"Lei Natural e Direitos Naturais": Cap. 1

Este é a primeira do que pretendo que seja uma série de postagens nas próximas semanas sobre a teoria do direito de John Finnis em "Lei Natural e Direitos Naturais" (1980).

Esta postagem resume o argumento de John Finnis no Cap. 1, "Apreciação e descrição do direito". A tese que Finnis defende aqui é que, se entendermos corretamente o sentido de "descrição", o jusnaturalismo não apenas é uma teoria descritiva do direito, como também fornece a mais justificada e iluminadora descrição do direito.

Contexto prévio. O positivismo jurídico tradicionalmente se apresentou como uma teoria descritiva, em vez de normativa. Isto é, como uma teoria que quer descrever e explicar o direito tal como constata que ele é, em vez de prescrever e orientar como ele deve ser. Ser descritiva é falar do direito que é, o direito positivo de sociedades reais. Ser normativa é falar do direito que deve ser, o direito ideal de sociedades hipotéticas. Sendo assim, uma das estratégias com que o positivismo descarta o jusnaturalismo é dizer que este último é uma teoria normativa. Dizer, pois, que, como o jusnaturalismo está interessado em aproximar o direito da moral, está falando do direito que deve ser (aquele moralmente correto e moralmente desejável), e não do direito que é (que é frequentemente amoral ou imoral em seus conteúdos e exigências). Neste capítulo, Finnis quer reverter este preconceito contra o jusnaturalismo, mostrando que o jusnaturalismo está "na mesma liga", no mesmo nível epistêmico, que o positivismo, isto é, no nível descritivo, e que neste nível apresenta inclusive vantagens (descritivas) em relação ao positivismo.

Descrição requer seleção. Quando o que se quer descrever tem muitos exemplares distintos (variedade extensiva), cada um com muitos aspectos a serem cobertos (variedade intensiva), há um passo, anterior à descrição, que é selecionar quais casos e quais aspectos são mais representativos e relevantes. Portanto, como não é possível, nem desejável, descrever todos os aspectos de todos os exemplares, é preciso selecionar os exemplares e os aspectos que serão descritos.

Seleção requer critérios. Então, descrição requer antes seleção. Esta seleção, porém, não pode ser arbitrária. Ela precisa se basear em critérios que sirvam bem à finalidade que a descrição quer alcançar. Uma descrição do direito, por exemplo, requer critérios para selecionar quais ordens jurídicas são exemplares mais representativos e relevantes e quais aspectos destas ordens jurídicas são mais representativos e relevantes do que o direito é. O positivismo tradicionalmente se concentrou em aspectos do direito que fossem tão básicos e constantes (normas, positividade, legalidade, coação etc.) que pudessem ser encontrados em todos os exemplares do direito que existem ou já existiram. É a abordagem do mínimo denominador comum entre todos. Isto é uma seleção (descrever apenas os aspectos que se repetem em todas as ordens jurídicas), que por sua vez pressupõe um critério do que é "essencial" (essencial é o que está presente em todos os exemplares, é o que nunca muda de um exemplar para o outro). O jusnaturalismo, por sua vez, considera que certas ordens jurídicas são casos mais exemplares que outras e que os aspectos do direito mais representativos não são os que se repetem em todas as ordens jurídicas, mas o que tornam tais as ordens jurídicas mais bem sucedidas e satisfatórias. Isto também é uma seleção (descrever os aspectos das ordens jurídicas mais bem sucedidas e satisfatórias que as tornam tais), que por sua vez pressupõe outro critério do que é "essencial" (essencial é o que faz com que o exemplar mais bem sucedido seja tal). É a abordagem do indispensável para o fim a que se destina.

Estes critérios não são neutros. Um positivista poderia admitir que descrição requer seleção e seleção requer critérios, mas dizer que os critérios de seleção do positivismo eram neutros e, por isso, a descrição do direito que o positivismo oferece era também neutra, enquanto os critérios do jusnaturalismo seriam moralmente carregados e, por isso, geraria algo que, por ser moralmente carregado, o positivista se recusaria a chamar de descrição. Eis como Finnis responde a esta objeção. É da natureza dos critérios que eles orientem escolhas, tornando certas opções melhores ou mais desejáveis que outras. Portanto, na medida em que um critério se funda em alguma noção do que é melhor ou mais desejável, ele não é, nem pode ser, completamente neutro. A neutralidade paralisaria a escolha, tornando todas as opções indiferentes entre si. O critério rompe com a neutralidade, fixando uma métrica do melhor e pior, do desejável e não desejável. Isto é assim quer falemos de critérios epistêmicos (clareza, simplicidade, poder explicativo, poder preditivo, apelo intuitivo etc.) quer falemos de critérios morais ou políticos (justiça, democracia, paz, ordem, segurança, previsibilidade etc.). Tradicionalmente, os critérios da pré-seleção de exemplares e aspectos do direito no positivismo foram critérios epistêmicos (recorrência em todos os exemplares, poder explicativo sobre a estrutura e funcionamento do direito etc.), embora fossem empregados também critérios morais e políticos não confessos (aptidão para controle e segurança, previsibilidade, capacidade justificatória para a obrigação etc.). Nenhum destes critérios é neutro. Donde concluir que a descrição do direito que o positivismo fornece, não sendo fundada em critérios neutros, também não era uma descrição neutra. A bem da verdade, segundo este raciocínio, nenhuma descrição é jamais neutra. A descrição do direito que o jusnaturalismo oferece é tão não-neutra quanto a do positivismo e quanto uma descrição precisa ser necessariamente.

