Entrevista com Ronaldo Porto Macedo
[Esta postagem é a segunda de uma série de entrevistas do Blog. Você pode ver as duas partes da primeira entrevista, feita com o Prof. Kenneth E. Himma, respectivamente aqui e aqui.]
Dando
continuidade à agenda de entrevistas do Blog e seguindo o roteiro que tenho em
mente de variar entre pensadores relevantes estrangeiros e nacionais, publico
agora a entrevista que tive o prazer de fazer com o Prof. Ronaldo Porto Macedo.
Para quem ainda não saiba quem é o Ronaldo, talvez o mais importante a dizer
sobre ele é que ele é uma das figuras principais do redespertar brasileiro para
a melhor filosofia do direito que se faz no mundo de língua inglesa. Ele é um
dos representantes da teoria e filosofia analítica do direito no Brasil, e tem
contribuído com artigos, livros e orientações de dissertações e teses para que
cenário jurídico-filosófico brasileiro avance para além da “crítica do
positivismo” e do “Neoconstitucionalismo” em que a reflexão dos anos 2000 o
deixou estacionado.
Se hoje
temos acesso a algumas obras que têm chamado atenção para teorias que no Brasil
estávamos ignorando por dez, vinte ou trinta anos, é em parte também graças à
Coleção “Teoria e Filosofia do Direito”, que o Ronaldo coordenou na editora
Campus Jurídico, da Elsevier. Esta coleção, nos deu uma tradução brasileira
para obras como “Ronald Dworkin”, de Stephen Guest, “A Moralidade da Liberdade”
e “Razão Prática e Normas”, de Joseph Raz, “Fundamentos de Ética”, de John
Finnis, “A Retórica e o Estado de Direito”, de Neil MacCormick, “Contrato Como
Promessa”, de Charles Fried, “O Novo Contrato Social”, de Ian R. McNeil, “Vivendo
Plenamente a Lei”, de Zenon Bankowski, e “Max Weber”, de Anthony T. Kronman. A
coleção coordenada pelo Ronaldo rivaliza apenas com a Coleção “Justiça e
Direito”, da editora Martins Fontes, em importância para a mudança do pensamento
jurídico-filosófico brasileiro.
O Prof. Ronaldo Porto Macedo possui graduação em Direito (1985) e Ciências Sociais (1987), mestrado em Filosofia (1993) e doutorado em Direito (1997), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e Professor de Filosofia Política e Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV. É uma honra para o Blog “Filósofo Grego” apresentar agora a entrevista gentilmente concedida pelo Ronaldo.
O Prof. Ronaldo Porto Macedo possui graduação em Direito (1985) e Ciências Sociais (1987), mestrado em Filosofia (1993) e doutorado em Direito (1997), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e Professor de Filosofia Política e Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV. É uma honra para o Blog “Filósofo Grego” apresentar agora a entrevista gentilmente concedida pelo Ronaldo.
1) Professor, o senhor ensina, publica e
palestra sobre uma série de temas e autores que não são tão comuns ou bem
conhecidos no Brasil. Como o senhor avalia o quadro da filosofia do direito tal
como estudada nas graduações e pós-graduações de direito pelo país? O senhor
acha que existe uma defasagem em relação ao debate contemporâneo no mundo?
Quais seriam os pontos principais desta defasagem?
Creio que
há vários pontos a considerar sobre esta questão da situação da filosofia do
direito no Brasil. Em primeiro lugar, penso que ainda hoje as relações entre a
filosofia acadêmica e as pesquisas em filosofia do direito são incipientes e,
de certo modo, não são satisfatórias se tomarmos como referência a qualidade e
sofisticação teórica da produção dos centros de excelência fora do Brasil. A
história da reflexão filosófico-jurídica no Brasil marcou muito não apenas o
próprio conceito do que é fazer filosofia do direito, como também os padrões
acadêmicos e métodos que devem ser seguidos neste domínio do conhecimento. A
introdução do ensino “acadêmico” da filosofia no Brasil foi, desde o seu início
na década de 1930, destacado do ambiente jurídico. Basta pensar na criação da
faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, uma das primeiras do
Brasil, para compreender este ponto. Fatores políticos e institucionais
contribuíram muito para que as relações entre os departamentos de Filosofia e
Faculdades de Direito das universidades brasileiras, de maneira geral, viessem
a manter uma relação de distanciamento e desconfiança recíprocas. Poucas foram
as exceções. Isto impediu que o diálogo entre Direito e Filosofia pudesse se
estabelecer de maneira mais intensa e fecunda.
