão”,
passo à segunda parte da explicação, referente a como ele chega aos polos da
tensão, isto é, como identifica que liberdade e coerção, de um lado, e
positividade e legitimidade, do outro, são os assentos apropriados de
facticidade e validade. Isto importa não apenas para entender o método de
Habermas, mas também para estendê-lo a um objeto especifico dentro do direito,
como é o caso de minha tese sobre o processo judicial. Acompanhando a exposição
de Habermas no Cap. I da obra, a compreensão adequada deste tema exige que
passemos por três pontos: (I) a tensão entre facticidade e validade no interior
da linguagem; (II) a liberação da tensão entre facticidade e validade no mundo
da vida de sociedades modernas; e (III) a tensão entre facticidade e validade
no interior do direito positivo. Nesta postagem me dedicarei apenas à primeira,
isto é, à tensão no interior da linguagem.
(I) Tensão entre facticidade e validade no
interior da linguagem (DD 26-35)
No primeiro
ponto, Habermas mostra que a o médium linguístico, portador da racionalidade
após a mudança da razão prática para a razão comunicativa (v. a postagem
3 desta série), é quem traz consigo para as práticas sociais constituídas
linguisticamente no mundo da vida (v. “mundo da vida” na postagem
2 desta série) uma tensão entre facticidade e validade. A tarefa de que
Habermas se desincumbe aqui é dupla: no plano da teoria, trata-se de mostrar
que a guinada linguístico-pragmática na filosofia revela uma ambiguidade
fundamental na linguagem entre idealidade e contexto; no plano da prática,
trata-se de mostrar que as práticas sociais constituídas linguisticamente
recebem da linguagem a propriedade de serem capazes de transcendência imanente
e aprendizado racionalizador ao longo do tempo. Vou explicar este ponto, então,
distinguindo entre os dois planos.
Plano da teoria: Guinada
linguístico-pragmática, idealidade e contexto
Para
Habermas, a centralidade da linguagem é evidenciada na história contemporânea
da filosofia pela mudança de paradigma representada pela chamada guinada
linguística. Como a entende Habermas, a guinada
linguística é uma mudança da forma de fazer filosofia na modernidade,
deixando de concentrar-se no sujeito pensante e nas ideias em sua mente (a
chamada “filosofia da consciência”, o estilo que impera de Descartes a Kant) e
passando a concentrar-se na linguagem com que falamos do mundo, seus
pressupostos, regras e modos típicos de funcionamento (o estilo que impera de
Pierce, Frege e Russell em diante). É o que faz com que se deixe de perguntar
como é possível conhecer o mundo exterior
e se passe a perguntar o que torna devidamente justificada uma
proposição descritiva. É o que faz com que se deixe de perguntar se cumprir um
dever moral requer ou não pureza de intenção e se passe a perguntar sob quais
condições uma regra moral pode ser considerada correta. Não se trata mais de
como um sujeito se apropria do mundo ou intervém sobre ele, mas de como
enunciados teóricos e práticos da linguagem podem falar dele validamente.
Seguindo
uma historiografia tradicional, Habermas atribui o impulso inicial da guinada
linguística a uma reação contra o psicologismo. O psicologismo, no caso, era
uma tendência, que se tornou influente no fim do Séc. XIX, de supor que o
conhecimento das leis que regem a mente humana explicaria a lógica, a
matemática, a física e mesmo a ética. A ideia era que, se a cognição humana
dependia de suas sensações e de sua mente e a ação humana dependia de sua
volição e de seu autocontrole, então, ao explicar o mecanismo de tais processos
psicológicos se teria a chave de explicação de todo o restante.
A reação
contra isso, com Frege, começa pela distinção entre representação e pensamento.
Representação é o fenômeno de pensar algo, mas pensamento é o conteúdo e
sentido desta representação. Se João e Pedro pensam que está chovendo lá fora
neste momento, então, João e Pedro, embora tenham tido cada um sua respectiva
representação, tiveram, contudo, o mesmo pensamento. João pode ter pensado que
estava chovendo porque ouviu pingos d’água contra a janela de seu quarto,
enquanto Pedro pode ter pensado o mesmo porque ouviu a informação de alguém que
acabara de chegar da rua. As representações mentais de João e de Pedro teriam,
portanto, processos de formação (inferência por indícios e crença no
testemunho) completamente diferentes. Mas, o pensamento de ambos seria o mesmo.
