Dworkin e a Comunidade de Princípios: Seu Argumento Definitivo em Favor do Direito como Integridade

No capítulo VI de "O Império do Direito", Dworkin afirma que seu argumento definitivo em favor do direito como integridade não é nem o da sua maior adequação ao modo como os juízes decidem nem o do seu maior apelo moral em vista da comunidade personificada, e sim o argumento de que uma comunidade de princípios, o único modelo que consegue dar conta de nossas chamadas obrigações associativas, requer que a integridade seja um ideal normativo ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal. Ao longo desta postagem, vou explicar parte por parte da tese que acabei de resumir. Vamos lá, passo por passo.

Nos capítulos I e II de "O Império do Direito", Dworkin defende que "direito" é um conceito interpretativo, do tipo que não pode ser descrito por uma teoria com pretensão de verdade exclusiva à luz dos fatos (teoria semântica), mas pode apenas ser interpretado por uma série de concepções concorrentes que precisam fornecer razões morais e políticas de por que devem ser preferidas em detrimento de suas rivais (concepções pós-interpretativas). No capítulo III diz que o que há de comum a todas essas concepções é o conceito de que o direito é o conjunto de direitos e responsabilidades que autorizam o uso da coerção sempre que derivam de decisões do passado dotadas da autoridade necessária. Contudo, assim que se passa desta fórmula abstrata para determinar em concreto quais decisões do passado têm a autoridade necessária, o que significa "derivar" de uma decisão do passado e quais direitos e responsabilidades de fato derivam das decisões que temos (isto é, na linguagem que Dworkin escolhe, assim que se passa do conceito a uma concepção de direito), as divergências aparecem e precisam ser justificadas com razões morais e políticas.

Dworkin propõe que estas razões devem estar em dois níveis diferentes: o nível da adequação, em que se vê se aquela concepção explica ou corresponde ao modo como os juízes de fato costumam decidir os casos, especialmente os mais difíceis, em direito; e o nível do apelo moral, em que se vê se ela fornece o tipo de padrão decisório para o judiciário que valeria a pena implementarmos e mantermos. Muito bem. Sendo assim, resta apresentar quais as são as concepções pós-interpretativas e ver como elas se saem no tocante à dupla exigência (adequação e apelo moral) descrita acima.

A primeira destas concepções pós-interpretativas, apresentada no capítulo IV, é o convencionalismo, uma espécie de versão interpretativista do positivismo jurídico. O convencionalismo só aceita os direitos e responsabilidades que estejam explicitamente previstos nas decisões do passado de uma das fontes estatais autorizadas (constituição, legislação e precedentes). Nada além do explicitamente previsto por elas é direito. O que o convencionalismo busca realizar dessa forma é o ideal das expectativas asseguradas, ou seja, busca dar ao direito o máximo de previsibilidade e estabilidade. Mas também reconhece os limites do direito. Quando este deixa mais de uma possibilidade de interpretação, o convencionalismo dá ao juiz livre escolha entre elas. Já quando não regula o caso em tela, o convencionalismo dá ao juiz poder de legislar inovativamente para o caso concreto.

Para Dworkin, o convencionalismo não consegue passar nem no requisito da adequação nem no do apelo moral. Quanto à adequação, o convencionalismo só explica as decisões judiciais que mantiveram padrões anteriores de decisão, mas não as que romperam com eles. Também não explica a expectativa das partes de um processo de que o seu caso, à luz de circunstâncias e argumentos diferentes, será tratado de modo diferente de como foram outros no passado. Por fim, o convencionalismo também não explica a insistência interpretativa dos juízes, isto é, por que continuam a buscar um sentido nas normas e precedentes mesmo quando estes são visivelmente indeterminados  ou insuficientes. Os juízes não parecem tratar sua decisão como uma questão nem de simples escolha nem de nova legislação, e sim de interpretação mais cuidadosa do direito.

