Interpretação Jurídica: Objeto da Interpretação
Interpretar é determinar o sentido de algo. Essa simples definição já remete a várias perguntas complementares. O que pode ocupar essa posição do "algo" a ser interpretado? O que é o "sentido" de alguma coisa? Existe um só "sentido" que aquele algo tem, ou há múltiplos sentidos que podem ser extraídos dele ou atribuídos a ele? Trata-se de determinar no sentido de descobrir o sentido que aquele "algo" já tem ou no sentido de escolher, entre os múltiplos sentidos que o "algo" pode ter, aquele que satisfaz algum critério ou serve a algum fim? Que critérios estão em jogo na interpretação jurídica? Que fins estão em jogo na interpretação jurídica?
Nesta postagem e nas seguintes vou indicar caminhos de resposta para cada uma dessas perguntas complementares. Nessa primeira postagem, vou tratar apenas do objeto da interpretação, do que é o "algo" que pode ser interpretado. Nas postagens seguintes, tratarei das outras perguntas.
OBJETO DA INTERPRETAÇÃO EM GERAL E DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
Primeiro, o que pode ser interpretado? O que pode ocupar a posição daquele "algo" cujo sentido será determinado? Uma forma oblíqua de responder é dizer que é o texto. Apenas texto pode ser interpretado. Contudo, como texto é qualquer coisa que possa ser objeto de uma interpretação (neste sentido, expressões faciais, sonhos, uso de cores num filme, tipos de curva numa escultura, atos falhos etc., na medida em que possam ser interpretados, são textos), ficamos na mesma.
A pergunta é, então: O que pode ser texto? Neste caso, acompanho Michael S. Moore, Stanley Fish e Ronald Dworkin: um artefato intencional. Algo que foi feito intencionalmente e no qual se pode divisar um sentido, deliberado ou não. Isso exclui nuvens, ondas, anéis arbóreos e camadas litoestatigráficas (salvo numa concepção teonaturalista ou animística da natureza), mas inclui sonhos, atos falhos, latidos do cachorro faminto e sintomas psicopatológicos (se vistos como artefatos do inconsciente ou algo assim). Apenas um artefato intencional pode ser texto.
Há, porém, um modo mais específico de fazer essa pergunta. Podemos perguntar o que, no caso da interpretação jurídica, é o objeto interpretado. Neste caso, a resposta é tripla: Pode-se interpretar uma norma em si mesma, um fato à luz da norma ou uma norma à luz do fato.
Interpretar uma norma em si mesma é a primeira tarefa da dogmática jurídica. Dizer, por exemplo, que o Art. 5 do Código Civil Brasileiro, em que se lê: "A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil", significa, entre outras coisas, que a maioridade civil se adquire com dezoito anos e que tal maioridade implica capacidade para praticar todos os atos da vida civil.
Há uma controvérsia sobre se é possível interpretar normas "em si mesmas", sem ter em vista nenhuma caso, sequer a vaga perspectiva de um caso hipotético. Em relação a isso, minha posição é que não. Só é possível interpretar uma norma em vista de algum possível caso para sua aplicação. No exemplo acima, é preciso conceber, mesmo que hipoteticamente, mesmo que quase sem perceber essa operação mental, o caso de alguém que completa dezoito anos e tem interesse de realizar sozinho atos da vida civil para poder interpretar que a norma de fato autoriza que ele o faça.
Mas, assim mesmo, vale a pena distinguir entre interpretação em abstrato e em concreto. Uma coisa é interpretar uma norma "em si mesma", que na verdade é interpretá-la tendo em vista o tipo de caso hipotético idealizado para o qual ela foi concebida, e outra coisa, bem diferente, é interpretá-la em vista de um caso concreto, que pode, em vários aspectos, diferir do caso hipotético idealizado, ou trazer à tona considerações fáticas e normativas que a norma não levou em conta.
Interpretar um fato, ou a totalidade dos fatos de um caso concreto, à luz de uma norma é a segunda possibilidade. É aqui que a função da norma como esquema de interpretação da conduta (atribuindo a um fato natural um sentido jurídico objetivo), de que falava Kelsen, vem ao caso. Alguém por acidente confunde um pote de açúcar com um vidro de veneno, servindo café à visita com veneno bastante para matá-la. Isso foi um acidente ou um homicídio? Se tiver sido homicídio, terá sido culposo ou doloso? Com que modalidade de culpa ou de dolo?
Nesta postagem e nas seguintes vou indicar caminhos de resposta para cada uma dessas perguntas complementares. Nessa primeira postagem, vou tratar apenas do objeto da interpretação, do que é o "algo" que pode ser interpretado. Nas postagens seguintes, tratarei das outras perguntas.
OBJETO DA INTERPRETAÇÃO EM GERAL E DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
Primeiro, o que pode ser interpretado? O que pode ocupar a posição daquele "algo" cujo sentido será determinado? Uma forma oblíqua de responder é dizer que é o texto. Apenas texto pode ser interpretado. Contudo, como texto é qualquer coisa que possa ser objeto de uma interpretação (neste sentido, expressões faciais, sonhos, uso de cores num filme, tipos de curva numa escultura, atos falhos etc., na medida em que possam ser interpretados, são textos), ficamos na mesma.
A pergunta é, então: O que pode ser texto? Neste caso, acompanho Michael S. Moore, Stanley Fish e Ronald Dworkin: um artefato intencional. Algo que foi feito intencionalmente e no qual se pode divisar um sentido, deliberado ou não. Isso exclui nuvens, ondas, anéis arbóreos e camadas litoestatigráficas (salvo numa concepção teonaturalista ou animística da natureza), mas inclui sonhos, atos falhos, latidos do cachorro faminto e sintomas psicopatológicos (se vistos como artefatos do inconsciente ou algo assim). Apenas um artefato intencional pode ser texto.
Há, porém, um modo mais específico de fazer essa pergunta. Podemos perguntar o que, no caso da interpretação jurídica, é o objeto interpretado. Neste caso, a resposta é tripla: Pode-se interpretar uma norma em si mesma, um fato à luz da norma ou uma norma à luz do fato.
Interpretar uma norma em si mesma é a primeira tarefa da dogmática jurídica. Dizer, por exemplo, que o Art. 5 do Código Civil Brasileiro, em que se lê: "A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil", significa, entre outras coisas, que a maioridade civil se adquire com dezoito anos e que tal maioridade implica capacidade para praticar todos os atos da vida civil.
Há uma controvérsia sobre se é possível interpretar normas "em si mesmas", sem ter em vista nenhuma caso, sequer a vaga perspectiva de um caso hipotético. Em relação a isso, minha posição é que não. Só é possível interpretar uma norma em vista de algum possível caso para sua aplicação. No exemplo acima, é preciso conceber, mesmo que hipoteticamente, mesmo que quase sem perceber essa operação mental, o caso de alguém que completa dezoito anos e tem interesse de realizar sozinho atos da vida civil para poder interpretar que a norma de fato autoriza que ele o faça.
Mas, assim mesmo, vale a pena distinguir entre interpretação em abstrato e em concreto. Uma coisa é interpretar uma norma "em si mesma", que na verdade é interpretá-la tendo em vista o tipo de caso hipotético idealizado para o qual ela foi concebida, e outra coisa, bem diferente, é interpretá-la em vista de um caso concreto, que pode, em vários aspectos, diferir do caso hipotético idealizado, ou trazer à tona considerações fáticas e normativas que a norma não levou em conta.
Interpretar um fato, ou a totalidade dos fatos de um caso concreto, à luz de uma norma é a segunda possibilidade. É aqui que a função da norma como esquema de interpretação da conduta (atribuindo a um fato natural um sentido jurídico objetivo), de que falava Kelsen, vem ao caso. Alguém por acidente confunde um pote de açúcar com um vidro de veneno, servindo café à visita com veneno bastante para matá-la. Isso foi um acidente ou um homicídio? Se tiver sido homicídio, terá sido culposo ou doloso? Com que modalidade de culpa ou de dolo?
Isto é interpretar o fato à luz da norma, isto é, determinar o sentido que a norma atribuiu ao fato, ou ainda determinar de que modo aquele fato deve ser lido à luz das considerações de certo ramo do Direito tal como orientado por aquela norma. Normalmente, os artigos e livros sobre interpretação jurídica se concentram na interpretação das normas, e não dos fatos, mas a interpretação dos fatos à luz das normas é parte essencial da interpretação jurídica.
Finalmente, interpretar uma norma à luz do fato, isto é, determinar o que uma norma tem a dizer sobre a solução de certo caso, é o que normalmente se quer enfatizar ao falar de interpretação jurídica.
Aqui é preciso muito cuidado para não confundir interpretação da norma em vista do caso com aplicação da norma ao caso ou com solução do caso. Estes últimos dois são, a meu ver, objeto de outra parte da filosofia do direito, a saber, a teoria do raciocínio jurídico e da argumentação jurídica.
Primeiro, solucionar o caso é dar a ele uma solução, a qual pode ou não decorrer da aplicação da norma a ele. Num caso, por exemplo, de solução por analogia, ou de construção de uma solução a partir de princípios daquele ramo do Direito, a solução a que se chega não é aplicação de norma anterior àquele caso concreto (embora use normas, a saber, a norma a partir da qual se faz a analogia, ou o princípio a partir do qual se faz a construção, nem o resultado da analogia nem o resultado da construção estavam, a rigor, previstos numa norma anterior que agora estivesse sendo apenas aplicada ao caso.) Logo, solução do caso e aplicação da norma são coisas distintas.
Segundo, aplicação da norma ao caso e interpretação da norma em vista do caso também não coincidem. Se uma norma diz que o limite de velocidade numa rua é 60Km/h, sob pena de multa, sua interpretação em vista de um caso em que o motorista estava a 80Km/h é que este caso excedeu o limite de velocidade e deve receber multa, embora a aplicação da norma ao caso concreto possa seguir uma direção diversa: Por exemplo, reconhecer que se tratava de uma ambulância transportando uma vítima em estado grave até o hospital mais próximo, e não aplicar a multa.
Finalmente, interpretar uma norma à luz do fato, isto é, determinar o que uma norma tem a dizer sobre a solução de certo caso, é o que normalmente se quer enfatizar ao falar de interpretação jurídica.
Aqui é preciso muito cuidado para não confundir interpretação da norma em vista do caso com aplicação da norma ao caso ou com solução do caso. Estes últimos dois são, a meu ver, objeto de outra parte da filosofia do direito, a saber, a teoria do raciocínio jurídico e da argumentação jurídica.
Primeiro, solucionar o caso é dar a ele uma solução, a qual pode ou não decorrer da aplicação da norma a ele. Num caso, por exemplo, de solução por analogia, ou de construção de uma solução a partir de princípios daquele ramo do Direito, a solução a que se chega não é aplicação de norma anterior àquele caso concreto (embora use normas, a saber, a norma a partir da qual se faz a analogia, ou o princípio a partir do qual se faz a construção, nem o resultado da analogia nem o resultado da construção estavam, a rigor, previstos numa norma anterior que agora estivesse sendo apenas aplicada ao caso.) Logo, solução do caso e aplicação da norma são coisas distintas.
Segundo, aplicação da norma ao caso e interpretação da norma em vista do caso também não coincidem. Se uma norma diz que o limite de velocidade numa rua é 60Km/h, sob pena de multa, sua interpretação em vista de um caso em que o motorista estava a 80Km/h é que este caso excedeu o limite de velocidade e deve receber multa, embora a aplicação da norma ao caso concreto possa seguir uma direção diversa: Por exemplo, reconhecer que se tratava de uma ambulância transportando uma vítima em estado grave até o hospital mais próximo, e não aplicar a multa.
Num caso desse tipo, em que se reconheceu a necessidade de uma exceção não prevista na norma, em que se exercitou a derrotabilidade da regra, se poderia inclusive dizer assim: A interpretação da norma em vista do caso levaria à aplicação da multa, mas uma consideração extra, não prevista, levou ao afastamento daquela primeira interpretação. Tal primeira interpretação, que acabou sendo afastada neste caso, é o objeto de preocupação da interpretação jurídica. O juízo de derrotabilidade pelo qual ela acabou afastada é tarefa da teoria do raciocínio jurídico e da argumentação jurídica, e não da teoria da interpretação. O resultado da interpretação jurídica não é necessariamente a última palavra em termos de como será feita a aplicação da norma ao caso.
O escopo da teoria da interpretação jurídica é mais restrito. Trata-se de determinar o sentido da norma em vista do caso.
Isso poderia sugerir que na interpretação jurídica só cabem considerações formalistas, como a literalidade do texto, a intenção do legislador ou a integração sistemática a outras normas.
O escopo da teoria da interpretação jurídica é mais restrito. Trata-se de determinar o sentido da norma em vista do caso.
Isso poderia sugerir que na interpretação jurídica só cabem considerações formalistas, como a literalidade do texto, a intenção do legislador ou a integração sistemática a outras normas.
Isto é falso. Considerações antiformalistas como a atualização do sentido histórico, a consideração de valores ou consequências sociais e a orientação a partir do propósito da norma também podem ter lugar na interpretação jurídica. Discutiremos isso ao falar sobre os critérios e propósitos da interpretação das normas.
O que pode, sim, acontecer em decorrência disso é que nem sempre será claro quando estamos falando de reinterpretação da norma ou de afastamento da norma por uma consideração não prevista. Imagine o caso em que uma norma previsse que a vítima do crime de estupro tenha que ser uma "mulher honesta", por exemplo. Agora imagine que uma interpretação histórica dissesse que, à época da produção da norma, esta expressão queria excluir prostitutas, mulheres promíscuas ou de reputação sexual duvidosa, mas que hoje em dia tal distinção não corresponde mais aos valores do Direito nem é compatível com a igualdade universal independente de escolhas pessoais e estilos de vida. Imagine que tal interpretação histórica recomendasse que não se distinguisse mais entre mulheres honestas e não honestas para determinar as vítimas possíveis do crime de estupro.
O que pode, sim, acontecer em decorrência disso é que nem sempre será claro quando estamos falando de reinterpretação da norma ou de afastamento da norma por uma consideração não prevista. Imagine o caso em que uma norma previsse que a vítima do crime de estupro tenha que ser uma "mulher honesta", por exemplo. Agora imagine que uma interpretação histórica dissesse que, à época da produção da norma, esta expressão queria excluir prostitutas, mulheres promíscuas ou de reputação sexual duvidosa, mas que hoje em dia tal distinção não corresponde mais aos valores do Direito nem é compatível com a igualdade universal independente de escolhas pessoais e estilos de vida. Imagine que tal interpretação histórica recomendasse que não se distinguisse mais entre mulheres honestas e não honestas para determinar as vítimas possíveis do crime de estupro.
Isso seria uma reinterpretação da norma em vista de um critério histórico? Ou seria um afastamento (derrota) de um dos elementos da norma em vista de uma consideração não prevista na norma (a mudança de valores)? Quão longe do sentido literal uma interpretação pode levar uma norma e ainda ser interpretação dela, e não afastamento ou reelaboração? Não é fácil determinar.
Talvez, inclusive, seja apenas uma questão de escolha de estratégia entre apresentar algo como uma reinterpretação ou como afastamento, uma escolha que tenha que ver com a simpatia do auditório à interpretação histórica, com a resistência do auditório à ideia de afastamento ou derrotabilidade, ou com as consequências, para aquele caso e para outros, da reinterpretação e do afastamento.
Talvez, inclusive, seja apenas uma questão de escolha de estratégia entre apresentar algo como uma reinterpretação ou como afastamento, uma escolha que tenha que ver com a simpatia do auditório à interpretação histórica, com a resistência do auditório à ideia de afastamento ou derrotabilidade, ou com as consequências, para aquele caso e para outros, da reinterpretação e do afastamento.
Neste caso, esta escolha estratégica do modo de apresentar o que em essência seria ainda o mesmo argumento, quer sob uma face, quer sob outra, pertenceria à argumentação jurídica, ou talvez, inclusive, à retórica jurídica, em sua versão mais tópica e direcionada a um auditório particular. Teremos oportunidade de voltar a isso noutras postagens desta mesma série sobre interpretação jurídica em geral.
Próxima postagem da série: "INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: O SENTIDO DA NORMA".
Próxima postagem da série: "INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: O SENTIDO DA NORMA".
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