Por um
lado, a filosofia do direito praticada por juristas em muitos aspectos
permaneceu provinciana e diletante e, por outro lado, o interesse da filosofia acadêmica
pelas questões jurídico-filosóficas foi relativamente pequeno e pouco orientado
para temas contemporâneos. Isto, dificultou o intercâmbio de ideias e atrasou o
amadurecimento da reflexão jurídico filosófica no Brasil. Diferentemente do que
ocorre em muitos dos principais centros de pesquisa em filosofia do direito no
mundo, no Brasil há relativamente poucos pesquisadores com uma sólida formação
em Direito e em Filosofia. Escrevi um pequeno artigo sobre este ponto que
explora melhor estes argumentos (Remarks
on the Philosophy of Law in Brazil in the Tiwentieth Century).
Um segundo
aspecto a considerar diz respeito ao isolamento da academia jurídica brasileira
com relação a produção filosófico jurídica internacional, em especial a de
matriz anglo-saxã. Ainda hoje a imensa e poderosa produção intelectual gerada
em países como Inglaterra e EUA é pouco conhecida no Brasil. São poucas as
traduções e ainda mais escassas as boas traduções de obras referenciais do
debate mais atual. Ainda temos muita “lição de casa a fazer”, em termos de
produção de boas traduções, reflexões sistemáticas e pesquisa cuidadosa para
que a produção teórica nacional atinja parâmetros de excelência comparáveis à
melhor produção internacional.
Em terceiro
lugar, penso que a produção nacional em filosofia e teoria do direito ainda é
excessivamente voltada para a pesquisa de grandes temas teóricos, dando
relativamente menor importância a temas teórico-filosóficos mais aplicados,
mais associados a temas e problemas enfrentados pelos juristas brasileiros. Em inglês
por vezes (este uso não é uniforme) se utiliza as expressões “Philosophy of
Law” (por vezes também “General Jurisprudence”) para designar a filosofia geral
do direito, que trata das grandes categorias e problemas do conhecimento
jurídico, e “Jurisprudence” , teoria do direito, para referir a um tipo de
reflexão teórico-filosófica mais focada em problemas específicos, práticos e
concretos. Um exemplo desta literatura pode ser encontrada em muitos livros
sobre “Filosofia do direito privado”, “Filosofia da responsabilidade civil”,
etc. Penso que no Brasil a pequena comunidade que escreve e publica sobre
filosofia do direito ainda dá pouca atenção aos temas de “Jurisprudence” em
relação aos temas de “Philosophy of Law”. É claro que as coisas caminham
juntas. Porém, penso que trabalhos sobre teoria do direito brasileiro
constituem um campo privilegiado para a contribuição dos filósofos do direito
no Brasil. Infelizmente, ele não têm merecido a mesma atenção dos nossos
estudiosos, exceção talvez, à produção no campo do direito constitucional. Não
é incomum que nas faculdades de direito sejam produzidas teses sobre temas de
filosofia do direito geral (por exemplo sobre Kant, Aristóteles, Habermas, etc.)
que provavelmente poderiam ser melhor desenvolvidas nas faculdades de
filosofia. Por outro lado, temas de “jurisprudence”, em particular na área do
direito privado, não merecem a mesma atenção dos acadêmicos interessados em
filosofia do direito.
Quero
dizer, contudo, que sou otimista. Penso que estamos revertendo algumas das
amarras que impediam a produção acadêmica mais relevante no Brasil. Aumentou a
oferta de traduções, há progressos no estabelecimento de diálogos mais
sistemáticos e fecundos entre as faculdades de Direito e Filosofia e contamos
com um número crescente de filósofos do direito com formação acadêmica mais sólida
nas duas áreas.
2) A linguagem conceitual com que trabalhamos
filosofia do direito no Brasil é grandemente influenciada por teorias inglesas,
americanas e alemãs. Isso em tese não chega a constituir um problema, porque as
questões conceituais que estão sendo perguntadas são relevantes para o jurista
de qualquer parte do planeta e as respostas oferecidas fazem sentido para
qualquer Estado constitucional democrático de direito do mundo ocidental. O
senhor concorda com isso? A estrutura do pensamento em filosofia do direito
desconhece fronteiras? Ou é necessário produzir, mais do que uma filosofia do
direito bem feita no Brasil, uma filosofia do direito feita à brasileira?
