Um Dilema da Teoria Crítica: Denúncia das Injustiças X Ponto de Vista dos Afetados

É tarefa da Teoria Crítica ir além da simples descrição e explicação dos fenômenos sociais (objetivo da teoria tradicional) e, adotando o propósito emancipatório, denunciar situações de exploração, dominação, opressão, marginalização, exclusão, preconceito etc. Ela, portanto, denuncia injustiças. Também é pretensão da Teoria Crítica ir além do ponto de vista supostamente universal da sociedade como um todo (favorecido na teoria tradicional), que frequentemente mascara o ponto de vista de um grupo dentro dela que pretende que seus valores e interesses sejam reconhecidos como universais, e trazer à tona a voz silenciada dos injustiçados e, neste sentido, fazer teoria a partir do ponto de vista dos próprios indivíduos concernidos e vitimizados pelos fenômenos e processos em questão. Ela, portanto, adota o ponto de vista dos afetados. Mas o que se deve fazer quando estes dois objetivos - denunciar injustiças e adotar o ponto de vista dos afetados - entram em conflito um com o outro?

O exemplo paradigmático disso, frequentemente citado quando este assunto é trazido à discussão, é o do escravo feliz. Imagine-se que um indivíduo é vendido, tratado e explorado como escravo, sem voz para opor-se às decisões arbitrárias, jornadas excessivas, castigos, humilhações e torturas a que, pelo menos potencialmente, sua condição o expõe diariamente, mas não vê sua situação como nem desafortunada nem injusta, sendo, ao contrário, grato que o destino o tenha presenteado com um amo que lhe dá abrigo, alimento, trabalho e proteção, que não é tão severo e cruel quanto outros amos de que já ouviu falar e que, a seu ver, não cansa de dar mostras de generosidade quando permite festas, declara feriados e libera o consumo de bebidas e o preparo de comidas entre os escravos. Neste caso, denunciar a injustiça a que este indivíduo, enquanto escravo, está submetido e adotar o ponto de vista que, de fato, o escravo tem sobre sua condição são objetivos contraditórios entre si. Denunciar sua condição implica declarar que seu ponto de vista está equivocado. Adotar seu ponto de vista implica renunciar a ser tão crítico quanto se poderia e deveria em relação à sua condição.

Não se trata de um caso raro ou atípico. Há muitos membros de minorias étnicas discriminadas e exploradas que assimilam o racismo como parte de suas vidas e passam a ver os favores condescendentes e oportunidades residuais que lhes chegam como atos de generosidade da raça dominante que provam que, no fundo, não há nenhum racismo em jogo. Há muitas mulheres que assimilam o papel de gênero que a sociedade patriarcal e machista lhes assinalou, que vêem o cuidado dos filhos e da casa como sua função natural, que consideram que serem valorizadas apenas na medida de sua beleza física e gentileza servil é o jogo justo que todas deveriam saber jogar e que tratar sua gestão da casa e participação na vida sexual como suas principais fontes de poder para conseguir o que quer é na verdade um "governo silencioso das mulheres" nos bastidores do mundo. O mesmo se reproduz com funcionários gratos à empresa que os mantém empregados e que adotam o ponto de vista do empresário no que se refere a chances de aumento, promoção e melhora das condições de trabalho; minorias religiosas que acham que enquanto não forem sistematicamente perseguidas e impedidas de exercitar suas crenças e cultos vivem numa sociedade laica e livre; orientações e identidades sexuais discriminadas que vêem seu tratamento estereotipado e caricato pela cultura heteronormativa como fontes de valorização e reconhecimento etc. Há inúmeros casos em que o perseguido ou explorado não se ver como tal é uma das consequências de sua condição até aqui e uma das principais causas da continuidade de sua condição.