E, o que é mais importante, este pensamento, passível de verdade e falsidade,
será verdadeiro não em função de como a crença de que estava chovendo se formou
na mente de cada um, mas exclusivamente em função de se está ou não chovendo lá
fora. O que é verdadeiro ou falso em ambos os casos não são as respectivas
representações, mas seu idêntico conteúdo e sentido, isto é, o pensamento.
Nosso conhecimento é uma coleção de pensamentos, e não de representações. Por
isso, as leis de como se formam nossas representações nada têm a dizer sobre a
verdade ou falsidade de nossos pensamentos.
Como isso
se relaciona com a linguagem? De modo direto, porque a linguagem registra em enunciados nossos pensamentos. Vejam que
isso é diferente de dizer que ela registra em enunciados nossas representações.
Esta última afirmação significaria que, ao dizer “Chove lá fora”, João expressa
em palavras sua representação, isto é, o fenômeno mental de que acredita que
chove lá fora. Mas não é isso. Ao dizer “Chove lá fora”, João enuncia que se
trata de um fato no mundo que agora chove lá fora. Ele expressa algo sobre o
mundo, algo que qualquer outra pessoa pode também pensar, verificar, concordar
ou discordar etc. Ele registra em palavras um pensamento, e não uma
representação. Isto é assim porque o que dizemos por meio da linguagem são
enunciados cujo sentido não depende dos eventos em nossas mentes privadas e
individuais, e sim de conceitos publicamente disponíveis e de regras
socialmente compartilhadas. Dedicar-se à linguagem é uma forma de libertar o
exame do pensamento das armadilhas psicológicas do foco na representação.
Quanto mais nos perguntamos sobre como pensamos em coisas (nas leis naturais de
nossa mente), mais nos concentramos em nossas representações; quanto mais nos
perguntamos como sobre como falamos de coisas (nas regras sociais de nossa
linguagem), mais nos concentramos em nossos pensamentos. Se nosso conhecimento
é uma coleção de pensamentos, e não de representações, o melhor modo de falar
sobre conhecimento é concentrar-se na linguagem. Por isso, transferir foco da
representação para o pensamento produz a guinada linguística. Daqui para
frente, sempre que falarmos de enunciados na linguagem, devemos pensar neles
como portadores de nossos pensamentos.
Agora, o
segundo passo, relativo à teoria da verdade. Ele advém como desenvolvimento
quase natural do primeiro: Se enunciados não são verdadeiros ou falsos de
acordo com como se formaram nossas representações, o que os torna, então,
verdadeiros ou falsos? A resposta tradicional é que se trata de seu acordo ou
desacordo com o mundo. “Chove lá fora” é verdadeiro se estiver chovendo lá
fora. O acordo entre enunciado na linguagem e o respectivo fato no mundo
tornaria o primeiro verdadeiro. Esta resposta está na pista certa, mas precisa
de mais desenvolvimento. Na forma apresentada, a resposta não distingue entre
enunciados verificáveis (como “Chove lá fora”) e não verificáveis (como “Deus
criou o mundo em sete dias”), assim como não distingue entre enunciados não
verificáveis devido a limitações empíricas (como “O número de galáxias no
universo é n”) e não verificáveis
devido à natureza de seu conteúdo (como “Os esportes têm mais valor objetivo
que as artes”). Para perceber como estas distinções seriam importantes, basta
trocar a pergunta para: Sob que condições Pedro deveria considerar verdadeiro o
que disse João? Para um enunciado verificável como “Chove lá fora”, a resposta
seria “caso Pedro verifique que o fato descrito é o caso”; para um enunciado
não verificável por limitação empírica como “O número de galáxias no universo é
n”, a resposta seria “Pedro poderá
considerar o enunciado verdadeiro apenas quando houver tecnologia suficiente
para determinar se o fato descrito é o caso, sendo, por ora, indecidível”; já
para um enunciado não verificável pela natureza de seu conteúdo, como “Deus
criou o mundo em sete dias” ou “Os esportes têm mais valor objetivo que as
artes”, a resposta seria “Pedro jamais poderá considerar o enunciado nem
verdadeiro nem falso, porque ele não satisfaz condições mínimas de
verificação”. Só pode ser considerado verdadeiro o enunciado cujas condições de
verificação estão presentes.
