"Positivismo, formalismo e contenção judicial" (Resumo da Palestra)
No início da palestra, disse que autores contemporâneos (Waldron, Schauer, Shapiro etc.) têm revivido a defesa do formalismo numa forma ou noutra e que o aluno de graduação precisa ser informado de em que termos. Disse também que minha intenção não era defender o formalismo, até porque ainda não estou convencido de que ele resolve os problemas principais da decisão judicial nos níveis prático e moral. Na verdade, queria apenas dizer ao aluno que já teve contato com a crítica ao formalismo (elaborada pelo realismo jurídico e repetida desde então seja por positivistas como Hart e Kelsen seja por antipositivistas como Fuller e Alexy) o que o formalista poderia responder de volta para defender sua posição em termos aceitáveis.
Comecei o argumento lembrando a crítica geralmente dirigida ao formalismo. Nesta crítica, ele é caracterizado como a teoria segundo a qual haveria regras para todos os casos (o direito é completo) e uma só regra para cada caso (o direito é exato), que pode ser interpretada de maneira clara (o direito é unívoco) e uniforme entre todos os julgadores competentes (o direito é consensual). Contra essa teoria se costuma mostrar que ela não apenas é refutada por lacunas, antinomias, vaguezas e controvérsias do direito na prática, mas ainda teria uma visão ingênua sobre o significado das regras e levaria a decisões conservadoras e injustas.
Em seguida, mostrei que há certos problemas com essa crítica. O primeiro é que não deixa claro se o formalismo é uma teoria descritiva ou normativa. Se o formalismo for uma teoria descritiva (sobre como a decisão judicial de fato é neste momento), então, sim, é ingênua e frágil da prática judicial, facilmente refutável com meia dúzia de contraexemplos. Se, contudo, for uma teoria normativa (sobre como a decisão judicial deveria ser num cenário ideal), então, ela não apenas volta a ser uma teoria plausível como também passa a só ser refutável com argumentos morais e políticos em favor de um modelo alternativo.
Expliquei que, quando se fala de uma teoria da interpretação, há quatro níveis epistemológicos em que a teoria pode estar situada: ela pode ser a) uma metateoria sobre como se constrói uma teoria da interpretação aceitável; b) uma teoria comunicativa da interpretação sobre o que é interpretar e os passos de um processo de interpretação aceitável; c) uma teoria normativa da interpretação, que defende que certa forma de interpretar é melhor que outras formas possíveis; ou d) uma metodologia da interpretação, que prescreva passos e critérios para interpretar de certa forma. Disse na palestra que, se o formalismo for uma teoria comunicativa, será pobre e controverso; mas ele será produtivo se for visto como uma teoria normativa e como uma metodologia interpretativa.
Segundo defendi, o formalismo é uma teoria normativa da legislação e da jurisdição. Enquanto teoria da legislação, prescreve que o legislador faça as regras de modo tal a não deixar senão o mínimo inevitável de espaço interpretativo e criativo para o julgador. Enquanto teoria da jurisdição, prescreve que, diante daquela legislação formalista, o julgador decida da maneira mais restrita possível ao significado linguístico do texto (textualismo) e, se o texto der margem a dúvidas, contorne essas dúvidas segundo convenções previamente fixadas (convencionalismo). Disse que era importante notar que há por trás do formalismo uma justificativa com base em dois ideais normativos: o do estado de direito e o da democracia como autogoverno (ver explicação mais abaixo).
O adversário do formalismo é o instrumentalismo, o qual se deve interpretar o texto da regra com vista aos fins que ela visa alcançar, podendo-se restringir, ampliar, modificar ou excepcionar conteúdo da regra com base nesta finalidade. No famoso exemplo de Hart da proibição de veículos no parque, quando o guarda se visse diante de uma bicicleta e tivesse dúvida sobre proibi-la ou não de entrar, o guarda formalista decidiria estritamente conforme o texto (se bicicleta é veículo e veículo está proibido, então, bicicleta está proibida), enquanto o guarda instrumentalista levaria em conta o suposto fim da regra (a regra diz veículo mas quer proibir só os que são perigosos, de modo, sendo veículo mas não sendo perigosa, a bicicleta poderia entrar). Talvez o guarda formalista até concordasse com o guarda instrumentalista que deixar a bicicleta entrar seria a solução mais razoável, mas consideraria que esse é um problema a ser sanado no âmbito da legislação (fazendo uma nova regra), e não da jurisdição (reinterpretando a regra). Ele não optaria pela solução mais razoável (deixar a bicicleta entrar) por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque quer honrar o ideal do estado de direito. No estado de direito, as autoridades têm seu poder limitado pelo direito e os cidadãos são governados pelo direito e suas determinações, e não por pessoas e suas opiniões e valorações. Se levasse em conta o fim que a regra visa alcançar, o guarda teria que descobrir ou atribuir este fim (que não está previsto no próprio texto) e diferentes guardas chegariam a diferentes conclusões sobre os fins visados pela regra. O cidadão que quer entrar com a sua bicicleta seria autorizado ou proibido não com base no direito, mas com base na interpretação deste ou daquele guarda. Seria governado por pessoas, e não pelo direito.