Esta sua
questão se reporta parcialmente à resposta que dei à primeira questão. Penso
que os grandes problemas teórico-filosóficos e os conceitos fundamentais que os
descrevem e expressam gozam de grande universalidade. Neste sentido, a
filosofia do direito (geral) praticada em outros países é fundamentalmente a
mesma que nos interessa no Brasil. No passado algum tipo de retórica
nacionalista e corporativista buscou justificar a existência de domínios
nacionais definidos para as tradições filosóficas. Este esforço exagerado de
afirmação nacional não gerou grandes resultados teóricos.
Por um
lado, penso que as tradições filosóficas somente têm algum significado maior
quando procuramos entender os contextos históricos nos quais as ideias foram
produzidas. Para os historiador das ideias, elas são mais importantes. A
experiência jurídica contemporânea, tanto mais num mundo cada vez mais
globalizado, faz com que os problemas teórico-filosóficos mais gerais
experimentados pelos Franceses, Americanos e brasileiros sejam muito parecidos.
Por outro lado, acredito que há questões de teoria do direito aplicada (jurisprudence) são mais particulares e
podem exigir conceitos e soluções mais ajustadas aos países e contextos
jurídicos nos quais elas ocorrem. Assim, por exemplo, penso que uma filosofia
do direito contratual brasileiro pode e deve apresentar categorias analíticas
similares porém não idênticas aquelas aplicáveis ao direito islâmico ou mesmo
americano. Basta pensar nos limites do conceito do boa-fé no direito contratual
brasileiro e americano para se exemplificar o que quero dizer.
Não
obstante, ao meu ver nada disso justifica, como já se afirmou no passado, que
temos uma Filosofia do Direito genuinamente brasileira. Talvez exista um certo
exagero otimista até mesmo na afirmação de que há uma filosofia brasileira.
Este tema mereceu um artigo muito interessante do Bento Prado Jr. Publicado
alguns anos atrás. Acredito, inclusive, que atualmente há uma interconexão cada
vez mais íntima entre os estilos filosóficos que marcaram as grandes tradições
do passado. Hoje é cada vez mais difícil sustentar que exista uma demarcação
muito clara até mesmo onde antes foi possível encontrá-la. Pensemos num filósofo
como Jurgen Habermas. Ele poderia ser enquadrado pura e simplesmente como um
filósofo da tradição continental? Não são fortes suas conexões com a filosofia
analítica de matriz anglo-saxã? E Dworkin? Como situa-lo? Ele é um herdeiro tanto
da tradição que remonta a Gadamer quanto a Wittgenstein e a filosofia da
linguagem oxfordiana. O fato é que a globalização também intensificou o diálogo
entre as “filosofias” tornando cada vez mais problemático falarmos seriamente
numa filosofia nacional.
Penso que
devemos nos preocupar em fazer uma filosofia do direito com qualidade e rigor
dirigida a problemas relevantes no Brasil. Isto não significa que não valha a
pena estudar os clássicos ou quase clássicos contemporâneos. Na verdade o
esforço exige este estudo mais acadêmico. O importante é não limitar todos os
esforços de pesquisa a mera
“relojoaria de ideias” desinformada dos problemas reais. É importante que
pensemos a reflexão filosófica de maneira associada aos problemas que a
experiência jurídica brasileira apresenta.
3) Com o boom das pós-graduações de direito nos
anos 2000, espalhou-se pelo país uma mentalidade informada pelo agora chamado
Neoconstitucionalismo, que acredita que o positivismo jurídico são águas
passadas, foi de alguma forma morto e enterrado com as críticas que lhe
dirigiram Alexy, no mundo alemão, e Dworkin, no mundo de língua inglesa. O que
o senhor pensa desta imagem do campo da filosofia do direito, que boa parte dos
novos mestres e doutores no Brasil acabam tendo em mente? Quão próxima ou
distante ela está da realidade da filosofia do direito fora das fronteiras do
Brasil?
Acredito
que a rubrica Neoconstitucionalismo
não define nenhum pensamento jurídico-filosófico. Ele integra uma vasta gama de
influências ecléticas que parecem ter como ponto comum o reconhecimento de que
a hermenêutica dos princípios morais deve assumir maior importância no processo
da interpretação e aplicação do direito. Por não ser sequer uma filosofia ou
teoria do direito bem caracterizada, penso que mais o Neoconstitucionalismo define
um plano de ação na prática interpretativa do que um sistema de ideias capaz de
oferecer respostas convincentes a temas clássicos sobre os quais tanto o
positivismo como outras teorias ofereceram construções mais adequadas e
consistentes. Alexy e Dworkin são dois dos filósofos do direito que
efetivamente ofereceram respostas teóricas e desafios importantes para o
positivismo jurídico. A mera invocação pela literatura auto denominada
neoconstitucionalista destes autores não a transforma numa filosofia do direito
relevante, ainda que seja um movimento de ideias que desperta interesse político,
sociológico e cultural.
