Petição de princípio e tautologia

A petição de princípio é uma tautologia?

Vamos começar do começo. A petição de princípio (petitio principii) é uma falácia não formal. Falácia é um argumento dedutivo que, embora inválido, é capaz de enganar o raciocinador incauto. Uma falácia pode ser formal ou não formal.

É formal se tem um defeito no modo como as premissas são concatenadas para chegar à conclusão. Por exemplo: Os morcegos voam; as aves voam; logo, morcegos são aves. O problema aqui é que da afirmação de que o mesmo predicado (voam) cabe a dois sujeito distintos (morcegos, aves) não se pode concluir a identidade desses sujeitos: de dois sujeitos não se conclui um predicado.

A falácia é não formal se tem um defeito semântico (falácias de sentido, como no exemplo: o homem é um animal; animais são irracionais; logo, o homem é irracional - em que claramente o sentido com que se usa animal na primeira e na segunda premissa não é o mesmo) ou persuasivo (falácias de relevância, como no exemplo: João defende aumentos para os professores; mas João é um professor; logo, João está apenas falando em causa própria - em que as premissas não levam à conclusão, embora pareçam levar).

A petição de princípio é uma falácia não formal em que se tenta provar uma conclusão com base em premissas que já a pressupõem como verdadeira. Trata-se de uma falácia de relevância, porque o poder persuasivo do argumento depende de uma manipulação das premissas. Um exemplo famoso é o argumento de Descartes para provar a existência de Deus: sendo a idéia de Deus a idéia de um ser perfeito, a um ser que fosse perfeito não poderia faltar a existência, de modo que Deus, portanto, existe. Ora, mesmo supondo que, de fato, a existência fosse um dos atributos da perfeição, o que está longe de ser evidente, o argumento só prova que, se existisse um ser perfeito, esse ser teria que, para ser perfeito, existir. Isso não prova que esse ser existe. Se provasse, teria que existir uma ilha perfeita, um povo perfeito, um rio perfeito etc.

Assim, uma petição de princípio é uma falácia não porque derive a conclusão equivocadamente das premissas, e sim porque só consegue derivar a conclusão das premissas porque a conclusão é, ela mesma, pressuposta nas premissas.

Uma tautologia, contudo, não é uma falácia. Por definição, tautologia é uma proposição verdadeira, mas que não acrescenta nenhuma informação nova sobre a coisa de que fala. Por exemplo, dizer que um círculo é redondo. Ora, o próprio conceito de círculo pressupõe a retundidade, de modo que dizer dele que ele é redondo não é dizer nada que já não se soubesse ao saber que se trata de um círculo. O mesmo acontece ao dizer que as normas jurídicas são obrigatórias, que as normas legítimas são obedecidas pelos destinatários ou que decisões discricionárias deixam uma margem de escolha para o administrador. Tudo isso é verdade, não por conclusão, mas por definição, de modo que nada acrescentam.

Não quer dizer que tautologias sejam inúteis. Por exemplo, a equação F = m.a, da terceira lei de Newton, é uma tautologia (dizer que a quantidade de força é igual ao produto da massa do objeto pela aceleração que se imprime a ele não é dizer nada de novo, porque não há qualquer outra forma, que não essa, de calcular a força), mas está longe de ser inútil.

Assim, há pelo menos três diferenças relevantes entre petição de princípio e tautologia:

1) petição de princípio é um argumento (quer dizer, um conjunto de proposições encadeadas para chegar a uma conclusão); tautologia é uma proposição.

2) petição de princípio é inválida (uma falácia); tautologia é sempre verdadeira (embora seja uma verdade estéril).

3) petição de princípio é sempre desaconselhável, sendo sua presença suficiente para invalidar uma linha de argumento; tautologias são muitas vezes necessárias para fornecer definições e esclarecimentos de termos e conceitos empregados.

Espero ter sido claro.

Comentários

Anônimo disse…
Claríssimo!!!
AS disse…
Excelente.

Há pouco tempo, explicaram-me petição de princípio como algo diferente do que eu imaginava.

Lendo seu texto, percebi que a confusão fora feita justamente com essa "tautologia".

A confusão deve ser bastante comum.