Isto levou
certos filósofos a aderirem a uma teoria verificacionista não apenas da
verdade, mas também do sentido. Segundo esta teoria, um falante sabe o sentido
de um enunciado se sabe sob quais condições ele seria verdadeiro, isto é, se
sabe o que teria que ser o caso no mundo para que aquele enunciado estivesse
dizendo a verdade. Se João diz “A parede é branca”, Pedro sabe o sentido deste
enunciado apenas se sabe que ele será verdadeiro caso empregue sua visão
normal, sob luz normal, e, olhando para a parede, verifique que ela é branca.
Se João diz “2 + 2 = 4”, Pedro sabe o sentido deste enunciado apenas se sabe
que ele será verdadeiro caso empregue os axiomas e regras normais da aritmética
e, partindo do número 2 e adicionando a ele mais 2 unidades, obtenha a soma 4.
Disso, que soa bastante intuitivo e aceitável, deriva, contudo, a consequência
de que enunciados cujas condições de verificação não existem ou não são
conhecidas são destituídos de sentido. “Deus criou o mundo em sete dias” ou “Os
esportes têm mais valor objetivo que as artes” não seriam enunciados falsos, e
sim enunciados que, por não poderem ser verificados, não teriam sentido. Isto
leva à concepção positivista de que o que pode ser verificado (geralmente querendo
dizer “verificado pelos métodos e técnicas atualmente disponíveis nas ciências
exatas e naturais”) faz sentido e merece discussão, enquanto o que não pode ser
verificado não faz sentido e deve ser descartado como “metafísico”, em sentido
pejorativo. Isto dá aos enunciados descritivos das ciências exatas e naturais
um privilégio epistêmico absoluto, condenando como carente de sentido boa parte
dos enunciados da religião, da arte, da ética, da política e das ciências
humanas e sociais.
Para
Habermas, esta concepção positivista totalmente implausível resultava do
equívoco de conceber sentido e verdade com ênfase em seu aspecto semântico. Se
distinguirmos, como é tradicional, entre três aspectos do estudo da linguagem,
o aspecto sintático diz respeito às
regras de formação de enunciados dotados de sentido (relação signo-signo), o
aspecto semântico diz respeito às
regras de significação, isto é, de referência de um conteúdo linguístico ao
mundo (relação signo-mundo), enquanto o aspecto pragmático diz respeito às regras de uso da linguagem entre
falantes em contextos e com propósitos concretos e particulares (relação
signo-falante). A pergunta sobre o que teria que ser o caso no mundo para o
enunciado “Chove lá fora” ser verdadeiro é semântica e resulta no tipo de
positivismo linguístico visto acima. Ela deveria ser substituída pela pergunta
pragmática sobre em que condições os falantes que empregam aquele tipo de
enunciado costumam considerá-lo verdadeiro. Pois os enunciados que a teoria
verificacionista exclui como destituídos de sentido são na verdade objeto de
debate racional entre falantes todos os dias, o que quer dizer que tais
falantes não só compreendem o sentido de tais enunciados e os consideram
passíveis de verdade e falsidade, mas também consideram que existem boas e más
razões que podem ser dadas para sustentá-los e que podemos saber quando um
destes enunciados está ou não ancorado em boas razões. Não é a filosofia que
deve decidir se tais enunciados fazem sentido e se fundam em razões; ela deve
constatar que existem práticas sociais em que tais enunciados são empregados
com sentido e sustentados com razões. A filosofia não assume a posição de juíza
das práticas discursivas, e sim de intérprete destas práticas, responsável por
trazer a tona as regras e critérios que estas práticas já empregam. A teoria
verificacionista, com sua ênfase semântica na verificabilidade empírica, impõe
o padrão das ciências exatas e naturais para a linguagem como um todo. É
preciso deixar esta ênfase semântica de lado em nome da ênfase pragmática em
como as práticas discursivas já funcionam, nas regras e critérios com que tais
práticas já trabalham.