É
interessante notar que a própria forma pela qual o Neoconstitucionalismo
procura se associar às ideias de Alexy e Dworkin é reveladora do seu
“ecletismo”. Há diferenças filosóficas muito importantes entre estes autores,
em particular no que concerne à metodologia, e que são ignoradas por parte
significativa da literatura associada a esta rubrica. Muitas vezes as referências
aos autores quase chega a criar um referencial teórico hibrido denominado
“Dworkin-Alexy”. Isto porque a “recepção” das ideias destes (e também outros)
teóricos do direito é feita sem os rigores e zelos exigidos pelo esforço
acadêmico sério. Muitas teses de mestrado e doutorado procuram se “apropriar”
das ideias dos filósofos e teóricos como quem passa pela gôndola de um
supermercado para escolher produtos para abastecer sua dispensa. As ideias são
tomadas de empréstimos como meros argumentos de autoridade, desconectadas de
seu contexto de significado, formando um verdadeiro pastiche filosófico mais parecido com os arrazoados forenses do que
com trabalhos acadêmicos. Muitas vezes não passam de doxografia, coleção de opiniões de autores, sem justificação ou
argumentação consistente.
Uma quantidade
relevante destes trabalhos é produzida sem a menor consciência da falta de
humildade filosófica de seus autores. Talvez apenas sejam “possíveis” em face
não apenas do desconhecimento específico dos autores que são citados, mas
também da própria natureza do que deveria ser a reflexão teórica. Em síntese,
creio que a recepção dos autores que você menciona, Dworkin e Alexy em
particular, ainda é feita de forma amadorística e bacharelesca. Estes autores
são importantes e precisam ser estudados seriamente, com método. Neste ponto
penso que os juristas filósofos têm muito a aprender com os filósofos
profissionais, em particular com relação ao método de investigação. Não podemos
continuar a ler Dworkin e Aristóteles como se lia Pontes de Miranda no passado
para se produzir um arrazoado. Temos que lê-los da forma mais próxima possível
pela qual os filósofos continuam a ler os clássicos da filosofia.
Penso que,
de maneira geral, a produção nacional ainda é muito distante daquilo que se faz
nos mais importantes centros internacionais. Contudo, não estamos sozinhos
nisto. Não quero fazer um julgamento leviano e apressado sobre a produção
filosófica no mundo, mesmo porque a desconheço em grande parte, mas acredito
que este não é um cenário que caracteriza apenas a produção brasileira. Na
América Latina em geral algo semelhante ocorre, ainda que seja possível
identificar alguns importantes novos centros de excelência na Argentina,
Colômbia, México e talvez Chile.
O fato é
que o processo de elevação da qualidade da produção acadêmica em qualquer setor
do conhecimento não é tarefa fácil. Ele demanda algum tempo. É necessário
“fazer a lição de casa”, o que envolve, não apenas conhecer bem a produção
feita no exterior (um número crescente de pesquisadores brasileiros complementam
sua formação em programas em centros de excelência no exterior e isto tem
gerado importante impacto na produção nacional), como trabalhá-la, digeri-la
discuti-la em cursos, pesquisas, teses, e também orientar nossas energias
filosóficas para questões que nos importam. Todos estes fronts são importantes. Não basta ter o voluntarismo de querer “Pensar
o Brasil” sem o devido equipamento conceitual, assim como nada justifica que
toda a nossa força reflexiva seja orientada para a relojoaria das ideias
produzidas no Atlântico Norte. É necessária humildade para conhecer e enfrentar
nossas limitações e também certa ousadia para compreender que este esforço deve
ser dirigido a problemas que nos são caros.