Nestas situações, renunciar à denúncia da injustiça e ajustar-se ao ponto de vista do afetado parece o tipo de solução que nenhum teórico crítico subscreveria. A alternativa oposta - denunciar a injustiça a despeito do ponto de vista do afetado, ou melhor, explicando criticamente inclusive as razões por que este ponto de vista existe e não percebe a injustiça a que está submetido - parece muito mais sedutora. Afinal, qualquer teórico crítico sabe que as crenças e expectativas dos afetados são pelo menos em parte influenciadas por sua condição, de modo que é esperável que, para aprender a viver num contexto de subordinação e exclusão, o subordinado e excluído assimile pelo menos em parte o ponto de vista de seu algoz e invisibilize os aspectos mais amplos da injustiça que o vitima cotidianamente. Um teórico crítico mais entusiástico poderia inclusive dar um passo além e dizer: Não se trata de adotar o ponto de vista que o afetado tem, mas aquele que o afetado teria se estivesse adequadamente informado e formasse a interpretação e avaliação de seu contexto livre da ideologia particular a que seu contexto o condenou. Isto substituiria o ponto de vista real que os afetados têm pelo ponto de vista hipotético, ideal ou reconstruído que eles teriam se vissem as coisas pelo olhar informado, reflexivo e crítico da Teoria Crítica.

Mas há pelo menos dois problemas com esta alternativa: um mais teórico, outro mais prático. O mais teórico é que ela implica a hipótese do ponto de vista privilegiado do teórico crítico. Ela faz com que o teórico crítico assuma o ponto de vista do juiz da sociedade como um todo, que pode denunciar injustiças de que os afetados sequer se dão conta e que detém algum método de descoberta que está ele mesmo livre de ideologia de um modo que a consciência dos afetados jamais está plenamente. Nos tempos em que o materialismo histórico pensava ser uma ciência que chegava a conclusões tão objetivos quanto as leis físicas, que só estavam obscurecidas pelas demais abordagens devido às cadeias invisíveis da ideologia, esta hipótese fazia muito mais sentido. Mas a Teoria Crítica andou um longo caminho desde lá. Se agora os teórico críticos renunciaram à pretensão de uma verdade científica sobre o social, se assumiram a necessidade de um ponto de vista normativo que no entanto não pode ser externo à própria sociedade que ele busca criticar, a hipótese do ponto de vista privilegiado deve ser considerada, pelo menos, suspeita e problemática.

O problema mais prático, por sua vez, é que aquela alternativa leva a que a defesa dos afetados seja feita em termos e extremos tais que os próprios afetados não aceitariam, de modo que o teórico crítico pode não apenas não ser reconhecido como um porta-voz legítimo dos que ele pretende libertar, mas seu discurso pode ainda despertar, da parte dos afetados, o tipo de desidentificação e rejeição que reforce sua adesão à ideologia dominante e torne ainda mais difícil que reconheçam e se libertem de sua condição. Assim ocorre com os negros que se ressentem do discurso crítico racial por supostamente exagerar sua condição de injustiça e por predispor ainda mais negativamente os membros da raça hegemônica contra eles. Assim ocorre com as mulheres que preferem se desassociarem do rótulo do feminismo em nome de alguma versão desbotada e insoça do discurso dominante da igualdade entre todos. Homossexuais e transsexuais que rejeitam o discurso queer. Operários e funcionários que sentem temor ou ódio perante o nome do socialismo. Os exemplos são diversos. Nestes casos, o movimento que deveria obter dos afetados adesão e mobilização acaba por obter recusa e adiar por mais uma geração a percepção e o combate das injustiças que tentou denunciar.

Mesmo diante desses problemas, a alternativa de renunciar à denúncia da injustiça (ou moderá-la ao ponto de que não agrida o ponto de vista parcialmente ideológico dos próprios afetados) não parece atraente. O melhor para casos desse tipo seria encontrar algum modo como o ponto de vista da Teoria Crítica e o dos afetados pudesse interagir e aprender continuamente um com o outro. O ponto de vista dos afetados poderia, obviamente, ser ampliado e enriquecido pelo da Teoria Crítica, a ponto de que a desidentificação e rejeição de seu discurso deixassem cada vez mais de ser um problema. Por outro lado, o ponto de vista da Teoria Crítica poderia aprender sobre os níveis em que os afetados já podem ser mobilizados a lutarem contra sua condição e os níveis em que ainda precisam ser esclarecidos ou convencidos de que a condição sequer existe.