Se a
guinada linguística foi uma primeira transição (para fora da filosofia da
consciência), que com a teoria verificacionista do sentido e da verdade assume
uma faceta semântica (guinada linguístico-semântica), agora era necessária uma
segunda transição, em direção a uma guinada
linguístico-pragmática. Habermas aponta como representante desta tendência
a teoria de Pierce sobre a verdade. Para Pierce, as teorias tradicionais
(correspondencial e coerentista) da verdade tomam o caminho errado ao definir a
verdade. Elas se perguntam (com viés semântico) o que significa que uma
proposição seja “verdadeira”. Em vez disso, elas deveriam se perguntar (com
viés pragmático) o que aconteceria se uma proposição fosse verdadeira. Pierce
trabalha a partir desta última pergunta e lhe dá a resposta de que, se uma
proposição (Pierce fala de “teoria”) fosse verdadeira, então, todos os
pesquisadores que estivessem investigando sobre o fato a que ela se refere
convergiriam para ela. Esta “convergência dos investigadores” é a definição
pierciana da verdade. Pierce, contudo, qualifica esta definição com atributos contrafactuais
de idealidade (isto é, com algumas condições que só poderiam ser satisfeitos
num caso ideal): a proposição (teoria) verdadeira é aquela para a qual
convergiriam todos os investigadores caso
dispusessem de tempo e recursos cognitivos e materiais ilimitados. Como
esta definição é demasiado idealizada, ela, para se aplicar aos investigadores
reais, cujos tempo e recursos são sempre limitados, precisa sofrer uma
restrição realista: Conta como verdadeira no
presente a proposição (teoria) para a qual convergem os investigadores atuais em vista do tempo e dos recursos atualmente disponíveis. Isto não quer
dizer que qualquer coisa para a qual convirjam as opiniões dos investigadores é
só por isso verdadeira. A verdade não
é uma questão de mera convergência de opinião, mas de convergência racional de
investigação. Nos termos de Habermas, não é uma questão de mero acordo de fato,
mas de um acordo com base em razões. Não é uma questão de aceitação factual,
mas de aceitabilidade racional.
Portanto, a
questão do sentido e da verdade não pode ser tratada como uma questão de
verificação de fatos no mundo, sob pena de recair nas consequências
implausíveis de um positivismo linguístico. Ela precisa ser tratada como uma
questão de aceitabilidade racional de enunciados em práticas linguísticas
concretas. Ao nos perguntarmos o que torna um enunciado válido, devemos prestar
atenção às práticas linguísticas em que estes enunciados são empregados e nos
critérios e regras com que no interior destas práticas os avaliam os falantes.
