Entrevista com Kenneth Himma - Segunda Parte
Com algum atraso, publico abaixo a aguardada segunda parte da tradução da entrevista que fiz com o Prof. Kenneth E. Himma, um dos maiores filósofos do direito vivos. (A primeira parte pode ser acessada aqui.) Nesta segunda parte, falamos sobre as teses específicas do positivismo inclusivo que ele defende, sobre as críticas de Dworkin ao positivismo em várias fases de sua obra e sobre os méritos e limites da jurisprudência conceitual. Cada resposta pode bem ser considerada uma aula particular. Como acontece com praticamente todos os textos de Ken Himma, a entrevista jamais perde foco, profundidade e iluminação. Foi um privilégio para mim fazê-la e traduzir as respostas, e agora as oferto a um público mais amplo na forma desta postagem do Blog.
4 – Você tem uma discussão muito viva e constante com seus parceiros de abordagem inclusivista, especialmente Wil Waluchow e Matthew Kramer. O que você apontaria como as principais diferenças da sua concepção em relação a deles sobre o que o positivismo jurídico é e sobre o que ele implica para tópicos como a relação entre direito e moral, a interpretação jurídica, a autoridade jurídica etc.?
Kenneth E. Himma |
4 – Você tem uma discussão muito viva e constante com seus parceiros de abordagem inclusivista, especialmente Wil Waluchow e Matthew Kramer. O que você apontaria como as principais diferenças da sua concepção em relação a deles sobre o que o positivismo jurídico é e sobre o que ele implica para tópicos como a relação entre direito e moral, a interpretação jurídica, a autoridade jurídica etc.?
Eu não acho
que existam muitas posições inclusivistas diferentes, pelo menos a respeito da
posição característica do positivismo inclusivo – i.e. a Tese Inclusivista – de
que é possível que critérios de legalidade incorporem princípios morais.
Há duas
componentes da Tese da Incorporação correspondentes a dois modos como a
validade de uma norma poderia depender de satisfazer algum tipo de teste moral:
(1) uma norma devidamente elaborada e promulgada poderia falhar em ser direito
por falhar em satisfazer as normas morais relevantes; ou (2) alguma norma, que
não foi nem devidamente elaborada por uma legislatura nem declarada por um
juiz, é direito apenas em virtude de reproduzir o conteúdo de algum princípio
moral. (1) expressa a ideia de que é condição necessária para uma norma ser
direito que ela se conforme ao princípio moral relevante; ela expressa, então,
um constrangimento moral ao conteúdo do direito, e chamarei isso de a
Componente de Necessidade da Tese Inclusivista. Um exemplo de uma situação em
que a Componente de Necessidade se aplica envolveria alguma norma devidamente
promulgada permitindo algo cruel que contraria as exigências da moralidade;
como a moralidade funciona como um constrangimento do que conta como direito, a
norma é inválida porque seu conteúdo é inconsistente com as normas relevantes
de moralidade.
Em contraste, (2) expressa a tese de que
alguma norma não promulgada pode ser direito em virtude simplesmente de
reproduzir o conteúdo da moralidade. Assim, de acordo com o que chamarei de
Componente de Suficiência, há sistemas jurídicos conceitualmente possíveis em
que é uma condição suficiente para uma norma ser juridicamente válida que ela
reproduza o conteúdo de algum princípio moral. A Componente de Suficiência
permite, então, que uma norma não promulgada possa ser válida em virtude de seu
conteúdo moral, enquanto a Componente de Necessidade sustenta que há sistemas
juridicamente possíveis em que é condição necessária para uma norma ser válida
que seu conteúdo seja consistente com certo conjunto de normas morais.
Vale notar
que no positivismo inclusivo a moralidade funciona como constrangimento à
legalidade em sistemas jurídicos que tornam a conformidade com a moralidade uma
condição necessária de legalidade do exato mesmo modo como ela funciona como um
constrangimento à legalidade no jusnaturalismo forte. A diferença é que no
jusnaturalismo forte a moralidade funciona desse modo em todo sistema jurídico
conceitualmente possível, enquanto, para o positivismo inclusivo, há [apenas]
alguns sistemas jurídicos conceitualmente possíveis em que a moralidade
funciona deste modo.
Um
positivista inclusivo pode sustentar ambas ou apenas uma daquelas componentes.
Jules Coleman sustentou ambas em certa época, e eu sustento ambas as
componentes e, portanto, subscrevo ao que Coleman chamou de Tese
Incorporacionista, que resumo a Tese Inclusivista em termos de componentes de
suficiência e de necessidade:
A Tese
Incorporacionista: Existe um sistema jurídico conceitualmente possível em que
há normas não promulgadas que são válidas em virtude de reproduzirem o conteúdo de um princípio
moral e existe uma sistema jurídico conceitualmente possível em que normas
promulgadas são inválidas em virtude de violarem certas normas morais contidas
na regra de reconhecimento.
Penso que
Matthew Kramer e Wil Waluchow sustentam apenas o componente de necessidade da
tese inclusivista. Até onde sei, ninguém ofereceu um argumento para pensar que
apenas um dos dois modos como a moralidade pode funcionar como critério de
legalidade é possível. Na verdade, ninguém produziu, até o momento, um
argumento positivo mostrando que um sistema inclusive é conceitualmente
possível – algo que espero fornecer em meu novo volume a ser publicados pela
Oxford University Press.
Alguns
positivistas inclusivos acreditavam que a tese inclusivista pressupunha a
objetividade da moralidade. Hart expressou essa preocupação, dizendo “se é uma
questão aberta [saber] se princípios e valores morais têm status objetivo, deve
ser também uma questão aberta [saber] se contribuições positivistas brandas
visando incluir a conformidade com eles entre os testes do direito válido podem
de fato ter este efeito ou podem apenas constituir diretivas às cortes para
produzirem direito de acordo com a moral” (CL 254). A preocupação de Hart aqui
é que a Tese da Incorporação pressupõe a objetividade de normas morais (isto é,
que princípios morais têm status objetivo ou são objetivamente verdadeiros).