Mas, de novo, esta sugestão, por atraente e conciliatória que possa parecer, continua pressupondo que, no conflito entre o ponto de vista da Teoria Crítica e dos afetados, é a Teoria Crítica quem tem realmente razão (ou seja, esse desacordo não prova nada contra a verdade das denúncias da Teoria Crítica, essa verdade sendo, portanto, independente do reconhecimento dos afetados) e a rejeição que os afetados porventura tenham contra ela se baseia meramente em ignorância e ideologia (ou seja, a Teoria Crítica se posiciona num status de primado epistêmico em relação ao ponto de vista dos afetados, a partir do qual ela pode corrigir o ponto de vista que diverge dela, mas nunca ser corrigido por ele). Qualquer teórico crítico contemporâneo tem que necessariamente lidar com esse dilema, para o qual, como vimos, nenhuma resposta plenamente satisfatória está ainda disponível.

Comentários

André Luiz disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse…
Muito bom. Excelente escrita!
amaro disse…
Oi André. Obrigado pelo texto. Não apenas pela clareza com que coloca o dilema, mas principalmente pela capacidade argumentativa. Gostei, sobretudo, de teres evitado a acusação de paternalismo à situação em que não se adota o ponto de vista do concernido, a meu ver inteiramente descabida. Ademais, concordo inteiramente com tua conclusão, tanto a de que não se pode abandonar a crítica da injustiça, ainda quando ela não é sentida como tal pela vítima, quanto a de que todo teórico crítico, ou aspirante a, tem que lidar com um dilema que, salvo engano, não parece ter uma solução (teórica, talvez a solução seja prática: a emancipação!).
Acho, porém, que o texto se torna um pouco caricato na apresentação dos problemas decorrentes da suposição de um ponto de vista privilegiado (em especial nesta passagem: “Nos tempos em que o materialismo histórico pensava ser uma ciência que chegava a conclusões tão objetivos (sic) quanto as leis físicas, que só estavam obscurecidas pelas demais abordagens devido às cadeias invisíveis da ideologia, esta hipótese fazia muito mais sentido”. O materialismo histórico (que costuma ser identificado com as teses defendidas nA Ideologia alemã) nunca defende tal ideia, pelo contrário, sempre critica a tentativa de impor um modelo naturalista de conhecimento objetivo sobre as ciências humanas). Ainda que ao fim e ao cabo tu mesmo defendas esta posição, no momento em que a apresentas torna ela mais fraca e problemática do que realmente ela é. Explico-me: Boa parte das pesquisas empíricas da teoria crítica (bons exemplos, por aqui, são os livros A Ralé brasileira e o Vozes do bolsa-família) mostram que as vítimas da injustiça tendem a interiorizar a visão pejorativa que a sociedade faz delas, o que só reforça sua própria baixa autoestima. Adotar o ponto de vista dos concernidos significa, portanto, apenas reforçar a opressão a qual estão submetidos. Ao teórico crítico, por conseguinte, não resta alternativa senão buscar interagir com tais pessoas de forma a incentivar que vejam as suas próprias situações sob outras perspectivas (sei que isto é muito mais complexo do que aparenta). Se em algo a teoria do discurso é válida, ela teria que ser justamente aqui. Seria preciso criar uma situação de debate capaz de mudar a posição dos participantes (também a do crítico [perguntes ao Pinzani/Valquíria Rego ou ao Jessé Souza o quanto aprenderam em tais pesquisas]). Agora, isto não quer dizer que o crítico não tenha, de fato, um ponto de vista privilegiado. Creio que qualquer pessoa que leve a sério o estudo das humanidades tenha um ponto de vista privilegiado no que toca ao exame de problemas sociais, ao menos na medida em que possui ferramentas conceituais mais refinadas e um treinamento teórico para lidar com tais situações. Sei que há não poucos eruditos das humanas que não param um segundo de falar asnices (e o processo de superespecialização a que estamos todos submetidos cria cada vez mais indivíduos assim), disto não se segue, contudo, um democratismo no qual, como diz um tango, “todo es igual, nada es mejor, lo mismo un burro que un gran profesor!”. É evidente que o teórico crítico não possui a Verdade. Mas ou bem ele consegue se distanciar da perspectiva tanto dos concernidos, quanto das mais usuais e dominantes em tal sociedade, ou não fará crítica alguma.
Grande abraço,
Amaro.
No caso da teoria do discurso, Habermas tenta apresentar uma alternativa: a base de onde o teórico extrai a sua teorização não é o ponto de vista não reflexivo do concernido, e sim as pressuposições idealizadas da linguagem em que até mesmo a ideologia que oprime o concernido precisa se estruturar para ser convincente. Neste caso, a base da teorização é algo que o concernido seria capaz de aprovar, mesmo que não coincida com a exata perspectiva que ele possui agora. Mesmo que se critique esta solução como idealizada, apriorística, abstrata etc., ela fornece o modelo do que eu considero que poderia ser uma saída: apoiar-se em algo que o concernido poderia aprovar, sem, contudo, ratificar a visão que ele tem agora.