Para instituições sociais, este critério é sua finalidade. Agora Finnis precisa de um argumento para defender por que uma descrição baseada nos critérios do jusnaturalismo seria melhor que uma baseada nos critérios do positivismo. Isto é, porque ela seria melhor, não moralmente, mas epistemicamente, ou seja, como descrição mesma. Segundo Finnis, este é o caso porque o direito não é um simples objeto ou fato, mas sim uma instituição social. Instituições sociais são finalísticas, isto é, servem a uma ou mais finalidades. Se se reúnem vários exemplares de tal instituição, alguns que alcançam mais, outros que alcançam menos sua finalidade, e se tenta encontrar as características presentes em todos eles, talvez até se encontre este mínimo denominador comum, mas ele não será capaz de responder à pergunta, mais fundamental, sobre que características estão presentes nos exemplares bem sucedidos e ausentes nos mal sucedidos que fazem com que uns alcancem sua finalidade e outros, não. Noutras palavras, a abordagem do indispensável para um fim é melhor que a abordagem do mínimo denominador comum porque a primeira responde, e a segunda, não, o que é essencial para que um exemplar daquela instituição social alcance a finalidade para a qual ela se destina. Se toda instituição social visa a um fim, a seleção que reúne os aspectos indispensáveis para atingir esse fim é melhor do que uma seleção que reúne casos desenvolvidos e primitivos, casos bem sucedidos e mal sucedidos, casos plenos e defeituosos etc., para tentar achar algo em comum entre todos eles. Esta última informação é menos relevante para o conhecimento daquela instituição social. Relevante mesmo é saber o que é decisivo e indispensável para que ela realiza sua finalidade.

Quanto à seleção dos exemplares: É preciso selecionar um caso central. O primeiro passo para descrever uma instituição social de acordo com sua finalidade é selecionar o caso central, isto é, o conjunto de exemplares mais representativos daquela instituição, seus casos mais plenos, desenvolvidos e bem sucedidos. Estes são exatamente os exemplares que atingem aquela finalidade mais intensa e plenamente. O conjunto de casos mais bem sucedidos de uma instituição social é o caso central desta instituição. Por exemplo (os dois exemplos que se seguem são meus, não de Finnis), se assumirmos que a democracia representativa é uma instituição social cuja finalidade é que os representantes sejam eleitos e suas decisões reflitam as preferências e interesses de seus eleitores, então, o caso central da democracia representativa seriam aqueles regimes democráticos que conseguem realizar aquela finalidade em maior medida. Da mesma forma, se assumirmos que o estado de direito é uma instituição social cuja finalidade é submeter o poder dos governantes à direção e ao limite da lei escrita e assim instituir um governo previsível e imparcial das leis, em vez de dos indivíduos, então, o caso central do estado de direito seriam aqueles regimes democráticos que conseguem realizar aquela finalidade em maior medida. É claro que ainda fica em aberto como se determina qual é a finalidade de cada instituição, principalmente quando houver desacordo a este respeito, mas isso Finnis tentará responder ao falar do ponto de vista adequado (ver mais abaixo).

Quanto à seleção dos aspectos: É preciso descobrir o significado focal. O segundo passo para descrever uma instituição social de acordo com sua finalidade é selecionar os aspectos do caso central que o tornam um exemplar bem sucedido, isto é, concentrar-se nos aspectos que fazem com que ele realize melhor que os outros a finalidade a que se dirige. O conjunto destes aspectos indispensáveis para atingir a finalidade da instituição social em questão é o significado focal desta instituição. Seguindo com um dos meus exemplos de antes, o significado focal de democracia poderia ser muito diverso do mínimo comum entre todas as democracias. O mínimo comum talvez fosse a existência de eleições diretas e periódicas, com sufrágio universal, mandatos limitados e temporários etc., coisas que existem tanto nas democracias representativas que vão bem como nas que vão mal, tanto nas que atingem sua finalidade quanto nas que não o fazem. O significado focal de democracia, por exemplo (lembrando que o exemplo é meu, não de Finnis), poderia incluir aqueles elementos e mais uma cultura política de pluralismo e tolerância, de diálogo e compromisso, de virtudes e responsabilidades cívicas básicas etc., elementos que, embora não presentes em todas as democracias representativas, são indispensáveis naquelas que conseguem realizar melhor sua finalidade. De novo, para ver como se escolhe entre múltiplas possíveis finalidades aquela a que uma instituição social realmente se dirige, ver o que Finnis fala sobre o ponto de vista adequado (abaixo).

Quanto à definição da finalidade: É preciso levar em conta o ponto de vista adequado. Finalmente, o terceiro e último passo para descrever uma instituição social de acordo com sua finalidade é levar em conta o ponto de vista apropriado. Finnis não é o primeiro a dizer que uma teoria descritiva do direito tem que selecionar de que ponto de vista faz a sua descrição. Holmes dissera que o direito devia ser descrito do ponto de vista do homem mau (bad man), preocupado apenas com seu próprio interesse, pois assim entenderíamos os limites, sanções e detalhes das leis. Hart dissera que o direito devia ser descrito do ponto de vista do homem confuso (puzzled man), que quer obedecer ao direito se pelo menos o informarem do que o direito quer que ele faça, pois assim entenderíamos a normatividade do direito e de seus conceitos chave. Raz dissera que o direito deve ser descrito do ponto de vista jurídico (legal point of view), o ponto de vista daquele que aceita a legitimidade da autoridade instituidora e por isso trata as normas jurídicas como fontes de obrigações genuínas, pois assim entenderíamos a normatividade que o direito só tem para quem faz uso do recurso heurístico de aceitar sua legitimidade presumida (a resposta de Kelsen com a norma fundamental como condição da ciência do direito, quando devidamente reinterpretada, é mais ou menos esta também). Pois bem, por sua vez, Finnis diz que, se a finalidade mínima do direito é regular a conduta dos indivíduos criando para eles obrigações, o ponto de vista adequado é o do indivíduo que busca no direito uma fonte genuína de obrigações, isto é, que busca no direito uma orientação prática que faça sentido do ponto de vista moral mais amplo. Fornecer esta orientação prática moralmente significativa, isto é, tornar-se uma fonte de obrigações morais genuínas é, então, a finalidade mínima do direito.

Conclusão. Dado o ponto de vista do indivíduo que busca no direito orientação prática moralmente significativa, a finalidade do direito é ser uma fonte genuína de obrigações morais. Então, o caso central do direito são as ordens jurídicas que conseguem, na maior medida possível, ser fontes genuínas de obrigações morais. E o significado focal do direito é o conjunto de aspectos que estas ordens jurídicas têm e que tornam possível que elas alcancem em maior medida aquela finalidade. A pergunta "o que é o direito?", do ponto de vista descritivo, se torna a pergunta "qual é o significado focal do direito?", ou seja, quais os aspectos de uma ordem jurídica exemplar que a tornam particularmente apta a gerar obrigações morais para seus destinatários. Ou ainda, sob quais condições o direito consegue gerar obrigações morais para seus destinatários. Como veremos nos capítulos seguintes, isso ocorre quando o direito assegura as condições do bem comum, que por ora vamos entender apenas como condições para que todos fruam de certos bens básicos em formas e medidas distintas de modo a serem capazes de buscar sua própria maneira de florescimento humano. Bem comum, bens básicos e florescimento humano, contudo, são noções para serem explicadas mais tarde, nos resumos de outros capítulos da obra. Mas o que desde agora fica clara é a resposta de Finnis à crítica de que os aspectos morais que o jusnaturalismo envolve em sua visão do direito fazem dele uma teoria normativa: Não é este o caso, é apenas que a descrição do direito, levando em conta o caso central, o significado focal e o ponto de vista adequado, não pode deixar de contar com elementos morais, porque é descrição com vista à finalidade de gerar obrigações morais para o destinatário. Não se trata de estar fazendo teoria normativa, mas de estar fazendo o tipo de teoria descritiva que o direito enquanto instituição social de fato requer.

Comentários

Tenório disse…
Resolvi comentar por aqui para ser um anexo ao texto. Professor, sobre a pertinência do seu comentário na última linha do tópico sobre a não-neutralidade dos critérios:

"A teoria do direito natural (...) torna as avaliações (feitas a partir da seleção de critérios), pelo teórico, declaradas e explícitas e as sujeita ao escrutínio e debate racional" (Finnis, Natural Law Theories, 2007). Talvez aí se encontre a vantagem descritiva a que Finnis se refere.

http://seop.illc.uva.nl/entries/natural-law-theories/

Ele vai dizer no Aquinas que ao decidir o que é importante nas relações humanas, quais são as estruturas importantes e as formas apropriadas de cooperação, os teóricos filosoficamente responsáveis (clear-headed) utilizam conscientemente e explicitamente um padrão particular.

Era isso, as traduções são "minhas" (a do ensaio da stanford só no estilo). Qualquer erro é minha culpa.
Fiquei em dúvida sobre se o comentário que postou para complementar o texto, e pelo qual eu agradeço, foi pretendido como uma refutação da afirmação de que os critérios não são neutros, ou como uma explicação de em que sentido eles não são neutros, ou ainda como um reforço de que eles de fato não são neutros. Se puder esclarecer como você interpreta as passagens citadas e o que pretendia quando comentou, me diga.
Tenório disse…
Foi mais um possível caminho para entender as afirmações do próprio Finnis sobre a superioridade da descrição jusnaturalista, já que nenhuma pode ser neutra. Sem pretensão de refutar a não neutralidade ou demonstrar que são neutros. Foi um reforço, tentando enxergar um direcionamento para entender porque seria uma descrição mais vantajosa.

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