Em segundo lugar, porque quer honrar o ideal da democracia como autogoverno. O cidadão que quer entrar com sua bicicleta teve oportunidade de participar e influenciar (direta ou indiretamente) da decisão que proibiu a entrada de veículos, enquanto não teria nenhuma possibilidade de participar e influenciar a decisão do guarda que estivesse interpretando sobre o fim que essa regra visa alcançar. Ao aplicar o texto e nada mais, o guarda está privilegiando a decisão que o cidadão tomou em vez daquela que ele, guarda, tomaria em seu lugar. Neste caso, o cidadão está sendo submetido à regra que ele mesmo elaborou, fugindo da submissão à vontade de outrem e realizando o ideal de autogoverno. Desta forma, pode-se ver o formalismo como a teoria normativa da jurisdição que visasse a máxima realização dos ideais de estado de direito e democracia.
Finalmente, reforçando os dois pontos do formalismo (textualismo e convencionalismo), resta observar que, primeiro, o textualismo significa restringir-se maximamente ao texto, mas deve-se distinguir entre sentido claro (plain meaning) do texto (que é o que formalista quereria seguir), e sentido literal (que é pobre demais), sentido finalístico (comprometido com o instrumentalismo) e sentido razoável (comprometido com limites morais) do texto, que são exatamente o que o formalismo quer evitar. Segundo, o formalismo acredita que algumas convenções gerais (não há crime sem pena no âmbito criminal, o que não está proibido está permitido no âmbito civil, em dúvida interpreta-se pró réu, ou pró trabalhador, ou pró consumidor etc.) dariam conta dos casos de lacunas e antinomias, bem como orientariam a escolha entre alternativas de interpretação quando o texto tornasse essa escolha inevitável. Se essas convenções já forem levadas em conta pelo legislador na hora de fazer as regras (reforçando a democracia) e pelos cidadãos no modo como esperam que as regras sejam aplicadas (reforçando o estado de direito), contribuiriam para máxima fidelidade aos dois ideais normativos visados pelo formalismo.
Comecei o argumento lembrando a crítica geralmente dirigida ao formalismo. Nesta crítica, ele é caracterizado como a teoria segundo a qual haveria regras para todos os casos (o direito é completo) e uma só regra para cada caso (o direito é exato), que pode ser interpretada de maneira clara (o direito é unívoco) e uniforme entre todos os julgadores competentes (o direito é consensual). Contra essa teoria se costuma mostrar que ela não apenas é refutada por lacunas, antinomias, vaguezas e controvérsias do direito na prática, mas ainda teria uma visão ingênua sobre o significado das regras e levaria a decisões conservadoras e injustas.
Em seguida, mostrei que há certos problemas com essa crítica. O primeiro é que não deixa claro se o formalismo é uma teoria descritiva ou normativa. Se o formalismo for uma teoria descritiva (sobre como a decisão judicial de fato é neste momento), então, sim, é ingênua e frágil da prática judicial, facilmente refutável com meia dúzia de contraexemplos. Se, contudo, for uma teoria normativa (sobre como a decisão judicial deveria ser num cenário ideal), então, ela não apenas volta a ser uma teoria plausível como também passa a só ser refutável com argumentos morais e políticos em favor de um modelo alternativo.
Expliquei que, quando se fala de uma teoria da interpretação, há quatro níveis epistemológicos em que a teoria pode estar situada: ela pode ser a) uma metateoria sobre como se constrói uma teoria da interpretação aceitável; b) uma teoria comunicativa da interpretação sobre o que é interpretar e os passos de um processo de interpretação aceitável; c) uma teoria normativa da interpretação, que defende que certa forma de interpretar é melhor que outras formas possíveis; ou d) uma metodologia da interpretação, que prescreva passos e critérios para interpretar de certa forma. Disse na palestra que, se o formalismo for uma teoria comunicativa, será pobre e controverso; mas ele será produtivo se for visto como uma teoria normativa e como uma metodologia interpretativa.
