Vocabulário Filosófico Básico: Direito

Esta postagem visa esclarecer, de modo breve e introdutório, o conceito de direito subjetivo, como em "ter direito a", "direitos fundamentais", "direitos humanos", "reclamar seus direitos", "lutar por direitos" etc., em ética, filosofia política e filosofia do direito. Não visa falar de concepções específicas sobre direitos, como a classificação dos tipos de direitos no realismo jurídico de Hohfeld, ou a tese dos direitos como trunfos do indivíduo em Dworkin etc. Estas teorias não se referem ao sentido do termo "direito", e sim a alguma outra coisa que já pressupõe que este sentido seja conhecido e esteja claro. É este sentido primário, necessário para discussões ulteriores, que quero esclarecer aqui.

Desde já preciso excluir uma concepção equivocada. Trata-se da concepção, corrente na dogmática jurídica e em certas teorias filosóficas que tomam a dogmática jurídica como sua fonte de inspiração, de que ter um direito a algo implica ter um interesse, uma pretensão ou uma reivindicação protegida a este algo, ou ainda ter a possibilidade de pedir e obter o cumprimento forçado da obrigação de respeitar ou fornecer este algo. Esta concepção tem dois problemas: (i) torna impossível falar de direitos morais (pois estes não estão protegidos nem são imponíveis mediante coerção) e (ii) torna impossível justificar a proteção e imposição dos direitos (pois se cairia no círculo de que eles são direitos porque são protegidos e imponíveis, mas são protegidos e imponíveis porque são direitos). Ela confunde a legalidade dos direitos com sua definição enquanto tais.

Mas tenhamos cuidado: Não se deve confundir a tese de que há direitos não jurídicos, como os direitos morais, com a tese de que direitos jurídicos sejam apenas direitos morais revestidos de proteção jurídica, ou, o que seria o mesmo, que direitos jurídicos são apenas o reconhecimento ou garantia de direitos pré-jurídicos. Esta segunda é uma tese sobre o fundamento dos direitos jurídicos, e esta postagem não é sobre fundamento, apenas sobre conceito. Contudo, se há, além de direitos jurídicos, também direitos morais, deve haver entre os dois um conceito comum mínimo que nos leve a chamá-los ambos de direitos. Este conceito comum não pode ser a proteção jurídica ou imponibilidade coercitiva, porque estes são atributos que apenas os direitos jurídicos possuem. Isso nos obriga a esclarecer qual é a intuição de significado por trás do termo "direito" quando ele é usado tanto no direito quanto na moral. Outra maneira de demonstrar a mesma coisa seria mostrar que o enunciado "estes direitos são protegidos e imponíveis" não é uma redundância: ele informa algo sobre os direitos que não estava já contido no conceito do que é um direito, algo que torna o enunciado verdadeiro por critério factual, não por critério puramente semântico (com base apenas no significado dos termos envolvidos), como ocorre com enunciados analíticos. Isto indica que serem protegidos e imponíveis pode até ser um atributo de todos os direitos que se tornam jurídicos, mas a proteção e imponibilidade explica a parte sobre serem "jurídicos", e não a parte sobre serem "direitos". Definir direitos jurídicos dando ênfase ao que os torna "jurídicos" sem esclarecer o que os torna "direitos" implica, como mencionado, confundir a legalidade com a definição dos direitos enquanto tais.

Peço, então, que consideremos três contextos de uso do termo "direito" com sentido de direito subjetivo: Ter direito a uma coisa, ter direito a uma prestação e ter direito a fazer (ou deixar de fazer) certa coisa (ação).

a) Ter direito a uma coisa: Em enunciados como "tenho direito a esta casa" ou "tenho direito a um salário", o que se quer dizer é que entre um sujeito (eu) e certa coisa (casa, salário) há uma relação tal que negar-me aquela coisa (tirando-a de mim, deixando de dá-la a mim, impedindo-me de usá-la ou dispor dela etc.) seria moralmente errado.

Isto, contudo, embora sendo necessário para caracterizar um direito, está longe de ser suficiente. Pois, se um amigo me prometesse dar certo vaso que lhe pertence e está em sua casa, mas não me desse, seria verdadeiro dizer que a promessa de meu amigo fixou entre certo sujeito (eu) e certa coisa (vaso) uma relação tal que seria moralmente errado ele negar-se a me dá-la, mas não seria verdadeiro dizer que eu tenho direito a ela (pelo contrário, quem tem direito a ela, enquanto meu amigo não a der a mim, é ele, motivo pelo qual, aliás, é ele quem pode me dá-la) - e sim porque ele me tinha prometido dá-la a mim. Tenho apenas justa expectativa da coisa, mas não direito a ela. É a promessa que ele me fez que fixa uma relação (indireta) entre mim e o vaso. Eu na verdade não tenho direito ao vaso, mas, no máximo, direito a que ele cumpra sua promessa: a qual, incidentalmente, implica em dar-me o vaso.

Da mesma maneira, seria errado negar um elogio a quem faz seu trabalho com uma dose extra de excelência, indo bem além do esperado e necessário, mas nem por isso se diria que este tem direito ao elogio: ele apenas o merece, mas não tem um direito a ele. Tenho justa expectativa e merecimento do elogio, mas não direito a ele. Se um sujeito merece algo e este algo lhe é negado, o que com isto se nega é o devido reconhecimento de seu mérito, e não a sua relação com a coisa que lhe devia ter sido dada.

Então, não basta que seja moralmente errado negar-me a coisa, é preciso que seja assim porque entre mim e ela há uma relação direta de pertença. É preciso que, em função de algo que ocorreu antes (no caso da casa, uma compra ou construção, no caso do salário, uma obra ou serviço etc.), tenha se estabelecido entre o sujeito e a coisa uma relação de pertença e que, em função desta pertença, seja moralmente errado negar a tal sujeito a coisa referida. Assim, é moralmente errado negar a coisa ao sujeito porque tal negativa violaria uma relação, anteriormente estabelecida, de pertença da coisa ao sujeito. Sendo assim, "tenho direito a esta coisa" seria outra forma de dizer "esta coisa me pertence". (Que tipo de acontecimento anterior é tal que justifica uma relação de pertença da coisa ao sujeito é outra questão, que não tem a ver com o sentido de direito, e sim com sua justificação, e por isso não é objeto desta postagem.)

b) Ter direito a uma prestação: Em frases como "tenho direito a atendimento médico" ou "tenho direito a um defensor público", o que se quer dizer é que entre certo sujeito e certo outro sujeito se estabelece uma relação tal em que seria moralmente errado que o segundo não fizesse certa coisa (dar ou providenciar atendimento médico, conseguir ou pagar por um defensor público etc.) em relação ao primeiro. Ter direito a certa prestação (no sentido de um fazer algo por parte de outro) de alguém é ter direito de que este alguém não deixe de fazer-lhe esta prestação.

Novamente, contudo, há o risco de dar a este sentido uma extensão grande demais. Pois, se alguém me promete vir me visitar, seria moralmente errado que ele não me visitasse - mas nem por isso dá para dizer que tenho direito a receber do outro esta visita (tenho apenas justa expectativa de que ele me visite). Se meu antigo empregador é consultado pelo meu novo empregador prospectivo sobre a qualidade de meu trabalho, e eu trabalhava bem, seria moralmente errado que ele não recomendasse bem o meu trabalho - mas nem por isso dá para dizer que tenho direito a que ele me recomende bem (tenho apenas justa expectativa e merecimento de que ele me recomende bem).

Há, portanto, em "ter direito a certa prestação", algo mais do que apenas a ideia de que seria errado me negar esta prestação. É preciso que seja errado por força do tipo de relação que o segundo sujeito tem com o primeiro, a qual precisa ser uma relação que atribui ao segundo obrigações em relação ao primeiro. Entre o Estado e o cidadão, por exemplo, há uma relação pela qual o Estado assume obrigações em relação ao cidadão, de modo que o objeto das obrigações para o Estado passa a constituir objeto dos direitos para o cidadão. Da mesma forma, entre dois contratantes, digamos, locador e locatário, existe um tipo de relação que implica que um tenha obrigações perante o outro que, para este outro, serão direitos. Assim como em "direito a certa coisa" o ponto central é a relação de pertença da coisa ao sujeito que tem direito sobre ela, em "direito a certa prestação" o ponto central é a relação de obrigação entre o sujeito prestador e o sujeito que tem direito à prestação. Dizer "tenho direito à prestação tal da parte de sujeito tal" é igual a dizer "sujeito tal tem comigo uma relação que o obriga a fazer coisa tal em meu favor". (Novamente: Que tipos de relações implicam tais obrigações é assunto para uma teoria da justificação dos direitos, e não do esclarecimento de seu sentido.)

(c) Ter direito a fazer certa coisa: Em enunciados como "tenho direito a expressar minha opinião" ou "tenho direito de escolher minha profissão", o que se quer dizer é que seria moralmente errado interferir para me tirar a escolha de fazer ou não a ação em questão, ou, o que é o mesmo, para que eu a fizesse ou não a fizesse, ou para fazê-la em meu lugar. Seria moralmente errado não me deixar escolher entre fazer ou não e, caso eu me decida por fazer, não me deixar fazer ou, caso eu me decida por não fazer, não me deixar não fazer. No sentido "a", ter um direito implica obrigação de respeitar a pertença da coisa a mim; no sentido "b", ter um direito implica a obrigação de cumprir a prestação que decorre da relação que o prestador tem comigo; agora, no sentido "c", ter um direito implica a obrigação de não interferir na minha liberdade de fazer ou não certa ação.

Também como nos outros casos, é preciso que negar-me a coisa a que tenho direito seja moralmente errado em função de certo fundamento: no primeiro caso, a pertença; no segundo, o tipo de relação (que implica obrigação); no terceiro, a liberdade. É preciso que o motivo pelo qual seria errado me negar escolher entre fazer ou não e me impedir de fazer ou não fazer conforme eu escolha seja que negar-me isto seria violar uma liberdade relevante. (Novamente, o que torna uma liberdade relevante o bastante para justificar a obrigação de não interferir com ela é objeto de uma teoria da justificação dos direitos, e não de um esclarecimento de seu sentido.)

Em conclusão: Usa-se o termo "direito" em três sentidos diferentes: "ter direito a certa coisa", que implica que ela me pertence; "ter direito a certa prestação", que implica que entre o prestador e eu há uma relação do tipo que gera a obrigação de ele fazer algo em relação a mim; e, por fim, ter direito de fazer algo", que implica que a ação em questão está no âmbito de alguma de minhas liberdades relevantes. Pertença exclusiva, relação obrigacional e liberdade relevante são os três sentidos com que, na ética, na filosofia política e na filosofia do direito, se emprega o termo "direito" enquanto direito subjetivo.

Comentários

Anônimo disse…
Como sempre, muito bom! Os juízes de plantão poderiam dar uma leitura neste texto...pois, normalmente, dão o significado mais amplo dever, daquilo mencionado como moralmente exigível, sem a vinculacao necessaria de uma relação que lhe dê sustento...inclusive, a última decisão do stj, do ministro Otávio de Noronha, que concedeu alimentos é uma prova disso, na minha opinião, não tanto pela conclusão (que eu tb discordo), mas pela forma com a qual foi conduzido o voto...
Enfim, parabéns!
Heitor disse…
Sou um estudante de ensino médio, mas sou interessado por filosofia. Ultimamente tenho me dedicado a ler os textos de Heidegger. Porém, ainda não entendi bem claramente o conceito de Dasein, ele é apenas um ente que tem um modo diferente de ser dos demais? Em uma passagem Ser e Tempo Heidegger escreve:" O ser é o que neste ente está sempre em jogo (...) A 'essência' deste ente está em ter de ser (...) O dasein é sempre sua possibilidade " Este trecho, penso eu, se assemelha de alguma forma com o que Sartre defende em O Existencialismo é um Humanismo, entretanto soube que Heidegger não aceitava que o classificassem como existencialista.
Também gostaria de saber se as coisas pensadas, como uma pedra que eu imagino, são(emprego o verbo ser com a mesma conotação que Heidegger usa em "a árvore é") e se sim gostaria de saber se coisas dessa natureza também têm ente.
Heitor, parabéns por estar interessado num autor tão complexo desde tão cedo (embora, pessoalmente, eu o aconselhe a investir primeiro em sua formação básica nos problemas dos vários ramos da filosofia e nas posições defendidas sobre eles). Sobre "Ser e Tempo" eu tenho duas postagens introdutórias que o aconselho a consultar:

"Ser e Tempo", de Heidegger (I)
http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/2008/07/sobre-ser-e-tempo-de-heidegger-i.html

e

"Ser e Tempo", de Heidegger (II)
http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/2012/02/ser-e-tempo-de-heidegger-ii-o-dasein.html

Veja se elas resolvem as dúvidas que aqui formulou.
Heitor disse…
Na postagem mais antiga você definiu ser como existir, porém na primeira parte de ser e tempo Heidegger afirma que a existência é exclusiva do dasein. Também ainda não ficou bem claro se as coisas imaginárias e mesmo as metafísicas são.
Mas desde já agradeço pela atenção
Para evitar discutir um assunto na postagem sobre outro, você poderia colocar seus comentários e dúvidas lá mesma em uma das duas postagens sobre "Ser e Tempo", que aí eu respondo, sem problemas, e continuamos esta conversa.
Anônimo disse…
Como próximo assunto, que tal falar sobre as teses separabilidade e complementaridade entre direito e moral? Acho que seria um próximo passo interessante, após este excelente texto!
Anônimo disse…
Boa noite, Gostaria de seu email para compartilhar diálogos contigo sobre os assuntos referentes sobre Filosofia crítica, pois gostei muito de suas colocações no texto de Kelsen, sobre a fundamentação Kelsen.
meu email é linaldogdk@hotmail.com.
SSA/BA
Abraços.

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