Ao fazer isto, desloca-se o exame dos enunciados da relação signo-mundo (que é
semântica) para a relação signo-falante (que é pragmática). Então, o enunciado
“Chove lá fora”, dito de João para Pedro, de fato terá sentido apenas se Pedro
olhar o tempo lá fora e verificar que está chovendo, mas não porque o próprio
sentido do enunciado dependa da verificação, e sim porque, nas práticas em que
um enunciado como “Chove lá fora” é empregado, olhar o tempo lá fora e
verificar que está chovendo é tomado pelos próprios falantes como condição de
aceitabilidade daquele enunciado. Sendo assim, “Chove lá fora” é um enunciado
aceitável, mas outros, que não se refere à descrição da realidade empírica,
também o podem ser. Se João diz a Pedro que amigos verdadeiros importam mais
que dinheiro, Pedro entenderá que João neste caso não se refere a um fato
empírico no mundo, e sim a uma constelação de valores compartilhados pela
comunidade a que ambos pertencem. Contrastando o enunciado de João com esta
constelação de valores, Pedro pode chegar à conclusão de que João tem razão, o
que torna seu enunciado aceitável. Se João diz a Pedro que Deus não pode querer
o mal de nenhuma de suas criaturas, Pedro entenderá que João neste caso não se
refere a um fato empírico no mundo, e sim a um conjunto de pressupostos sobre a
natureza de Deus na religião e na teologia (incluindo sua perfeição moral, que
torna fazer o mal incompatível com ele). Contrastando o enunciado de João com
este conjunto de pressupostos, Pedro pode chegar à conclusão de que João tem
razão, em vista do que seu enunciado é aceitável. Uma vez que se concentre nos
critérios internos às práticas em que os enunciados são empregados, a filosofia
não submeterá todos os tipos de enunciados ao mesmo padrão de sentido e verdade
(por exemplo, o padrão das ciências exatas e naturais, como faz a teoria
verificacionista), mas contemplará a mesma pluralidade de enunciados e de
padrões que se encontra nas próprias práticas que os empregam. (Algo que
Habermas vê materializado tanto na teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein
quanto na teoria dos atos de fala de Austin e Searle, dando, contudo,
preferência a esta última, por considerar que a primeira tem conotação
contextualista e relativista.) Esta primazia das práticas, com conversão da
tarefa filosófica na explicitação de critérios já empregados, é do que de mais
importante se trata quando Habermas fala de uma guinada linguístico-pragmática.
Plano da prática: Práticas sociais,
transcendência imanente e racionalização
Recapitulando
a seção anterior: Frege reage contra o psicologismo distinguindo entre
representações e pensamentos e se concentrando nestes últimos; os pensamentos
se deixam registrar na forma de enunciados linguísticos, o que leva à guinada
linguística; na primeira fase desta guinada, toma-se uma ênfase semântica com a
teoria verificacionista do sentido e da verdade; em vista das implicações
reducionistas e positivistas da guinada linguístico-semântica, parte-se para
uma guinada linguístico-pragmática que, inspirando-se na teoria
convergencialista da verdade de Pierce, assume os critérios internos a cada
prática para determinar o sentido e as condições de aceitabilidade dos
enunciados linguísticos; com isso a melhor versão da guinada linguística fica
assinalada à teoria dos jogos de linguagem e à teoria dos atos de fala,
sobretudo, por razões cognitivistas, a esta última. Certo. Mas e a tensão entre
facticidade e validade, onde fica?
Segundo
Habermas, todo este aprofundamento da guinada linguística revela em cada um de
seus passos uma tensão interna à linguagem: a tensão entre idealidade e
contexto. Nesta ambiguidade, o contexto representa o plano dos fatos que são o
caso (factual), enquanto a idealidade representa o plano das idealizações que
precisam ser assumidas para que aquilo que é o caso seja aceitável
(contrafactual). Por exemplo, na teoria convergencialista de Pierce, a verdade
de uma teoria é definida em função de um fato: a convergência dos
investigadores. Isto aponta para o contexto, perguntando se no contexto os
investigadores convergem ou não para aquela teoria. Mas a convergência sozinha
seria um mero fato, que não daria à teoria nenhuma validade. É preciso que a
convergência de que se fala tenha sido obtida sob condições ideais de
disponibilidade de tempo e recursos ilimitados (idealização), para que se
afaste a hipótese de que a convergência se deva a preconceito, coincidência,
erro ou ignorância e se passe a de fato supor que ela se deve à verdade da
teoria, sendo, então, prova desta verdade (a idealização dota o fato de sentido
de validade). Da mesma forma, se assumirmos a versão modesta e realista,
situada no tempo, da teoria de Pierce, a convergência atual dos investigadores
(fato) prova a verdade da teoria, mas apenas sob a condição (idealização) de
que esta convergência seja produto da melhor investigação a partir dos recursos
disponíveis. Por fim, se nos concentrarmos, como a teoria dos jogos de
linguagem e a teoria dos atos de fala, nos critérios com que os próprios
falantes empregam e julgam enunciados em suas práticas concretas, o acordo dos
falantes (fato) prova a validade do enunciado, mas apenas sob a suposição
(idealização) de que este acordo se funda em razões aceitáveis para todos. Daí
a ênfase não na aceitação, mas na aceitabilidade.
Mas por que
esta ambiguidade ocorre? Ela ocorre porque, ao transitar para as práticas (que
são fatos) como fonte dos critérios de sentido e validade (que são
idealizações), deixa-se de correr o risco de impor critérios ideais que
violentam as práticas e levam a conclusões implausíveis (como a teoria
verificacionista), mas passa-se a correr outro risco, que é o de assumir como
válido qualquer coisa que uma prática concreta trate como tal. Para quem leu a postagem
1 desta série, este duplo risco soará familiar. De um lado, ser tão utópico
que se perca contato com o real e se queira legislar sobre ele; de outro lado,
ser tão realista que se legitime o que quer que seja o caso no mundo como se válido
fosse. Trata-se do mesmo duplo risco que a teoria crítica quer evitar em
comparação com as duas versões da teoria tradicional: utopia abstrata e
realismo legitimador. Mas aqui não é de teoria crítica que se está tratando, e
sim de uma guinada que ocorreu na filosofia analítica tradicional. Ocorre que,
ao transitar para o campo do pragmático, a filosofia analítica também precisou
se ver com o mesmo duplo risco tematizado pela teoria crítica. Eu iria mais
longe e avançaria a seguinte tese interpretativa: este duplo risco é precisamente o ponto de interseção entre filosofia
analítica e teoria crítica que Habermas quer explorar e a partir do qual
considera possível fazer a ponte de comunicação entre as duas. Quando a
filosofia analítica faz sua guinada pragmática, precisa recorrer a uma validade
que não se afaste das práticas e a práticas que não sejam vazias de validade.
Portanto, quando a filosofia analítica faz sua guinada pragmática, ela é
obrigada a pensar como teoria crítica – mesmo que seja quanto a um ponto
específico de sua teorização. Este ponto específico é que permite que os
insights da filosofia analítica sejam levados adiante na forma de teoria
crítica, ou, o que para Habermas é o mesmo, permite reconstruir criticamente os
ganhos da filosofia analítica.
Antes,
porém, de mostrar como Habermas faz isso, deixemos mais claro em que consiste a
tensão entre idealidade e contexto no interior da linguagem. Se João diz a
Pedro: “O gato está sobre o capacho”, ele ao mesmo tempo usa termos que ele
escolheu, reuniu e formulou (fator contexto), mas a partir de sentidos e
segundo regras que todos podem entender, reconhecer e aceitar (fator
idealidade). Este aspecto se parece com a relação entre língua e fala abordada
por Saussure: a fala é o uso individual da língua, que é um depósito de
sentidos e regras disponíveis, mas é a língua que torna possível todas as
falas. Da mesma forma, João ao mesmo tempo se refere a certo gato e a certo
capacho específicos (fator contexto), mas, para isso, emprega termos (“gato” e
“capacho”) que se referem a uma generalidade de seres dotados de
características comuns (“gato” nomeia todo e qualquer gato, “capacho”, todo e
qualquer capacho). Este aspecto se parece com a relação entre singular e geral
abordada por Hegel: só é possível falar do singular usando termos gerais e
limitando seus sentidos ao contexto presente. Existe, portanto, em todo uso da
linguagem, uma relação inevitável entre contexto e idealidade, pois todo
enunciado é um uso particular (contexto) de uma gramática geral (idealidade) e
toda enunciação se refere a certo estado de coisas particular (contexto)
lançando mão de termos gerais universalmente empregáveis (idealidade).