Ainda fica um tanto vago, contudo, não apenas como exatamente se pode realizar isso (esse é o problema que cada teoria crítica tenta responder à sua maneira), mas como isso se conecta com ideias como, por exemplo, basear-se em "experiências de sofrimento, dominação, exclusão etc.". Porque a ideia de que sejam "experiências" parece pressupor que a situação é percebida como tal pelo próprio concernido, e não apenas objetivamente constatada pelo teórico. Mas se ficarmos na dependência do sofrimento e dominação que o concernido experimenta enquanto tais, então, aqueles discursos ideológicos que são internalizados pelo concernido passarão a ser limites não apenas dele enquanto indivíduo na sociedade, mas também do teórico enquanto crítico social. Seria preciso renunciar à ideia de conectar-se com "experiências" de sofrimento?
amaro disse…
Oi André. Curioso, quando li a passagem do final do quarto parágrafo pensei que se referias antes ao Lukács (de História e consciência de classe) do que ao Habermas. Isto porque o Lukács fala da perspectiva que o proletariado deveria ter, e não daquela que ele realmente tem. De qualquer forma, seja em um ou noutro caso, considero demasiado não realista tal opção. Parece-me algo inaceitável para tempos pós-metafísicos como o nosso fazer suposições sobre o que deveria ser o caso caso o mundo não fosse o que é. Ademais, como, na prática, podemos saber como seria o pensamento se ele não fosse distorcido por tudo aquilo que o afeta? Confesso que partir do que é pressuposto na linguagem é uma saída engenhosa, mas não consigo imaginar num tipo de crítica social com base empírica que realmente parta disto.
(Falei da teoria do discurso apenas para mencionar que num debate as pessoas podem mudar de ideia. Neste caso, caberia ao teórico crítico provocar o debate e contrapor-se à visão dos concernidos de forma a incentivar uma mudança de perspectiva/consciência).
A questão da experiência do sofrimento também tem seus problemas, é claro. Mas note que aqui os próprios concernidos percebem que sofrem, ao menos na grande maioria dos casos. O que eles não notam são as causas sociais de seus sofrimentos. Eles interiorizam estas causas e se auto-culpabilizam, o que reforça ainda mais tal sofrimento. Neste caso, a função da TC é mostrar que as causas são sociais e a solução não é tomar antidepressivos, e sim transformar a sociedade.

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo