Adaptação do normativo ao real: O caso das capacidades humanas e das circunstâncias sociais

Há problema com uma ética normativa que só poderia ser praticada por seres humanos despidos de afetos e inclinações e dedicados puramente à obediência à razão? Há problema com uma filosofia política normativa que prescreve um sistema que só funcionaria se todos fossem participativos e virtuosos? Há problema com uma teoria da decisão judicial que só melhoraria os resultados do direito se todos os juízes tivessem formação filosófica, tempo ilimitado e capacidade de descentramento autocrítico?

Estas perguntas são variantes da mesma questão filosófica: Ao prescrever o que seria o ideal, uma teoria normativa deve levar em conta as características e limites do real? Se deve, está autorizada a deflacionar sua idealidade para adaptar-se a estas características e limites? Se estiver, qual é o limite em que esta adaptação deixa de ser garantia de viabilidade e se transforma em cega legitimação do real e naturalização de capacidades e circunstâncias historicamente determinadas?

Considere a seguinte lista de teses para discussão:

1. Uma teoria normativa deve ser capaz de fornecer parâmetros com que orientar e avaliar a prática humana, sob pena de perder seu papel crítico;

2. Contudo, ela deve fornecer parâmetros que sejam possíveis de alcançar e realizar, sob pena de perder seu papel prático;

3. Para avaliar se os parâmetros são possíveis de alcançar ou realizar, ela deve levar em conta não apenas as capacidades humanas e as circunstâncias sociais em geral (em potência), mas o modo como essas capacidades e circunstâncias estão geralmente distribuídas (numa atualidade média);

4. Contudo, para avaliar as capacidades humanas e circunstâncias sociais, ela não pode naturalizar e absolutizar os limites atuais, tratando como naturais e definitivos limites que são históricos e conjunturais, passíveis de modificação se os incentivos, estruturas, arranjos e fins fossem outros.

5. Logo, uma teoria normativa deve fornecer parâmetros ideais que estejam em conformidade com os limites do real, levando em conta o que estes limites têm sido normalmente mas não naturalizando como necessários limites que são meramente contingentes, o que requer que ela saiba de antemão (ou tenha algum critério com que determinar) a diferença entre limites contingentes e necessários.

Isto dá uma ideia do problema. Mas existem outras variantes ainda mais complicadas. Por exemplo, a história não é um guia conclusivo de que capacidades e circunstâncias são necessárias ou continentes: O fato de que certa capacidade ou circunstância foi possível para os antigos não significa que o seja também para os modernos; o fato de que foi possível para a Europa colonizadora, não significa que seja possível também para ex-colônias lidando com o legado da colonização etc. Da mesma maneira, as ciências naturais e humanas não são um guia definitivo. O que ciências como a psicologia comportamental, a psicologia cognitiva, a psicologia do desenvolvimento etc. afirmam serem limites dos seres humanos está condicionado tanto por paradigmas teóricos e metodológicos que já sofrem influência de convicções históricas, éticas e políticas determinadas quanto por uma amostragem de experiência que ou supõe que sujeitos atuais são representativos de tudo que a humanidade já foi e pode vir a ser ou que existem semelhanças vinculativas entre seres humanos e espécimes animais submetidos à experimentação controlada.

Além disso, há a questão do custo e dos riscos da transição. Se certa capacidade hoje inexistente é possível de desenvolver ou se certa circunstâncias hoje inexistente é possível de produzir, mas desenvolver essa capacidade ou produzir essa circunstância requereria uma mudança radical do modo de vida e organização (por exemplo, retorno para pequenas comunidades, ou transição para um modo de vida frugal do ponto de vista da tecnologia ou do consumo), com sacrifícios de várias vantagens e interesses dos envolvidos, o custo talvez seja grande demais para recomendar a mudança; da mesma maneira, se aquela mudança só é possível por meio de um esquema transicional altamente arriscado (por exemplo, suspensão temporária do direito ou da democracia), isso talvez seja suficiente de novo para não recomendar essa via. Em ambos os casos, contudo, "talvez" é a palavra-chave. A abolição da escravidão tinha custos altíssimos de adaptação e a derrubada do Antigo Regime tinha riscos políticos altíssimos, mas ainda assim eram não apenas corretos, como necessários. Então, embora custos e riscos sejam importantes, não são considerações definitivas. Além disso, deve-se sempre levar em conta também os custos e riscos de permanecer na situação atual, os quais às vezes são maiores que de qualquer mudança.

Isso aponta, a meu ver, para a necessidade de que teorias normativas contenham pelo menos um esboço de tentativa de demonstração de sua viabilidade prática, isto é, uma explicitação de como interpretam as capacidades humanas e circunstâncias sociais envolvidas na realização dos parâmetros que fornecem. Não que eu nutra a esperança - a meu ver, ingênua - de que a realizabilidade prática possa ser determinada de maneira consensual e objetiva e vá decidir entre teorias normativas rivais qual delas é mais merecedora de crédito. Isso não vai acontecer. Cada teoria normativa terá sua própria teoria das capacidade humanas e das circunstâncias sociais, cortada e costurada sob encomenda para justificar suas orientações normativas. Mas pelo menos dessa forma se promoveria a discussão sobre este aspecto do normativo - realizabilidade prática, possibilidades, obstáculos, custos e riscos da realização de cada ideal normativo - que tem sido predominantemente negligenciado.

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