É isso que
permite, por um lado, que João consiga se fazer entender para Pedro, mas
permite também, por outro lado, que Pedro critique o enunciado de João. Senão,
vejamos. Se João diz que o gato está sobre o capacho, e Pedro verifica se este
é o caso, ele pode retornar com vários tipos de crítica ao fato descrito. Ele
pode dizer que aquilo não é um gato, mas um cachorro, ou que aquilo não é um
capacho, e sim um tapete, ou que o gato está na verdade ao lado, e não sobre o
capacho. O que torna isso possível é que “gato”, “capacho” e “sobre” não
significam qualquer coisa que João quiser que signifiquem. Se assim fosse, o
enunciado seria incompreensível e incriticável, pois João poderia estar dizendo
qualquer coisa de qualquer coisa, e Pedro não teria como saber. Mas “gato”,
“capacho” e “sobre” têm sentidos externos à vontade de João, sentido fixados no
mundo da vida social de que Pedro também é parte, o que faz com que Pedro,
lançando mão de tais sentidos, seja capaz de verificar se João descreveu ou não
corretamente o estado de coisas que se apresenta. João, para tornar seu
enunciado inteligível, lança mão da linguagem intersubjetivamente
compartilhada; mas, na contrapartida, se expõe a ser avaliado em seu uso desta
linguagem, isto é, abre para Pedro a possibilidade de examinar se seu
enunciado, à luz dos sentidos compartilhados, corresponde ou não aos fatos. A
rota de ida (do contexto para a idealidade) de ser inteligível só se obtém em
conjunto com a rota de volta (da idealidade para o contexto) de ser criticável.
O contexto, ao recorrer à idealidade para fazer sentido, recebe de volta o ônus
da idealidade, que é ter que ser válido.
Por isso o
enunciado se transforma numa espécie de promessa ou compromisso, como bem
explica a teoria dos atos de fala, de Austin e Searle. Dizer “O gato está sobre
o capacho” é assumir com seu ouvinte o compromisso de que, se ele verificar os
fatos, verá que aquele é o caso e de que, se assim não for, se pode dar razões
que justifiquem o erro ou engano. Dizer
não é mais apenas dizer, é também agir.
Dizer que p é dizer que p é o caso e que se pode dar razões em favor de p.
Pode-se fazer uma analogia com a promessa. Se João tivesse prometido a Pedro
que iria à sua casa jantar hoje à noite, Pedro teria razão para esperar que
João viesse jantar hoje à noite e, se João não vier, Pedro teria razão para
criticar João ou cobrar-lhe uma explicação. É que uma promessa não é apenas um
lance de palavras no ar. Ela cria um elo moral entre promissor e promissário,
um elo moral que dá ao promissor razão para agir e ao promissário razão para
esperar, criticar, cobrar. Do mesmo modo ocorre com atos de fala. Se João diz a
Pedro que o gato está sobre o capacho, Pedro teria razão para acreditar que o
gato está sobre o capacho e, se verificar que não está, para criticar o
enunciado de João e cobrar-lhe uma explicação sobre seu erro. Essa “quase promessa”
contida em todo enunciado recebe o nome de “pretensão de validade”. Todo
enunciado carrega sua pretensão de validade: dizer que p é dizer que p é
válido. E essa pretensão de validade vem acompanhada de um ônus, que é a
justificação racional: dizer que p é válido é dizer que existem boas razões
para aceitar que p. Se alguém problematizar o enunciado feito, o falante deve
apresentar as razões que havia prometido implicitamente que existiam. (Habermas
chama isso de “resgatar discursivamente” o enunciado, isto é, salvá-lo do
naufrágio da crítica empregando o bote flutuante das razões.)
Nestes
aspectos do enunciado como ato de fala também se revela a tensão entre contexto
e idealidade. Primeiro, no nível do conteúdo: Do ponto de vista explícito, o
falante afirma que p (fato, fator contexto), mas, ao mesmo tempo, do ponto de
vista implícito, surge a promessa de razões (valor, fator idealidade). Depois,
no nível do processo: Dizer que p é pedir ao ouvinte que aceite que p (fator
contexto) com base em que p está fundado em razões que seriam aceitáveis para
todos (fator idealidade).
Não é
difícil ver como esta tensão entre contexto e idealidade está presente no
direito. As normas jurídicas são formuladas linguisticamente e, devido a este
fato, usam conceitos gerais e têm pretensões de validade. Pode ser que, do
ponto de vista do contexto, uma sociedade escravista tenha normas que digam “todos
os homens” querendo dizer apenas os homens livres ou homens brancos, mas, do
ponto de vista da idealidade, “todos os homens” se estende inclusive aos
escravos, dando aos abolicionistas base de reivindicação, a partir da norma, contra
aquilo que a norma jamais quis eliminar. Pode ser que, do ponto de vista do
contexto, a norma que protege o domicílio quisesse proteger apenas as
residências privadas, mas, quando se trazem à tona as razões da proteção
(proteção da vida privada e do sigilo legítimo), a norma se torna apropriável
para reivindicar proteção de vários outros espaços (clínicas, escritórios,
garagens etc.) com base nas mesmas razões. A textura aberta, de que fala Hart,
e a apropriação dos direitos pelos excluídos, de que fala a esquerda, são todos
fenômenos que só ocorrem devido à tensão entre contexto e idealidade. E isso
aponta para o último aspecto que quero destacar nesta postagem.
Este
aspecto consiste em que a idealidade produz sobre o contexto uma pressão ou
empuxo adiante. O aspecto ideal força o aspecto contextual a mover-se no tempo,
criando, assim, um mecanismo de avanço e aprendizado. Este movimento adiante a
partir da pressão interna resultante da tensão entre idealidade e contexto
Habermas chama de transcendência imanente.
Como a linguagem só pode falar do contextual se comprometendo com o ideal, ela
permite que se denuncie e cobre o contextual em seus déficits perante o ideal e
ela força o contextual a corresponder mais e mais ao ideal ao longo do tempo.
Noutros termos, ela torna o ideal o único parâmetro à luz do qual o contextual
é aceitável. Isso dá ao ideal uma realidade limitada (ele se realiza no
contextual, mas nunca plenamente) e ao real uma idealidade limitada (ele
corresponde cada vez mais ao ideal, mas nunca plenamente). Este acordo,
necessário mas inalcançável, entre real e ideal faz com que o real se torna
cada vez mais ideal (no sentido de válido) e o ideal, cada vez mais real (no
sentido de existente).
Por isso,
as práticas sociais mediadas linguisticamente são também elas práticas que se
dão em contextos concretos, respondendo a necessidades, circunstâncias e fins
concretos, mas que só mobilizam ações conjuntas de coletividades de indivíduos
quando ligam estes indivíduos sob o signo de uma promessa idealizada. Como a
prática promete corresponder àquela ideia, os indivíduos veem razões para
engajar-se nela e respeitá-la ou promovê-la; mas estas razões cedo deixariam de
existir se constatarem os déficits da prática em relação à ideia sem que a
prática se mova adiante para corresponder à ideia em maior medida. Ao falar
deste processo, Habermas se refere a uma “racionalização das práticas sociais”
ao longo do tempo. Esta racionalização só ocorre porque as práticas são
mediadas pela linguagem e esta, com sua tensão interna entre contexto e
idealidade, força as práticas a se comprometerem com ideais universalmente
aceitáveis e a preencherem mais e mais os intervalos que ainda separam suas
manifestações concretas daquela idealidade.
Isto tem
uma consequência para as instituições sociais (incluindo as jurídicas) que
devemos reter em mente como ponto de partida para o assunto da próxima
postagem. Em qualquer sociedade livre, uma instituição social só se implanta
sob a promessa de que é correta, de que ela incorpora o modo correto de lidar
com certo problema. Em sociedades arcaicas, esta pretensão de correção, ainda
misturada ao elemento do sagrado religioso, se torna imune à crítica dos
participantes. Mas, numa sociedade moderna, que aceita apenas razões de tipo
mundano e acessível a todos, só é possível manter uma instituição social
funcionando e sendo respeitada ou promovida por todos se se renova
constantemente a promessa de que aquela é a instituição correta. O direito
moderno se estrutura a partir da dupla necessidade de, por um lado, tornar certas
práticas e instituições obrigatórias e, por outro lado, cumprir a promessa de
que aquelas práticas e instituições são corretas. A tarefa de ligar real e
ideal de modo dinâmico e racionalizador o direito herda da linguagem e leva
adiante lançando mão de seus próprios recursos. Veremos sobre isso na próxima
postagem.
Próxima
Conversa: Explicando “Direito e
Democracia” (4B-2): A Tensão entre Facticidade e Validade em Sociedades
Arcaicas e Modernas.
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