4) Acho que devíamos reservar um espaço aqui ao
debate entre Hart e Dworkin. Hart defendeu uma metodologia descritiva e
moralmente neutra, centrada em análise conceitual à luz de práticas que se
descortinam por meio da linguagem e cuja melhor expressão atual se encontra, em
tese, no positivismo inclusivo de Coleman, Waluchow, Himma e Kramer. Já Dworkin
defendeu uma metodologia interpretativista (que estaria além da dicotomia entre
descritivo e normativo), centrada na identificação de conceitos controversos e
na construção de um pano de fundo interpretativo capaz de ajustar-se às
instituições existentes e ao mesmo tempo dar a elas sua melhor justificação
moral. Autores como Stavropoulos e Guest tentam dar continuidade a esta
abordagem. Em sua opinião, qual o legado ainda atual do debate Hart-Dworkin? E
como o senhor se posiciona quanto à alternativa entre descritivo, normativo e
interpretativo? Qual o plano epistemológico apropriado para uma teoria do
direito?
Penso que o
debate Hart-Dworkin ainda é uma porta de entrada muito útil para a compreensão
do debate contemporâneo em teoria do direito. Temos muito a aprender com ele. É
isto que faz dele um debate clássico contemporâneo. Neste ponto entendo que a opinião
de Brian Leiter sobre o seu esgotamento completamente equivocada. Ocorre que
também a compreensão deste debate no Brasil ainda é muito limitada. Por um
lado, poucos são os livros e cursos que o abordam. Por outro lado, com muita
frequência o seu significado e a sua natureza ainda são descritas de forma
bastante superficial. Devemos lembrar também que para bem avalia-lo é
necessário compreender corretamente as próprias ideias de Hart e Dworkin, e
isto, por si só, já é uma tarefa demandante.
Na minha
opinião ele provocou um novo agendamento na forma pela qual o velho confronto
entre positivismo jurídico e jusnaturalismo era pensado, conferindo-lhe um novo
significado metodológico. Colocou também em evidência a disputa sobre a
natureza puramente descritiva ou também normativa da teoria do direito. Por
fim, ao radicalizar algumas linhas do pensamento hermenêutico de Hart, Dworkin
apresentou uma teoria interpretativista do direito destacando o papel do
pensamento jurídico, do processo de justificação moral do direito. Estes temas
provocaram diversas reações da parte dos positivistas e estão presentes no
temas centrais do debate contemporâneo.
Em dois
trabalhos recentes (Do
xadrez a cortesia: Dworkin e o debate jurídico contemporâneo, Saraiva, 2014
e O Direito em desacordo: o debate entre o interpretativismo o convencionalismo jurídico, tese de
titularidade na USP, ainda não publicada) procurei apresentar de forma
aprofundada os argumentos que me convencem da imensa força teórica da
perspectiva interpretativista dworkiniana e da natureza inafastavelmente
normativa da investigação teórico jurídica.
5) Outra temática contemporânea é da
alternativa entre teorias da decisão judicial mais centradas na interpretação e
teorias mais centradas na justificação. A hermenêutica e o interpretativismo
tomam a primeira via e se perguntam que forma de interpretar as regras e
princípios jurídicos faz mais justiça ao que o direito é e pretende fazer. A
tópica, a retórica e as teorias da argumentação tomam a segunda via e se
perguntam quais fundamentações são aceitáveis para decisões jurídicas, tanto no
que têm de dedutivas, quanto no que têm de não dedutivas. A seu ver, qual
dessas vias está num rota teórica mais promissora? Elas devem ser vistas, como
geralmente são, como conflitantes? Qual o modo mais racional de lidar com a
questão da indeterminação e da discricionariedade?
Ao meu ver as
agendas não são necessariamente conflitantes, mas representam perspectivas
bastante distintas sobre a natureza da argumentação jurídica, do raciocínio jurídico
e do pensamento moral. Neil Maccormick em seus últimos trabalhos entende haver
uma forte complementaridade entre estas tradições (por exemplo: Rethoric and rule of law). Ainda que
existam pontos de inegável convergência, não estou tão convencido disto, em
face das diferenças metodológicas importantes que distanciam estas perspectivas.
O interpretativismo de estilo dworkiniano não está preocupado com a estrutura
de funcionamento da argumentação como um pensamento retórico ou ainda como
técnica de persuasão, mas antes com a gramática do pensamento moral do qual o
pensamento jurídico seria um caso particular. Neste sentido, o seu escopo tem
um sentido moral substantivo. Ele envolve um esforço de reconstrução do
pensamento moral e da justiça.