Segundo defendi, o formalismo é uma teoria normativa da legislação e da jurisdição. Enquanto teoria da legislação, prescreve que o legislador faça as regras de modo tal a não deixar senão o mínimo inevitável de espaço interpretativo e criativo para o julgador. Enquanto teoria da jurisdição, prescreve que, diante daquela legislação formalista, o julgador decida da maneira mais restrita possível ao significado linguístico do texto (textualismo) e, se o texto der margem a dúvidas, contorne essas dúvidas segundo convenções previamente fixadas (convencionalismo). Disse que era importante notar que há por trás do formalismo uma justificativa com base em dois ideais normativos: o do estado de direito e o da democracia como autogoverno (ver explicação mais abaixo).
O adversário do formalismo é o instrumentalismo, o qual se deve interpretar o texto da regra com vista aos fins que ela visa alcançar, podendo-se restringir, ampliar, modificar ou excepcionar conteúdo da regra com base nesta finalidade. No famoso exemplo de Hart da proibição de veículos no parque, quando o guarda se visse diante de uma bicicleta e tivesse dúvida sobre proibi-la ou não de entrar, o guarda formalista decidiria estritamente conforme o texto (se bicicleta é veículo e veículo está proibido, então, bicicleta está proibida), enquanto o guarda instrumentalista levaria em conta o suposto fim da regra (a regra diz veículo mas quer proibir só os que são perigosos, de modo, sendo veículo mas não sendo perigosa, a bicicleta poderia entrar). Talvez o guarda formalista até concordasse com o guarda instrumentalista que deixar a bicicleta entrar seria a solução mais razoável, mas consideraria que esse é um problema a ser sanado no âmbito da legislação (fazendo uma nova regra), e não da jurisdição (reinterpretando a regra). Ele não optaria pela solução mais razoável (deixar a bicicleta entrar) por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque quer honrar o ideal do estado de direito. No estado de direito, as autoridades têm seu poder limitado pelo direito e os cidadãos são governados pelo direito e suas determinações, e não por pessoas e suas opiniões e valorações. Se levasse em conta o fim que a regra visa alcançar, o guarda teria que descobrir ou atribuir este fim (que não está previsto no próprio texto) e diferentes guardas chegariam a diferentes conclusões sobre os fins visados pela regra. O cidadão que quer entrar com a sua bicicleta seria autorizado ou proibido não com base no direito, mas com base na interpretação deste ou daquele guarda. Seria governado por pessoas, e não pelo direito.
Em segundo lugar, porque quer honrar o ideal da democracia como autogoverno. O cidadão que quer entrar com sua bicicleta teve oportunidade de participar e influenciar (direta ou indiretamente) da decisão que proibiu a entrada de veículos, enquanto não teria nenhuma possibilidade de participar e influenciar a decisão do guarda que estivesse interpretando sobre o fim que essa regra visa alcançar. Ao aplicar o texto e nada mais, o guarda está privilegiando a decisão que o cidadão tomou em vez daquela que ele, guarda, tomaria em seu lugar. Neste caso, o cidadão está sendo submetido à regra que ele mesmo elaborou, fugindo da submissão à vontade de outrem e realizando o ideal de autogoverno. Desta forma, pode-se ver o formalismo como a teoria normativa da jurisdição que visasse a máxima realização dos ideais de estado de direito e democracia.
Finalmente, reforçando os dois pontos do formalismo (textualismo e convencionalismo), resta observar que, primeiro, o textualismo significa restringir-se maximamente ao texto, mas deve-se distinguir entre sentido claro (plain meaning) do texto (que é o que formalista quereria seguir), e sentido literal (que é pobre demais), sentido finalístico (comprometido com o instrumentalismo) e sentido razoável (comprometido com limites morais) do texto, que são exatamente o que o formalismo quer evitar. Segundo, o formalismo acredita que algumas convenções gerais (não há crime sem pena no âmbito criminal, o que não está proibido está permitido no âmbito civil, em dúvida interpreta-se pró réu, ou pró trabalhador, ou pró consumidor etc.) dariam conta dos casos de lacunas e antinomias, bem como orientariam a escolha entre alternativas de interpretação quando o texto tornasse essa escolha inevitável. Se essas convenções já forem levadas em conta pelo legislador na hora de fazer as regras (reforçando a democracia) e pelos cidadãos no modo como esperam que as regras sejam aplicadas (reforçando o estado de direito), contribuiriam para máxima fidelidade aos dois ideais normativos visados pelo formalismo.
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