O que é o aguilhão semântico?

No primeiro capítulo de "O Império do Direito" (1986) Dworkin diz que tanto teóricos como leigos falham em ver as divergências teóricas: quando dois ou mais juristas divergem sobre o que o direito diz ou exige, mesmo tendo à sua frente as mesmas normas e precedentes. Eles tendem a vê-las como divergências sobre moralidade e fidelidade: como se um dos lados estivesse tentando aplicar o direito e o outro achasse o que o direito diz injusto e quisesse procurar outra solução. No caso dos leigos, isso acontece pela influência da visão do direito como simples questão de fato. Por acreditarem que o conhecimento de certos fatos (se a lei foi validamente produzida, se está vigente e é aplicável, o que diz o seu texto etc.) basta para saber o que o direito diz e exige, os leigos esperam que dois juristas que tenham o mesmo conhecimento dos fatos relevantes tenham a mesma opinião sobre a solução adequada para cada caso. Por isso, se discordam, deve ser porque pelo menos um deles é ignorante ou está de má fé. Mas no caso dos teóricos, a cegueira em relação às divergências teóricas acontece pela influência do aguilhão semântico. Essa pequena postagem visa explicar o que é o aguilhão semântico e como ele impede que os teóricos vejam as divergências teóricas pelo que elas realmente são.

Em poucas palavras, o aguilhão semântico é a crença de que todos os participantes de uma mesma prática, se conseguem interagir e entender-se entre si, devem ter a mesma concepção sobre o que aquela prática é e envolve. Participar da mesma prática exigiria partilhar a mesma concepção. Outra maneira de dizer a mesma coisa é que, se dois ou mais falantes mantêm sobre certo assunto uma conversa significativa, na qual trocam informações úteis, concordam e discordam de maneira inteligente, é porque o assunto em questão é entendido da mesma maneira pelos dois ou mais falantes; do contrário, não haveria conversa alguma, eles apenas falariam de coisas distintas e não se entenderiam entre si. Seriam como duas pessoas que discutissem sobre se os bancos da praça estão sujos, com um pensando em instituições financeiras, praça comercial e moralidade pública e outro em assentos físicos, praça de entretenimento e higiene pública. Não estariam tendo uma conversa, e sim falhando em sequer se comunicarem.

Se o aguilhão semântico fosse verdadeiro, tornaria as divergências teóricas impossíveis. Para Dworkin, as divergências teóricas em direito acontecem porque os juristas olham para a mesma norma ou precedente e, interpretando-a ou interpretando-o à luz de suas respectivas concepções do que o direito é e quer alcançar, acentuam diferentes aspectos da norma ou precedente em questão. As lentes de suas distintas concepções do direito mostram o objeto sob aparências distintas. Então, para Dworkin, as divergências teóricas acontecem precisamente porque temos distintas concepções do direito. Daí porque, se o aguilhão semântico estivesse certo, o fato de os juristas se envolverem numa prática em comum e se entenderem entre si contaria como sinal de que partilham a mesma concepção do que o direito é e quer alcançar. Se assim fosse, não teriam qualquer divergência teórica. Quando olhassem para as mesmas normas e precedentes, veriam a mesma coisa.

Se Dworkin insiste que as divergências teóricas acontecem e que a razão por que acontecem são as distintas concepções do direito à luz das quais os juristas o interpretam, então, o aguilhão semântico tem que ser falso. E, para prová-lo falso, Dworkin escreverá os capítulos 2 e 3 de "O Império do Direito". Uma vez que você perceba, com o exemplo da cortesia, como a interpretação construtiva funciona (particularmente o quanto esta interpretação depende da concepção que se tenha sobre o gênero a que pertence a coisa interpretada) e como é possível ter um mesmo conceito mas sustentar diferentes concepções para a mesma coisa, o aguilhão semântico terá se mostrado equivocado. E haverá espaço para aceitar e explicar as divergências teóricas como fenômeno central na prática jurídica.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A distinção entre ser e dever-ser em Hans Kelsen

Premissas e Conclusões

Crítica da Razão Pura: Breve Resumo