Hart acredita que normas jurídicas podem constranger a tomada de decisão
judicial apenas se tais normas tiverem conteúdo objetivo (isto é, apenas se
existir uma resposta objetivamente correta ao que a norma requer). Se uma norma
jurídica carece de tal conteúdo, então, não há possibilidade de um juiz cometer
um erro sobre seu conteúdo; assim, fica à disposição do juiz determinar o
conteúdo com base em considerações extralegais. Determinar o conteúdo de tal
norma, então, envolve necessariamente legislar, em vez de apenas julgar. Assim,
se normas morais carecem de status objetivo, então, o único modo, na visão de
Hart, de dar efeito a uma norma jurídica contendo linguagem moral é tratá-la
como direcionando o juiz a exercer sua “discricionariedade para produzir
direito de acordo com seu melhor entendimento da moralidade” (CL 253). Como é
uma questão aberta [saber] se o objetivismo moral é verdade, é uma questão
aberta [saber] se uma regra de reconhecimento pode incorporar critérios morais
de validade.
Não é
difícil ver, contudo, que esta visão é falsa. Considere uma regra de
reconhecimento na sociedade C que valida todas e somente as normas devidamente
promulgadas consistentes com a moralidade, e assuma que o relativismo cultural
normativo é verdadeiro. Se, como o relativismo cultural normativo afirma, o
conteúdo da moralidade em C é constituído pelas convenções sociais de C
relativas ao que é valioso e condenável, então, a regra de reconhecimento em C,
com efeito, simplesmente valida todas e somente as normas devidamente
promulgadas que são consistentes com aquele conjunto de convenções sociais.
Assim concebida, a regra de reconhecimento em C pode vincular os juízos do modo
exato como Hart acredita que normas jurídicas têm que ser capazes de vincular:
as normas de reconhecimento praticadas pelos funcionários exigem de juízes em C
que decidam questões objetivas relativas a normas devidamente promulgadas de um
modo que é consistente com as convenções sociais de C.
A
preocupação hartiana surge apenas na medida em que não há realidade não
subjetiva sobre o conteúdo de uma norma moral. Enquanto um subjetivismo extremo
que torna o conteúdo da moralidade crenças dos indivíduos implica que não há
realidade não subjetiva sobre o conteúdo de uma norma moral, o relativismo
moral normativo não tem esta consequência. Como de acordo com o relativismo
moral normativo, o conteúdo moral é fixado intersubjetivamente por uma
convergência de crenças entre os membros de uma cultura, o que é uma questão de
fato empírico, há uma realidade não subjetiva sobre o conteúdo de uma norma
moral e, por conseguinte, sobre o conteúdo de qualquer direito que incorpore
esta norma.
Versões moderadas do subjetivismo, como o relativismo cultural normativo, não colocam problemas lógicos para a Tese da Incorporação, pois, porque os juízes podem ser – e frequentemente são – legalmente restringidos por normas cujo caráter é puramente convencional. É incontroverso que os juízes são algumas vezes constrangidos por práticas costumeiras de certa comunidade comercial; em tais casos, o juiz é legalmente obrigado a identificar e aplicar as práticas e convenções relevantes. Na verdade, se o positivismo estiver certo, então, a prática judicial é em sua própria fundação constrangida por convenções; a regra de reconhecimento é uma convenção social que define as obrigações jurídicas dos juízes e, dessa forma, constrange a prática judicial. Versões moderadas do subjetivismo são facilmente reconciliadas com a existência de critérios jurídicos de legalidade porque é claro que os juízes podem ser constrangidos por convenções sociais de qualquer tipo – independentemente de ser algum subconjunto daquelas convenções exaure o conteúdo da moralidade, como o relativismo cultural normativo acredita.
As críticas
de Dworkin às doutrinas positivistas de antigamente desempenharam um papel
profundamente influente em formatar o conteúdo da abordagem do direito mais
madura e nuançada do positivismo contemporâneo. Mesmo onde as críticas de
Dworkin construírem equivocadamente os fundamentos do positivismo, elas
ajudaram os positivistas a articularem sua visão com mais detalhe e maior
clareza. Em muitos casos, formulações anteriores de doutrinas positivistas
centrais suscitavam erros de interpretação porque elas estavam vertidas em
linguagem ambígua.
Considere,
por exemplo, um dos primeiros argumentos de Dworkin de que o positivismo não
podia explicar o status de princípios jurídicos como direito na medida em que
não existiria “teste” algum que poderia levar em conta o modo distintivo com
que princípios se aplicam a casos. Na visão de Dworkin, regras funcionam de
modo tudo-ou-nada: “Se os fatos que uma regra estipula estão dados, então, ou
uma regra é válida, caso em que a resposta que ela fornece tem que ser aceita,
ou não é, caso em que ela não contribui em nada para a decisão” (TRS 24). Por
sua vez, princípios expressam valores que tem que ser ponderados em casos
difíceis em comparação com os valores expressos por outros princípios; então,
um princípio “afirma uma razão que aponta uma direção, mas não torna uma
decisão particular necessária” (TRS 25). Os juízes são obrigados a considerarem
princípios, os quais, portanto, contam como parte do direito.