Acredito
que isto faz da vertente interpretativista um projeto teórico muito mais
atraente para a compreensão das práticas jurídicas contemporâneas. É importante
também destacar que há uma leitura das obras da Nova Retórica e da Tópica
que não associa esta forma de pensamento a uma forma de raciocínio prático
substantivo, tomando-o, antes como uma técnica de persuasão e produção de
discursos aptos a gerar formas de consenso. Este tipo de perspectiva tem permitido
até mesmo a sua associação teórica com modelos de pensamento francamente
avessos teorias da razão prática que está ligada a vertente interpretativista,
como o funcionalismo luhmaniano.
Entendo que
a abordagem dworkiniana sobre os desacordos teóricos no direito e na moral mais
convincentes. Contudo, com frequência as ideias de Dworkin sobre o tema e
também sobre a discricionariedade são rejeitadas por leitores que não as
compreendem corretamente. Há razões para isto, pois o assunto é realmente
complexo e repleto de argumentos difíceis e sutis. Uma das confusões
importantes se refere ao fato de que muitos críticos de Dworkin não atentam
para a distinção que ele faz entre objetividade
e certeza. Ao afirmar a tese da
existência da resposta certa, ele não afirma que podemos ter certeza sobre qual
ela é, mas tão somente que é altamente plausível a existência de um critério de
correção baseado na melhor justificação.
6) Gostaria de encerrar esta entrevista
ouvindo-o dizer algo sobre três temas contemporâneos que no Brasil ocupam uma
posição bastante marginal. O primeiro é o renascimento das teorias do direito
natural, com Finnis, Murphy e George. O segundo é o crescimento da
jurisprudência normativa baseada no movimento Law & Economics, já em sua
terceira geração e que tem em Posner seu nome mais forte. E o terceiro é a
proposta de integrar jurisprudência conceitual com investigação naturalista, de
tipo evolucionária e cognitiva, tal como proposta, por exemplo, por Leiter. Se
o senhor pudesse, gostaria que desse uma palavrinha, ainda que breve, sobre como
vê esses três fenômenos que puxam a discussão para fora do legado do debate
Hart-Dworkin.
As três
vertentes teóricas mencionadas (Jusnaturalismo contemporâneo de Finnis e outros,
Análise Econômica do Direito e o Naturalismo Jurídico de Brian Leiter) possuem
natureza, importância e posição relativa diferenciada em relação à agenda do
debate Hart-Dworkin. Penso que a contribuição de John Finnis para o debate
contemporâneo está estreitamente relacionada a diversos dos mais importantes
pontos articulados pelo debate Hart-Dworkin. O seu livro Natural Law and Natural Rights sofreu impacto direto deste debate e
também impactou o trabalho destes dois autores. Finnis contribui seriamente
para o reposicionamento metodológico do debate entre o jusnaturalismo e o positivismo
jurídico, bem como sobre a natureza normativa da teoria do direito.
O movimento
do Law & Economics, como o nome já diz, representa menos uma teoria do
direito do que um movimento de pensamento que convergia para a ideia de tomar a
metodologia de analise econômica e transporta-la para a análise do direito.
Muito embora existam pressuposições teóricas importantes na base do pensamento
dos principais representantes desta corrente de pensamento (que hoje é bastante
diversificada), a sua maior contribuição não se encontra na estruturação de uma
filosofia do direito original. Não é por outro motivo que muitos de seus
principais expoentes, inclusive Richard Posner, acabaram se associando ao
pragmatismo jurídico na medida em que se engajaram nos debates e questões
próprios da teoria e filosofia do direito.
O
Naturalismo Jurídico de Brian Leiter não ocupa uma posição teórica comparável
as demais vertentes em termos de sua importância e impacto. Na verdade
representa uma variante de pragmatismo jurídico (de inspiração em W.O.Quine) e,
neste sentido, uma resposta metodológica
alternativa ao interpretativismo, ao jusnaturalismo renovado de Finnis e aos
pressupostos epistemológicos da tradição do positivismo metodológico europeu
(De Kelsen ao Realismo Escandinavo) e do positivismo hartiano.
Confesso
que vejo nas obras dos jusnaturalistas que menciona e no pragmatismo jurídico
(de Posner ou Leiter) esforços para oferecer respostas originais a muitas das
questões lançadas e discutidas no debate Hart-Dworkin. São respostas distintas
daquelas que foram oferecidas por Hart e Dworkin, mas para problemas
semelhantes. Isto mais uma vez revela que a importância das obras teóricas
muitas vezes reside mais no conjunto de questões que ela suscita e na agenda de
problemas que lança para seus contemporâneos, do que nas respostas que oferece.
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