Por outro lado, o convencionalismo também deixa a desejar no tocante ao seu apelo moral. Ele seria uma boa teoria se no direito fosse sempre mais importante a existência e estabilidade de padrões do que a qualidade e justiça destes padrões. Isso, segundo Dworkin, pode ser o caso para alguns campos restritos do direito (títulos de crédito, transações bancárias), mas certamente não o é para todos. Além disso, Dworkin observa que os próprios defensores do convencionalismo não vão até as últimas consequências em sua defesa da previsibilidade e estabilidade. Fosse este o caso, subscreveriam o que ele chama de "convencionalismo unilateral": um esquema de decisão em que, a menos que o autor provasse que o direito explicitamente formulado lhe dá inequívoco ganho de causa, dar-se-ia vitória ao réu. Em vez disso, os convencionalistas reconhecem a possibilidade, no caso de indeterminação ou insuficiência do direito, de dar ganho de causa tanto ao autor quanto ao réu, dependendo do que o juiz escolha ou legisle para tais casos. Esta não apenas é a confissão definitiva de que previsibilidade e estabilidade não é tudo nem para seus mais ardorosos defensores, mas é também uma razão para ir além do convencionalismo: se for para deixar o juiz escolher entre causa do autor e causa do réu conforme o que ache ser melhor para a comunidade como um todo, melhor seria aderir logo ao pragmatismo, a concepção rival e seguinte a ser exposta, que adota precisamente esta premissa como seu fundamento.

No capítulo V, Dworkin introduz a segunda concepção pós-interpretativa do direito: o pragmatismo, espécie de versão interpretativista do realismo e pós-realismo jurídico americano. O pragmatismo na verdade nega alguns elementos do conceito comum de direito. Nega que apenas os direitos e responsabilidades derivados de decisões do passado possam fundar decisões judiciais e autorizar o uso da coerção. Defendem, em vez disso, que a decisão a ser tomada em cada caso é aquela que seja melhor para a comunidade como um todo, isto é, que produza mais consequências e impactos positivos que negativos na construção do tipo de sociedade que se quer ter. Em vez de ter olhar dirigido para o passado, como o convencionalismo, o pragmatismo visa ao futuro e usa o direito como instrumento de engenharia social para chegar lá. O juiz pragmatista ainda falaria de regras, direitos e responsabilidades na fundamentação formal de sua decisão, mas o faria apenas como um tipo de "mentira caridosa" em que o público precisa acreditar para seguir obedecendo ao direito e aceitando as decisões da jurisdição. Ele não leva a sério nem direitos e responsabilidades nem as decisões do passado, apenas os usa para fundamentar decisões que tomou por motivos bem diversos. Isso, contudo, resulta menos radical do que parece à primeira vista. Na maioria dos casos, o juiz pragmatista manteria os padrões decisórios do passado, porque calcularia que a perda de previsibilidade e estabilidade seria um mal maior do que a injustiça tópica naquele caso concreto. É apenas diante de certas decisões de grande impacto, necessárias a um novo rumo do qual a sociedade carece, que o pragmatista romperia com o padrão e tomaria decisão totalmente inovadora, sem deixar, contudo, de fundamentá-la, com a ginástica argumentativa que for preciso, como se ela decorresse do direito que existia antes.

De imediato, o pragmatismo se mostra, segundo Dworkin, superior ao convencionalismo tanto no requisito da adequação, quanto no do apelo moral. No da adequação, ele consegue explicar tanto a continuidade quanto a ruptura com padrões decisórios do passado e a expectativas das partes de que seus casos venham a ser tratados de modo distinto. Continua não explicando, contudo, a insistência interpretativa dos juízes, a não ser como parte de seu fingimento de estar tentando aplicar o direito já existente. No tocante ao apelo moral, apesar de o pragmatismo não levar os direitos e responsabilidades realmente a sério, é extremamente difícil provar que isso seria algum prejuízo para a comunidade, pois o critério com que o juiz pragmatista decidiria levaria em conta exatamente o que seria melhor para a comunidade em cada caso. Dworkin diz que, para afastar a tentação do pragmatismo, é necessário usar o argumento da personificação da comunidade e do ideal de integridade.

Eis como este argumento funciona em sua forma básica. Assim como uma pessoa é íntegra quando, todos os dias e em todos os aspectos da vida, aplica sempre e coerentemente o mesmo conjunto de princípios (integridade pessoal), da mesma maneira uma comunidade política, se tratada em analogia com uma pessoa (personificação), também teria, além das virtudes da justiça, da equidade e do devido processo legal, uma virtude extra, que consistiria em aplicar, para todos os casos e pessoas, sempre e coerentemente o mesmo conjunto de princípios que definem o conteúdo da justiça, da equidade e do devido processo legal (integridade política). A integridade política se revela tanto como integridade legislativa (fazer leis que sucedem no tempo a partir dos mesmos princípios), quanto como integridade judiciária (tomar decisões judiciais a partir dos mesmos princípios de decisões do passado). A integridade corresponderia à intuição de que casos iguais devem ser tratados igualmente (com os mesmos princípios) e casos desiguais (havendo uma diferença também ela de princípio), desigualmente. Assim, decisões do presente devem ter uma coerência ou continuidade com as do passado, mas esta coerência não é de resultados (tomar as mesmas decisões), e sim de princípios (tomar decisões, mesmo que diferentes, inspiradas nos mesmos princípios das anteriores). Este seria o ideal sustentado pelo direito como integridade, a terceira concepção pós-interpretativa, que Dworkin apresenta ainda no capítulo V e que corresponde à concepção que ele pretende defender de preferência às duas anteriores.