Na visão de
Dworkin, isso cria dois problemas. Primeiro, não pode haver teste que explique
o peso que princípios têm em diferentes casos ou mapeie como eles devem se
aplicar a casos particulares. Assim, o status de princípios como direito não
pode ser explicado por uma regra institucional de reconhecimento porque não há
nenhum algoritmo que determine qual, em qualquer caso particular, de dois
princípios tem maior peso. Segundo, o status de tais princípios de direito não
repousa num ato de promulgação. Em vez disso, o Dworkin daquela época explica a
autoridade de princípios jurídicos em termos de aceitação pública e
profissional: “A origem [dos princípios dos casos Riggs e Henninsen] como
princípios jurídicos não se encontra numa decisão particular de alguma
legislatura ou corte, mas num sentido de adequação desenvolvido na profissão e
no público ao longo do tempo (TRS 40). Na visão de Dworkin, então, a autoridade
de tais princípios não pode ser explicada em termos de promulgação oficial:
“Mesmo se princípios retirarem suporte dos atos oficiais de instituições
jurídicas, eles não têm uma conexão simples ou direta o bastante com estes atos
para estruturar esta conexão em termos de critérios especificados por alguma
regra última principal de reconhecimento” (TRS 40).
Embora
nenhuma das duas críticas refute o positivismo, cada uma levantou questões que
precisavam ser esclarecidas pelo positivista. A tese de que a regra de
reconhecimento não poderia acomodar o status dos princípios como direito porque
não poderia haver teste que determinasse o peso de qualquer princípio
particular pressupõe incorretamente que a regra de reconhecimento é um
princípio epistêmico. A regra de reconhecimento explica quais propriedades
constituem algo como direito; ela fixa as condições particulares de existência
para o direito numa sociedade. Isso não implica que possamos prontamente
identificar cada aplicação particular do direito; talvez, algumas das
propriedades que constituem uma norma como direito não sejam facilmente
identificáveis. Mas, enquanto a crítica falha neste sentido, ela chama atenção
para uma ambiguidade importante a respeito do papel da regra de reconhecimento.
Enquanto Dworkin concebeu a regra de reconhecimento como preocupada em fornecer
um teste para identificar o direito, o positivismo a concebe como explicando o
que faz de algo direito.
De modo
semelhante, a segunda crítica, de que princípios não são válidos em virtude de
terem sido promulgados, levou ao positivismo inclusivo. A crítica de Dworkin
pressupunha que as normas poderiam ser direito apenas em virtude de promulgação
formal e, por conseguinte, igualava o positivismo ao que hoje é conhecido como
positivismo exclusivo. Positivistas, como Hart, David Lyons, Wil Waluchow e
Jules Coleman, responderam concedendo que uma regra de reconhecimento pode
incorporar princípios ao direito inteiramente em virtude de seu conteúdo. Isso
deu início, é claro, à disputa entre positivismo inclusivo e exclusivo, um dos
mais importantes debates do final dos anos 90 e início dos anos 2000.
A
insistência de Dworkin de que o positivismo inclusive não é absolutamente uma
forma de positivismo jurídico é menos útil. É difícil saber exatamente por que
ele pensa isso. Às vezes me parece que ele pensa que o positivismo inclusivo é
indistinguível do seu interpretativismo, mas isso é falso. O positivista
inclusiva afirma apenas que é possível ter critérios morais de legalidade; o
positivista não afirma que é necessariamente verdade que sistemas jurídicos têm
critérios morais de legalidade. Dworkin parece acreditar que é necessariamente
verdadeiro que o direito em todos os sistemas jurídicos inclui princípios
morais que mostram leis e decisões judiciais sob sua melhor luz. Essas são duas
visões radicalmente diferentes. Para Dworkin, está na natureza do direito que o
direito contém critérios morais de legalidade; para o positivista inclusivo, a
natureza do direito é compatível com haver critérios morais de legalidade, mas
nada na natureza do direito implica que [tais critérios] existem.
Dworkin
também argumenta que o positivismo inclusivo pressupõe um compromisso com o
objetivismo moral e é, portanto, inconsistente com a afirmação da Tese da
Separabilidade de que “o status objetivo de proposições do direito [é]
independente de qualquer teoria moral controversa seja da metaética seja da
ontologia moral” (TRS 349). Tal como Dworkin a vê, a Tese da Separabilidade
“promete uma separação ontológica entre direito e moral” (TRS 348-9). Nesta
visão da Tese da Separabilidade, não pode haver nenhuma sobreposição entre
questões sobre a existência de qualquer padrão ou instituição relacionada ao
direito e questões sobre moralidade. Qualquer interseção entre validade
jurídica e moral, até mesmo ao nível da descrição contingente, violaria a Tese
da Separabilidade, assim construída, porque questões sobre se um padrão é
juridicamente válido são questões ontológicas sobre se aquele padrão, por assim
dizer, existe como direito.
Essa linha
de crítica interpreta erradamente a versão de Hart da Tese da Separabilidade.
Tal como Hart expressa esta tese, “não é em nenhum sentido uma verdade
necessária que as leis reproduzem ou satisfazem certas demandas de moralidade,
embora de fato elas frequentemente o façam” (CL 185-6). A articulação de Hart
da Tese da Separabilidade é mais fraca que a versão de Dworkin num aspecto
importante: enquanto Dworkin interpreta a Tese da Separabilidade como
implicando que não é possível haver constrangimentos morais à validade
jurídica, Hart a interpreta como implicando apenas que não é necessário haver constrangimentos
morais à validade jurídica.
As críticas
tardias de Dworkin são de algum modo ainda menos úteis. O argumento de Dworkin
do aguilhão semântico em O Império do
Direito visa refutar todas as assim chamadas teorias semânticas do direito
que explicam o conceito de direito a partir de “regras compartilhadas... que
estabelecem critérios que fornecem o sentido da palavra [“direito”]” (LE 31).
Dworkin acredita que teorias semânticas pressupõem erradamente que o desacordo
significativo é impossível a menos que “todos aceitemos e sigamos os mesmos
critérios para decidir quando nossas pretensões são corretas, mesmo que não os
possamos formular claramente, como um filósofo esperaria fazer, quais são estes
critérios” (LE 45). Com base nesta pressuposição equivocada, duas pessoas cujos
conceitos de direito diferem não podem estar discordando sobre a mesma coisa.
Teorias semânticas do direito falham, na visão de Dworkin, porque a presença de
desacordo radical sobre os fundamentos do direito mostra que o conceito de
direito não pode ser explicado em termos de critérios compartilhados. Se o
positivismo é uma teoria semântica do direito, então, a presença de tais
desacordos implica que o positivismo é falso.
Na visão de
Dworkin, casos de apelação [isto é, decididos por cortes superiores] comumente
envolvem desacordo radical. Dworkin cita Riggs v. Palmer [que Dworkin chama de
“caso Elmer”] como um exemplo de tal caso. Em Riggs, a corte considerou a
questão de se uma pessoa poderia herdar a partir do testamento de alguém que
ela assassinou. Francis tinha deixado pequenos legados para cada uma de suas
filhas, com o resto de sua propriedade indo para o neto Elmer. Quando Francis
casou novamente, Elmer o assassinou para assegurar que os termos do testamento
não seriam modificados. As filhas de Francis então entraram com ação com vista
a impedir que Elmer herdasse conforme o testamento.
À época em
que o caso foi decidido, a lei de testamentos estabelecia que “nenhum
testamento escrito, exceto nos casos abaixo mencionados, e nenhuma parte dele,
será revogado ou alterado de outra maneira”. Pelos seus próprios termos, então,
a lei de testamentos fornecia os únicos fundamentos pelos quais uma corte
poderia recusar-se a fazer cumprir os termos de um testamento. E em nenhuma
parte a lei proibia um assassino de herdar a partir do testamento de sua
vítima. Como a lei estabelecia os únicos fundamentos para recusar fazer cumprir
um testamento e como não proibia expressamente que um assassino herdasse do
testamento de sua vítima, a doutrina da supremacia legislativa parecia requerer
da corte que desse a Elmer sua parte assegurada pelo testamento do avô. E essa
foi exatamente a posição que o juiz Gray tomou no voto dissidente: “Estamos
vinculados pelas regras rígidas do direito, as quais foram estabelecidas pela
legislatura... Os termos da lei são: ‘nenhum testamento escrito, exceto nos
casos abaixo mencionados, e nenhuma parte dele, será revogado ou alterado de
outra maneira’ etc. Toda vez que, portanto, nenhum dos casos mencionados é satisfeito
pelos fatos, e a revogação não está na forma descrita nesta seção, a vontade do
testador é inalterável”.
Na visão do
juiz Gray, as cortes estão vinculados a promulgações legislativas não ambíguas
mesmo quando elas ditam resultados questionáveis. No entanto, a corte recusou
permitir que Elmer herdasse do testamento, com o fundamento de que permiti-lo
herdar seria inconsistente com o princípios de que nenhuma pessoa se
beneficiará de seus próprios erros [atos violadores]: “Não precisamos... nos
perturbar muito pela linguagem geral contida nas leis... Todas as leis, tais
como todos os contratos, podem ser controlados em sua operação e efeito por
máximas gerais e fundamentais do direito comum. Não será permitido a ninguém
beneficiar-se de sua própria fraude, ou tirar proveito de seu próprio erro, ou
fundar qualquer pretensão em sua iniquidade, ou adquirir propriedade por seu
próprio crime”. Como Dworkin aponta, a corte decidiu o caso dando mais peso ao
princípio normativo do que à regra jurídica com que ele conflitava: “a corte
citou o princípio de que ninguém pode se beneficiar de seu próprio erro como um
padrão de pano de fundo sob o qual ler a lei dos testamentos e, deste modo,
justificou uma nova interpretação da lei” (TRS, 29). Na visão de Dworkin, a linha
de defesa que Coleman tomou contra a crítica mais antiga [de Dworkin] não será
bem sucedida em resgatar o positivismo do aguilhão semântico porque o desacordo
em Riggs foi sobre um caso central: “Os vários juízes que argumentaram sobre o
caso exemplificado não achavam que estavam defendendo teses marginais ou
fronteiriças. Seus desacordos sobre legislação e precedente eram fundamentais;
seus argumentos mostravam que eles discordavam não apenas sobre se Elmer
deveria receber sua herança, mas sobre por que qualquer ato legislativo, até
mesmo códigos de trânsito e alíquotas de impostos, impõem os direitos e
obrigações que todos concordam que eles impõem. Eles discordavam sobre o que
torna uma proposição jurídica verdadeira não apenas na margem, mas no núcleo
também” (LE, 42-3).
Na visão de
Dworkin, os juízes em Riggs não estavam tendo uma disputa fronteiriça sobre
alguns critérios compartilhados. Em vez disso, estavam tendo um desacordo sobre
o próprio status de alguns critérios putativamente fundamentais: a maioria
acreditava, enquanto a dissidência negava, que as cortes têm poder de modificar
atos legislativos não ambíguos. Posto de outro modo, a maioria e a dissidência
discordavam sobre se a proposição de que as cortes podem modificar atos
legislativos não ambíguos pertence aos critérios de validade jurídica. Se
Dworkin estiver correto, os juízes em Riggs estavam tendo um desacordo central
sobre os critérios de validade jurídica.
O desacordo
teórico em casos centrais como Riggs é inconsistente com teorias semânticas do
direito, na visão de Dworkin, porque ele mostra que critérios compartilhados
não exaurem as condições próprias para a aplicação do conceito de direito.