Ficou bem claro.
Abs.
Fabiana disse…
Grata!
Anônimo disse…
Fico feliz que a postagem tenha podido ajudar vocês de alguma forma.
Jefferson Góes disse…
Muito bom mesmo!!
Anônimo disse…
Meu caro, sou estudante de filosofia e direito e já tenho uma considerável bagagem em lógica e é impressionante como as pessoas confundem esses dois conselhos. Para ser sincero, o próprio dicionário aurélio comete esse erro. A sua diferenciação foi muito acurada. A internet está precisando de mais pessoas como você.
Anônimo disse…
muito bom! postagem otima!
Anônimo disse…
DIDÁTICA ESPETACULAR. VISITAREI SEMPRE O "FILÓSO GREGO".
Laureano disse…
Caro colega ,admiro muito a forma clara e concisa como expos o assunto.Porém ,gostaria de lhe perguntar se achas mesmo que a definição de força é relmente alcançada atravs de um procedimento analítico,sem uma sintetização com a empiria, como sujeres quanda qualificas a lei de Newton como tautologica ?
Anônimo disse…
Laureano, obrigado por seu comentário e por seu elogio. Quanto à questão levantada, desculpe, mas, em princípio, não vejo nada na noção lógica de tautologia que tenha a implicação epistemológica de que seu conteúdo tenha sido obtido "a priori", com independência da experiência. Por que uma tautologia não poderia se referir a um conteúdo empírico?
Laureano disse…
Sim perfeitamente,a noção tautologica é logica e não pode ser misturada a filosofia transcedental tens razão.Obrigado Abraço.
Daíto disse…
Ótima explicação.
Salvo engano, o argumento ontológico, citado para justificar o exemplo da falácia " petitio principii", foi formulado por Santo Anselmo e não por Descartes.
Anônimo disse…
Daito, certamente foi Sto. Anselmo, não quis dizer que Descartes tivesse sido o primeiro a utilizar o argumento, apenas que ele o fez.
Meu amigo sou Paraense com grande orgulho, mas vivo em Lisboa, a mais de 45 anos, graça aos inumeros amigos que tenho aí, consigo matar saudades da nossa linda cidade de Belém, comemdo em Lisboa, o nosso vatapá, caruru, acaí, doce de cupuaçu, bacuri, etc.
Amigo, gostaria de saber se é familiar do ilustre historiador Professor Geraldo Coelho.Um abraço de Eloi Couto Júnior
Salomão disse…
André, gostei do texto, mas quero fazer uma ressalva, a petição de princípio não é inválida. na verdade ela é sempre válida.

Veja:
premissa I: p
premissa II: q
conclusão: p

Isso é sempre válido, na medida que é impossível partir de premissas verdadeiras e chegar a uma conclusão falsa.

O que se pode dizer é que o argumento com uma petição de princípio pode não ser sólido (pois pode contemplar premissas falsas) e certamente não é convincente, mas válido ele é... (afinal vc está concluindo uma das premissas).

Grande Abraço,
Carlos Lavieri
Anônimo disse…
Gostaria da resposta à questão da validade da Petição de Princípio.
Também solicito ao André Coelho e aos demais usuários do site indicações de livros de lógica. Obrigado.
Anônimo disse…
Eloi, infelizmente não conheço o professor em questão. Mas você pode me dar alguma informação sobre de quem se trata?

Carlos e Anônimo, o Carlos tem razão, ali onde disse que a petição de princípio é inválida, deveria ter sido mais preciso e dito o seguinte: do ponto de vista lógico, ela é válida, porque, como a conclusão já está pressuposta na premissa, satisfaz a condição básica de validade dos argumentos dedutivos, que é a impossibilidade de que, sendo verdadeiras as premissas, seja falsa a conclusão; contudo, do ponto de vista epistemológico, ela não é um ganho de conhecimento e não cumpre o que promete fazer, que é me dar um motivo para acreditar em p que não envolve o prévio compromisso com a crença em p. Seria mais adequado dizer que ela é estéril, e não exatamente inválida. Agradeço pela observação.

Anônimo, consulte antes de tudo o Introdução à Lógica, do Irving M. Copi.
Marcelo Carvalho disse…
Sou estudante de Arquitetura, e foi citado em um livro que estou lendo para elaboração de em trabalho o termo "Petição de Princípio", lhe parabeniso pela esplicação arrespeito do termo, pois assim pude entender de forma clara o significado.
Anônimo disse…
Contente por ter ajudado.
Anônimo disse…
Sou jurista. A par da didática perfeita, explicação é de grande alcançe prático. Obrigado pelo esclarecimento. Parabéns.
renan disse…
Se eu dizer: "Tostines vende mais porque é mais fresquinha, e é mais fresquinha porque vende mais", isso é uma tautologia ou petição de princípio?
Vanessa Jesuíno disse…
André, o argumento da existência de Deus que tu usou para exemplificar não é de Descartes. É o argumento ontológico de São Tomás de Aquino.
Não é isso?
Anônimo disse…
Não, é mesmo o argumento de Descartes nas Meditações, que retoma um argumento usado por Anselmo e que foi criticado por Kant como sendo falacioso na Crítica da Razão Pura. Tomás lançava mão mais frequentemente do argumento dos graus, do argumento físico-cosmológico etc.
Vanessa Jesuíno disse…
Sim, Santo Anselmo no Proslogion. Certo!
Anônimo disse…
Sim, perfeito, isso mesmo!
Anônimo disse…
Me desculpe mas sou aluno do curso de psicologia e não.consegui entender muito bem o que é a petição de princípios.
Hellraiser disse…
Eu to inpreçionado con a inguinorançia das peçoas que aqui postam con relassão à a gramateca brazilera!!!
Sério, tem uns erros de português em vários comentários aqui que fazem me questionar como estas pessoas chegaram a universidade ou a se interessar por um assunto mais complexo, sendo que são tão deficientes na base...
Ou intaum eu ki to çendo frexco!
Hellraiser disse…
blig blig bluuug
Anônimo disse…
A coisa dos erros gramaticais é meio sistêmica mesmo, você encontra em praticamente qualquer fórum na internet. Em parte é deficiência dos que escrevem, em parte é leniência do meio virtual com isto.

Em relação a blig blig bluuug, nada a comentar.
roberta Maciel disse…
muito claro como sempre.

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