Segundo Dworkin, o direito como integridade se sai ainda melhor que o pragmatismo tanto no quesito da adequação quanto no do apelo moral. Tal como o pragmatismo, explica tanto as decisões judiciais de continuidade (quando os mesmos princípios levaram ao mesmo resultado) quanto as de ruptura com os padrões anteriores (quando diferentes interpretações dos mesmos princípios levaram a resultados diferentes). Tal como o pragmatismo, explica a expectativa das partes de que seu caso seja tratado diferentemente (sempre que houver uma diferença também ela de princípio entre o caso novo e os anteriores). Contudo, diferentemente do pragmatismo, não precisa recorrer à hipótese do fingimento para explicar a insistência interpretativa dos juízes: mesmo quando as decisões do passado são indeterminadas ou insuficientes, os juízes se dedicam à busca dos princípios que as inspiraram (ou poderiam ter inspirado) para, com base em certa interpretação deles, igual ou diversa da feita no passado, decidirem o novo caso que têm nas mãos. Da mesma maneira, no tocante ao apelo moral, o direito como integridade não apenas é a única das três concepções que faz jus a esta virtude extra da comunidade política, mas é também a única em que a coerência com o passado não precisa ser sacrificada em nome da justiça nem a justiça em nome da coerência do passado. Ao manter uma coerência de princípio com o passado, essa coerência se torna compatível com novas interpretações que corrijam erros e se dirijam à decisão mais justa. Tudo isso se pode encontrar no final do capítulo V e no início do capítulo VI de "O Império do Direito".

Contudo, no capítulo VI, Dworkin afirma o que eu disse no primeiro parágrafo deste texto: que seu argumento definitivo em favor do direito como integridade não é nem o da sua maior adequação ao modo como os juízes decidem nem o do seu maior apelo moral em vista da comunidade personificada. Segundo Dworkin, o argumento decisivo em favor do direito como integridade é da comunidade de princípios, o qual passarei a explicar agora, na parte final desta postagem.

Eis a ideia desse argumento. Uma comunidade política reúne e destaca certo grupo de pessoas (os seus membros) em relação à totalidade das outras pessoas no mundo. Onde há uma comunidade política, os indivíduos que pertencem a ela têm, uns em relação aos outros, certas obrigações que eles não têm da mesma maneira em relação aos não membros. Não quer dizer que não tenham nenhuma obrigação com os não membros, mas apenas que as obrigações entre membros e as obrigações para com não membros não são as mesmas. Estas obrigações que se têm apenas entre os membros recebem o nome de obrigações associativas - e deve-se reter este conceito na memória, porque ele desempenhará um papel chave no restante do argumento.

Segundo Dworkin, só é possível explicar e justificar as obrigações associativas em vista de certa concepção do que é a comunidade política. Ou seja, é preciso mostrar que tipo de coisa a comunidade política precisa ser para que existam entre seus membros o tipo distintivo de obrigações que são as obrigações associativas. O papel de explicar e justificar as obrigações associativas cabe, portanto, ao que Dworkin chama de modelos de comunidade política, que são três e que já vou explicar daqui a pouco. Antes, porém, é preciso dizer que Dworkin fixa quatro aspectos em que um modelo de comunidade política deve se provar satisfatório. Os três primeiros são que um bom modelo deve conseguir mostrar as obrigações como especiais (do tipo que se tem para com membros mas não para com não membros), gerais (fundadas em critérios amplos e aplicáveis a vários outros casos) e pessoais (que se tem de uma pessoa para com outra, e não apenas de cada um para com a comunidade como um todo). O quarto é que deve mostrar que as obrigações associativas estão vinculadas a um interesse igual com cada membro. Os três modelos que Dworkin introduz em seguida, e que vou explicar agora, devem, portanto, ser avaliados segundo estes quatro aspectos.

Ao primeiro modelo de comunidade Dworkin chama de por simples acidente de fato. Neste caso, considera-se uma simples coincidência estar no mesmo tempo e lugar que outras pessoas e não se considera ter em relação a elas nenhuma obrigação que não se teria por outras pessoas. Convive-se em paz com elas, coopera-se inclusive em projetos comuns, mas apenas na medida em que isso seja vantajoso para o indivíduo fazendo este cálculo, e em nenhuma outra situação. Quem adere a este modelo pode ser um egoísta racional (que não vê outra razão para obrigações que não o autointeresse) ou um cosmopolita convicto (que não vê diferenças entre membros e não membros de comunidades políticas). De qualquer maneira, segundo Dworkin, este modelo falha em todos os quatro aspectos acima listados. Se houver obrigações entre os membros da comunidade, elas não serão nem especiais, nem gerais, nem pessoais, muito menos expressarão qualquer tipo de interesse igual por todos os membros. Por esta razão, este modelo deve ser rejeitado.

Ao segundo Dworkin chama de modelo de regras. A comunidade de regras seria uma em que os membros se comprometem a observarem uns com os outros obrigações fixadas por regras explícitas, e apenas estas obrigações. Veem estas regras como produto de uma criação artificial, que requereu negociação e concessões recíprocas entre lados concorrentes e considera que se estaria traindo estes compromissos, favorecendo indevidamente um lado ou a outro, se se estendesse ou restringisse as obrigações para além do que foi estritamente fixado nas regras decididas. Assim, fora destas regras, não há nada que um membro possa esperar do outro. Para Dworkin, uma comunidade de regras consegue satisfazer dois dos aspectos antes listados, pois consegue mostrar as obrigações associativas como ao mesmo tempo especiais (as regras valem para membros e entre eles, e não fora da comunidade) e gerais (as obrigações se fundam em regras que podem também aplicar-se a outros casos). Contudo, tais obrigações seriam ainda impessoais (meramente decorrentes de regras) e não mostrariam respeito igual pelos membros quando as regras assim já não o fizessem. Por isso, este modelo também é menos que satisfatório e deve ser abandonado.

Por fim, o terceiro modelo, uma comunidade de princípios. Nesta, considera-se que os membros partilham uma compreensão comum de princípios que informam a justiça, a equidade e o devido processo legal e que suas obrigações uns com os outros, fixadas ou não em regras explícitas, derivam na verdade destes princípios e sua aplicação conjunta e coerente às várias possíveis situações. Dworkin avança, então, para sustentar que uma comunidade de princípios explicaria e justificaria as obrigações associativas de modo mais adequado, porque as mostraria como especiais (decorrem dos princípios da comunidade), gerais (fundam-se em princípios que se aplicam também a outros casos), pessoais (diferentemente das regras, os princípios correspondem a convicções compartilhadas, portanto sustentadas também por cada pessoa e informativa de como se relaciona com as demais) e conectadas a um igual interesse por cada membro mesmo ali onde os interesses ou as regras pudessem ditar de modo diverso. Por conseguinte, apenas o modelo de princípios, a comunidade de princípios, conseguiria explicar e justificar as obrigações associativas em todos os quatro aspectos que Dworkin fixou como necessários.

Daí é que se passa ao argumento definitivo em favor da integridade. Se o modelo de comunidade que adotamos é o de princípios, único capaz de explicar e justificar as obrigações associativas em todos os quatro aspectos relevantes, então, neste tipo de comunidade todas as decisões políticas, quer legislativas, quer judiciárias, teriam que, para serem legítimas, derivar do mesmo conjunto de princípios. Ou seja, neste tipo de comunidade, seria preciso necessariamente observar a integridade. A personificação da comunidade e a adição da integridade à lista das virtudes da comunidade política, ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal - de que fala o final do capítulo V - não seria mais apenas um argumento moral entre outros com certo peso relativo: ele seria a única fundação da legitimidade das decisões políticas de uma comunidade que se autocompreenda segundo o modelo de princípios, coisa que ela terá que fazer caso queira dar conta de suas obrigações associativas. As obrigações associativas exigem, como explicação e justificação, a comunidade de princípios; e esta, por sua vez, exige, para legitimidade de suas decisões, a virtude da integridade enquanto aplicação coerente do mesmo conjunto de princípios. Como o direito como integridade é a única concepção pós-interpretativa do direito que realiza esta virtude, ele é, assim, a única concepção interpretativa adequada para uma comunidade de princípios. Este é, segundo Dworkin, o argumento definitivo em favor do direito como integridade.

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