Pois, entre os juízes do caso Riggs, a maioria e a dissidência estavam tendo um
desacordo sensato sobre o direito mesmo que se focasse num caso central
envolvendo os critérios de validade jurídica. Assim, Dworkin conclui, o
conceito de direito não pode ser explicado pela assim chamada semântica criterial.
Na medida em que a tese do pedigree do positivismo tenta explicar o conceito de
direito em termos de tal semântica, ela falha enquanto teoria do direito. Deste
modo, o aguilhão semântico de Dworkin pode muito bem ser resumido como segue:
(1) Teorias semânticas do direito são inconsistentes
com desacordo central sobre o direito entre praticantes competentes.
(2) O positivismo é uma teoria semântica
do direito.
(3) Logo, o positivismo é inconsistente com
desacordo central sobre o direito entre praticantes competentes.
(4) O caso Riggs envolveu desacordo
central sobre o direito entre praticantes competentes.
(5) Logo, o positivismo é falso.
Os
positivistas parecem ter aceito como estabelecido que a análise de Dworkin de
casos como Riggs estabelece a existência de desacordo central sobre o direito e
têm focado seus esforços em refutar a afirmação da premissa (2) de que o
positivismo é comprometido com uma explicação criterial do conceito de direito.
Por exemplo, Timothy A. O. Endicott argumenta que “Hart não tinha uma teoria semântica
criterial – ou qualquer teoria semântica que seja, se uma teoria semântica é
uma abordagem explicativa geral do que torna a aplicação de uma expressão
correta” (HHSS). Da mesma forma, Joseph Raz argumenta que “Dworkin estava errado em
pensar que Hart e outros estavam preocupados com o sentido da palavra ‘direito’”
(TV 250). Com efeito, então, Raz e Endicott rejeitam ambos a caracterização de
(2) do positivismo como uma teoria semântica.
Note, mais
uma vez, que o aguilhão semântico não alveja tanto uma teoria particular do
direito, mas uma metateoria particular aplicada ao direito. A pressuposição faz
uma afirmação geral sobre comunicação: duas pessoas cujos conceitos diferem não
podem estar se comunicando em nenhum sentido genuíno, de modo que qualquer
desacordo entre elas não pode ser significativo. Nesta visão, então, a única
maneira de explicar o desacordo significativo sobre algum tópico particular é
supor que “todos aceitamos e seguimos os mesmos critérios para decidir quando
nossas afirmações são corretas”. O que se segue dessa metateoria é a ideia
bastante peculiar de que, à primeira vista, nada tem a ver com o positivismo:
todos os nossos conceitos podem ser explicados em termos de critérios
compartilhados de aplicação.
É
importante perceber que a afirmação de que um conceito pode ser explicado
criterialmente faz uma afirmação metafísica e uma afirmação empírica. Como Raz
a descreve, a explicação criterial de um conceito “(1) estabelece uma regra
fixando condições para o uso (correto) de um conceito; e (2) é uma explicação
verdadeira em virtude do fato de que é um formulação correta das condições para
o uso correto do conceito realmente usadas pelos que o usam” (TV 259). A
afirmação empírica é que aqueles que usam o conceito compartilham critérios
para o uso correto do conceito; na verdade, como Dworkin o descreve, o projeto semântico
é “o projeto de desenterrar regras compartilhadas a partir de um estudo
minucioso do que (as pessoas) dizem e fazem” (LE 43). A afirmação metafísica é
que aqueles critérios compartilhados para o uso correto do conceito constituem
os critérios corretos para o uso apropriado do conceito. A ideia de que todos
os conceitos têm que ser explicados criterialmente faz uma afirmação empírica
implausivelmente forte, a saber, que existem critérios compartilhados para o
uso correto de todo conceito.
A ideia de
que todos os conceitos têm que ser explicados criterialmente é uma teoria
estranha de ser atribuída ao positivismo – ou, para falar a verdade, a qualquer
teoria visando ser apenas uma explicação conceitual do direito. Mas os
positivistas têm sido bastante mistificados pela atribuição por Dworkin ao
positivismo da tese mais específica de que o conceito de direito tem que ser explicado
criterialmente. Por exemplo, em passagens que revelam perplexidade e irritação,
Hart nega tanto que sua teoria é uma teoria semântica quanto que ela pressupõe aquela
explicação sobre o que torna desacordo possível: “Nada no meu livro ou em
qualquer outra coisa que eu tenha escrito dá suporte [a uma explicação semântica]
da minha teoria. Assim, minha doutrina de que sistemas jurídicos estaduais desenvolvidos
contêm uma regra de reconhecimento especificando os critérios para a
identificação das leis que as cortes têm que aplicar pode estar errada, mas em
ponto algum eu baseio esta teoria na ideia equivocada de que é parte do sentido
da palavra ‘direito’ que deva existir uma regra de reconhecimento em todos os
sistemas jurídicos, ou na ideia ainda mais equivocada de que, se os critérios
de identificação dos fundamentos do direito não estivessem fixados
incontroversamente, ‘direito’ significaria coisas diferentes para pessoas
diferentes” (CL 246).
Da mesma forma, Joseph Raz acha “surpreendente que Dworkin [tenha visto] a necessidade de argumentar em favor [da tese de que não se pode dar ao direito uma explicação semântica] e ainda mais surpreendente que ele [tenha pensado] que ao fazer isso ele estava refutando as concepções de filosofia do direito endossadas por muitos filósofos que não pensavam a si mesmos como envolvidos na tarefa de explicar o sentido da palavra ‘direito’” (TV 250). Os positivistas geralmente acompanham Hart em caracterizar o positivismo como “uma abordagem descritiva dos elementos distintivos do direito em geral como um fenômeno social complexo” (CL 246). Nesta visão, o positivismo não é uma explicação de como as pessoas aplicam o conceito de direito; em vez disso, é uma explicação do que distingue sistemas jurídicos de outros sistemas de regras sociais.
A
atribuição ao positivismo da tese mais específica sobre o conceito de direito é
duplamente surpreendente, dado que a afirmação empírica sobre o conceito de
direito é obviamente falsa. Na verdade, se o positivismo e o jusnaturalismo
clássico são teorias conceituais do direito, então, a disputa entre eles mostra
imediatamente que não existe um só conjunto de critérios complexos que é
compartilhados por todo mundo que usa o conceito de direito. Pois o
jusnaturalista clássico afirma, enquanto o positivista nega, que existem constrangimentos
morais necessários sobre o conteúdo do direito. Assim, se a verdade sobre as
condições para o uso correto do conceito é constituída pelo acordo sobre um
mesmo conjunto de critérios que exaure aquelas condições, então, nem o
positivismo, nem o jusnaturalismo, nem qualquer outra teoria conceitual do
direito constitui a verdade sobre as condições para o uso correto do conceito
de direito, porque não há um só conjunto de critérios que conquista adesão e
acordo de todos.
6 – De todos os filósofos do direito
contemporâneos, você parece ser aquele mais convencido de que a tarefa da
teoria do direito é quase exclusivamente conceitual. Você pode nos dar um
resumo de por que você pensa que a teoria do direito não deveria envolver
considerações empíricas ou pragmáticas e de onde você pensa que a teoria do
direito se localiza no interior do legado de uma tradição analítica pós-quiniana
que se tornou tão suspeitosa da própria ideia de analiticidade?
Eu discordo
da caracterização de minha visão. Não acho que a teoria do direito consiste
basicamente em questões conceituais. As questões da teoria do direito que são
conceituais são um subconjunto das preocupações da teoria do direito. A
jurisprudência conceitual ou geral está, afinal, preocupada com um número
bastante limitado de questões: Qual a natureza do direito? Quais são as
condições de existência de um sistema jurídico? Qual a natureza da obrigação
jurídica? É uma verdade necessária que todos os sistemas autorizam mecanismos
de aplicação coerciva como uma resposta à não obediência? Qual é a natureza da
autoridade? Se eu olhar apenas para minha biblioteca pessoal, parece que a jurisprudência
conceitual é a única área da teoria do direito, mas eu sou rapidamente
dissuadido desta noção quando entro numa biblioteca de verdade. O fato é, e
você pode ver isso simplesmente olhando websites de faculdades de direito para
ver o que os professores do corpo docente fazem – e não é positivismo jurídico.
Na verdade, quando pessoas do direito me perguntam em que sou especialista, eu
posso ver seus olhos revirarem assim que eu digo “positivismo jurídico”. Eu
descobri, para meu deleite, que dizer estas duas palavras é um modo realmente
polido de acabar com conversas com juristas acadêmicos com que você não queira
conversar. A maioria dos juristas acadêmicos consideram jurisprudência conceitual,
e estou inclinado a concordar com parte deste julgamento, como uma bobagem sem
sentido.
Há,
obviamente, questões empiricamente descritivas em teoria do direito, e estas tendem
a ocupar a maior parte do conteúdo de revistas de direito. Qualquer questão
sobre o que alguma lei requer é uma questão empiricamente descritiva, tal como
qualquer questão de em que princípios gerais os juízes se baseiam e que formam o
fundamento mais profundo de suas decisões. Mas é também verdadeiro que o
movimento realista jurídico, e boa parte do movimento dos estudos jurídicos
críticos e sua progênie estão preocupados com questões empiricamente
descritivas.
Há também
uma variedade de questões normativas em teoria do direito. Aqui a linha entre o
que contaria como “teoria normativo do direito” e o que contaria como “filosofia
política normativa” se torna incerta, mas é apenas uma questão de nomenclatura.
Até onde sei, qualquer questão ocupada com identificar quais leis deveriam, do
ponto de vista moral, ser promulgadas ou qual estrutura um sistema jurídico
deveria, do ponto de vista moral, assumir são mais bem caracterizadas como “teoria
normativa do direito”. Na verdade, penso que o problema geral da legitimidade é
mais bem pensado como “teoria do direito normativa” que como “filosofia
política normativa”; não sei se Joseph Raz concordaria, mas é revelador que ele
tenha uma teoria da autoridade legítima (na forma da sua Tese da Justificação
Normal), que é desenvolvida como parte de um argumento contra o positivismo
inclusivo.
Verdade
seja dita, não estou certo do que fazer da expressão “filosofia política”,
dadas as conotações comuns das palavras “política” e “político”, mas esta é uma
preocupação trivial. Dworkin acreditava, acertadamente, que não existe uma
linha divisória clara entre filosofia do direito e filosofia política, mas ele
diagnosticou equivocadamente o problema subjacente. Onde Dworkin foi um pouco
além, e entendeu as coisas de modo tremendamente errado, foi em sugerir que não
havia uma linha divisória clara entre jurisprudência conceitual e filosofia
política. Há uma razão pela qual a maioria dos juristas acadêmicos não têm
interesse em jurisprudência conceitual, até mesmo aqueles que, como Dworkin, se
especializam em teorias do direito normativas (ou “políticas”, se assim se
quiser). Não posso realmente dar mais do que um breve argumento aqui, mas
acredito que possa defender esta afirmação: você não pode solucionar problemas
morais apenas movendo os conceitos de lugar.
Eis um
exemplo bobo. Saber o conteúdo do conceito de solteiro não lhe diz
absolutamente nada que pudesse ajudá-lo a decidir como solteiros deveriam ou
não se comportar. Eis um exemplo mais sério. Escrevi um paper defendendo o
dualismo mente-corpo de uma crítica que se considerou devastadora desde que a
Princesa Elizabeth da Boêmia chamou atenção de Descartes para ela. A intuição que
é fundamento para o que é chamado de argumento mente-corpo é que parece
impossível para substâncias mentais (ou “almas”) interagir causalmente com
substâncias físicas, porque elas têm propriedades distintas que são, por assim
dizer, causalmente incompatíveis. Almas nem não são sólidas, nem têm massa, nem
se estendem no espaço. Parece tão implausível pensar que almas e corpos
poderiam interagir como seria pensar que você pode brincar de atirar uma bola
para um fantasma. A bola passaria bem por dentro das “mãos” do fantasma.
Meu
argumento foi que as transições para várias formas de fisicalismo são problemas
conceituais que apenas mudam de lugar o problema que o dualista enfrenta. Há
duas formas de fisicalismo: reducionista e não-reducionista. Fisicalistas
reducionistas se comprometem com a afirmação de que não existem coisas tais
como crenças, desejos, preferências, pensamentos e outros estados mentais –
pelo menos não no sentido em que pensamos que eles existem. Eliminativistas
explicitamente fazem essa afirmação, enquanto teóricos da identidade acreditam
que estados mentais e estados cerebrais são idênticos. O custo da transição é
não apenas mover o problema para outro lugar mas criar um problema ainda maior.
Você teria que ser um idiota, ou realmente ter caído prisioneiro de alguma má
teoria ou de maus compromissos teóricos subjacentes, para ter a crença (que, é
claro, não é possível se eles estiverem certos) de que não temos percepções,
sentimentos etc. Nada pode ser mais obviamente falso, até onde sei.
Fisicalistas
não reducionistas aceitam que existem entidades mentais mas negam que elas
tenham algumas das propriedades de substâncias mentais (“almas”), tais como a
propriedade de poderem, em princípio, existir independentemente de corpos.
Esses estados mentais, funções etc. não são substâncias, mas eles também
carecem de solidez, extensão e massa. Não é em nada mais fácil compreender como
essas entidades mentais poderiam interagir causalmente com corpos físicos do
que seria compreender como substâncias mentais poderiam fazê-lo. Na verdade, o
problema – eufemisticamente chamado de problema da causação mental – se torna
potencialmente mais difícil, já que as propriedades de entidades mentais são um
subconjunto das propriedades de substâncias mentais, e não havia nada nas
propriedades peculiares a substâncias que desse causa aos problemas de
compreender a causação mente-corpo.
Mais
próximo de nosso assunto está uma crítica que Dworkin faz ao que ele tomava
erradamente como sendo o compromisso do positivismo com a afirmação de que
juízes têm uma discricionariedade quase legislativa para preencher as lacunas
no conteúdo do direito. Se o positivismo estiver certo, alega Dworkin, então,
casos difíceis são decididos, em essência, por uma peça de legislação judiciária
ex post facto. Pois, se existe uma lacuna no direito, então, o juiz exercita um
poder legislativo para preencher a lacuna com conteúdo novo. Mas esse conteúdo
novo é aplicado a um caso que existia antes do novo conteúdo do direito, e isso
é ilegítimo.
Como Dworkin descreve essa objeção, ao discutir o papel e status jurídicos de regras e princípios: “Duas linhas de ataque aos princípios são paralelas a essas duas abordagens das regras. O primeiro ataque trata os princípios como vinculantes sobre os juízes, de modo que eles estão errados em não aplicarem os princípios quando eles são pertinentes. O segundo ataque trata os princípios como resumos do que a maioria dos juízes “tornam um princípio” fazer quando forçados a irem além dos padrões que os vinculam. A escolha entre essas abordagens afetará, talvez até determinará, a resposta que podemos dar à questão de se o juiz num caso difícil como Riggs ou Henningsen está tentando aplicar direitos e obrigações jurídicas preexistentes. Se tomarmos o primeiro ataque, ainda estamos em condições de argumentar que, como tais juízes estão aplicando padrões jurídicos vinculantes, eles estão aplicando direitos e obrigações jurídicas. Mas, se tomamos o segundo, estamos no terreno extrajudicial nesta questão, e devemos reconhecer que a família do assassino no caso Riggs e o fabricante em Henningsen foram privados de sua propriedade por um ato de discricionariedade judicial aplicado ex post facto. Isso pode não chocar muitos leitores – a noção de discricionariedade judicial tem se infiltrado na comunidade jurídica – mas de fato ilustra um dos mais intrincados problemas que levam os filósofos a se preocuparem com a obrigação jurídica. Se tomar a propriedade em casos como esses não puder ser justificado apelando para uma obrigação estabelecida, outra justificação tem que ser encontrada, e nada satisfatória terá sido fornecido”.
Como Dworkin descreve essa objeção, ao discutir o papel e status jurídicos de regras e princípios: “Duas linhas de ataque aos princípios são paralelas a essas duas abordagens das regras. O primeiro ataque trata os princípios como vinculantes sobre os juízes, de modo que eles estão errados em não aplicarem os princípios quando eles são pertinentes. O segundo ataque trata os princípios como resumos do que a maioria dos juízes “tornam um princípio” fazer quando forçados a irem além dos padrões que os vinculam. A escolha entre essas abordagens afetará, talvez até determinará, a resposta que podemos dar à questão de se o juiz num caso difícil como Riggs ou Henningsen está tentando aplicar direitos e obrigações jurídicas preexistentes. Se tomarmos o primeiro ataque, ainda estamos em condições de argumentar que, como tais juízes estão aplicando padrões jurídicos vinculantes, eles estão aplicando direitos e obrigações jurídicas. Mas, se tomamos o segundo, estamos no terreno extrajudicial nesta questão, e devemos reconhecer que a família do assassino no caso Riggs e o fabricante em Henningsen foram privados de sua propriedade por um ato de discricionariedade judicial aplicado ex post facto. Isso pode não chocar muitos leitores – a noção de discricionariedade judicial tem se infiltrado na comunidade jurídica – mas de fato ilustra um dos mais intrincados problemas que levam os filósofos a se preocuparem com a obrigação jurídica. Se tomar a propriedade em casos como esses não puder ser justificado apelando para uma obrigação estabelecida, outra justificação tem que ser encontrada, e nada satisfatória terá sido fornecido”.
O problema
é que a teoria do direito de Dworkin está sujeita a exatamente o mesmo problema
de equidade (fairness), mas ele é vertido numa linguagem diferente. Mesmo que
não haja lacunas no direito, o caso é “difícil”, na visão do próprio Dworkin,
porque há argumentos persuasivos em ambos os lados da questão. O problema de
equidade (fairness) a que ele dá causa é que parece injusto (unfair) tomar a
propriedade de alguém por fazer algo que o direito não cobre claramente e que parece,
numa linha plausível de raciocínio, estar excluído das exigências do direito. A
promulgação pública do direito é moralmente requerida porque é errado impor
prejuízo a alguém em resposta à violação do direito se o conteúdo relevante do
direito não comunica uma notícia remotamente razoável do que ele requer.
Vale a pena
notar que esse pode ter sido o primeiro argumento que Dworkin usou em favor de
uma tese conceitual que se baseia em princípios morais – e pode ter sido, de um
ponto de vista histórico, o começo de seu comprometimento com a análise
conceitual normativa. Também vale notar aqui que Dworkin está unindo jurisprudência
conceitual e filosofia política – algo que ele depois explicitamente (e
famosamente) endossará depois em O
Império do Direito. Isso, no entanto, é um equívoco sério. Tudo que Dworkin
alcança com o argumento acima, como no caso das transições fisicalistas
discutidas antes, é mover o problema de lugar. Tentar resolver problemas
práticos por meio de movimentos puramente conceituais é como tentar desfazer
uma dobra no carpete apenas apertando-a para baixo: tudo que você vai conseguir
é mover a dobra de lugar. Jamais vi alguém resolver um problema prático fazendo
apenas movimentos puramente conceituais. Mesmo se você adota uma metodologia
conceitual moralmente normativa [como a de Dworkin], ela não fornecerá material
suficiente para fazer o problema desaparecer; ela simplesmente mudará a
natureza do problema – e sem diminuir em nada a sua gravidade.
O modo
correto, penso, de fazer jurisprudência conceitual é a metodologia descritiva
tradicional que Quine rejeita em “Dois Dogmas do Empirismo”. Tenho que
confessar que é difícil para mim entender a motivação para uma metodologia
conceitual moralmente normativa [como a de Dworkin]. Duvido que tenhamos uma
obrigação moral que requeira de nós fazermos isso; tampouco vejo qualquer razão
para pensar que há conceitos [como o de direito] que tenham um caráter
específico que o requeira.
Dworkin
percebe que o único modo de justificar o seu uso de uma metodologia moralmente
normativa é tentar mostrar que o direito é um conceito que tem tal caráter
distintivo – e ele tenta alcançar isso em O
Império do Direito quando ele argumenta que o direito é um conceito “interpretativo”.
Este argumento é insuficiente. Ele toma o conceito de cortesia como um exemplo
de um argumento normativo e pretende estabelecer isso discutindo o modo como
regras (ou concepções de cortesia) mudam. Embora seja verdade que essas regras
mudam, não há razão para pensar que o conteúdo do conceito mude. As regras de
cortesia, para começar, não são regras constitutivas que constroem a jogo da
cortesia do modo como as regras do xadrez são constitutivas e constroem o jogo
de xadrez. Regras não constitutivas podem mudar sem mudar o conceito do tipo de
regra que elas são. Discordamos sobre regras morais o tempo todo, mas isso não
implica que discordamos sobre o conceito de moralidade. Podemos ter tais desacordos,
mas eles são radicalmente diferentes dos desacordos que resultam em mudanças
nas regras de cortesia.
Este é
certamente um problema meu, mas não posso, juro por tudo, ver como a jurisprudência
naturalizada poderia ser pensada como envolvendo seja uma análise do conceito
de direito ou uma análise da natureza do direito. Uma vez que você rejeita a
noção de necessidade e, por conseguinte, a possibilidade de metafísica, é
difícil ver o que você poderia estar fazendo quando afirma estar fazendo a
mesma coisa que caras como eu fazemos. Eis um modo muito interessante de ver o
problema. Brian Leiter argumentou com base numa metodologia naturalizada que o
positivismo exclusivo é verdadeiro. O problema é que ele rejeita a metodologia
conceitual tradicional com base nos argumentos de Quine em “Dois Dogmas”, o que
inclui rejeitar o uso das modalidades “necessidade” e “possibilidade”. Mas o
positivismo inclusive é apenas a tese muito fraca de que é possível haver um
sistema jurídico com critérios morais de validade. Se as pretensões
metodológicas de Leiter sobre uma jurisprudência naturalizada, dada sua conexão
racional com o ceticismo quiniano, forem verdadeiras, não consigo – e, repito,
a falha aqui provavelmente é minha – ver como poderíamos estar justificados até
mesmo em falar sobre o tipo de possibilidade expressa na tese inclusivista.
Textos citados:
HHSS = “Herbert Hart
and the Semantic Sting”, Timothy A. O. Endicott.
LE = Law’s
Empire, O Império do Direito, Ronald
Dworkin
TRS = Taking Rights Seriously, Levando os Direitos a Sério, Ronald Dworkin
TV = “Two
Views of the Nature of the Theory of Law: A Partial Comparison”, Joseph Raz
Mais
importantes artigos de Kenneth E. Himma sobre teoria do direito (com links para acessar o abstract e baixar o texto pelo SSRN):
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