Narrativa e Realidade (I)

Esse um dia talvez seja o título de uma obra minha. Talvez. Não sei. O fato é que tenho pensado muito a respeito das relações entre narrativa literária e construção do sentido da realidade. Tenho tido muitas ideias a respeito, ideias que anoto, que pondero, que guardo para retomar mais tarde. Ideias que geram outras ideias e que martelam na minha cabeça, retornando sempre, de forma reiterada e com intensidade crescente. Assim, ou se trata de um destino intelectual, ou de obsessão patológica. Ou bem podem ser as duas coisas. Vou tentar expressar, de modo ainda introdutório e fragmentário, o estado das minhas reflexões acerca desse tema, que ainda deve levar muito tempo e muita estruturação até que se torne maduro o bastante.

1. Assim como o século XVIII foi o século da lei, o XIX, da história, o XX, da linguagem, o século XXI será o século da literatura. Em todos os domínios do saber e da cultura, haverá uma guinada literária. (Esse é mais um palpite, quase uma profecia, do que exatamente uma reflexão)

2. A realidade tal como a percebemos é toda estruturada literariamente. Não podemos fazer outra coisa que não contar histórias sobre o que é (o fato), o que pode ser (a ficção) e o que deve ser (o ideal).

3. Uma teoria normativa é uma narrativa que corrige o curso de uma narrativa prévia, tomada como factual. Constata que a narrativa tomou certo curso, imagina um curso alternativo, suposto como melhor ou mais correto, e aponta sua preferibilidade ou obrigatoriedade.

4. O discurso das ciências nomológicas (que procuram descobrir leis) não foge à narrativa. Enunciar leis é enunciar as condições a que todas as narrativas estão inevitavelmente submetidas, ou, para ser mais preciso, as condições de possibilidade de narrativas plausíveis (ou condições de plausibilidade da construção narrativa).

5. Nomológico e idiográfico são ambos narrativos. O nomológico se ocupa das regras a que se devem submeter os eventos narrativos; o idiográfico, dos eventos narrativos que se submetem àquelas regras. Um se ocupa das regras do jogo, o outro dos lances do jogo. Um é uma sintaxe narrativa, o outro, uma semântica narrativa.

6. Nossas narrativas se submetem a modelos abstratos: os gêneros narrativos (comédia, tragédia, drama, romance etc.). Um gênero é uma estrutura capaz de ordenar e dar sentido a uma massa caótica de "dados": eventos, memórias, percepções, suposições, emoções e desejos. Sem estarem postos na forma de um gênero narrativo, os dados carecem de sentido.

7. Entre os dados e os gêneros, porém, é preciso um intermediário. Trata-se dos esquemas narrativos, conjuntos de paradigmas e regras através dos quais se transpõe dados para narrativas específicas. Os gêneros são unitários e fixos. Os esquemas narrativos são móveis e plurais.

8. Existe uma tensão entre dados e gêneros. A narrativa sofre a pressão dos dados, que se recusam a manter-se nos limites dos gêneros, e dos gêneros, que querem escravizar os dados. Ceder a uma pressão ou à outra é perder ou sentido ou realidade.

9. Dados comportam qualquer gênero. A escolha por estruturar os dados na forma de comédia, de drama, de tragédia, de sátira, de romance etc. cabe inteiramente ao poeta. Ele, no entanto, está sujeito as pressões de seus próprios objetivos e de seu próprio contexto. A escolha é livre, no sentido de que poderia (em tese) ser outra, mas é forçada, no sentido de que não poderia (de fato) ser outra.

10. Assumir o caráter literário da realidade não implica num "tudo pode, tudo vale". Pelo contrário, implica assumir as regras e os limites da narratividade literária como regras e limites da possibilidade de sentido, de conhecimento e de ação.

Essas são reflexas esparsas e confusas, uma teoria em estado embrionário. Não espero que entendam, nem que gostem, nem que comentem. Se quiserem, no entanto, emitir opiniões, fiquem à vontade.

Comentários

Anônimo disse…
Será mais fácil comentar Sobre o Brega (estilo musical) hehe.

Forte abraço, saudade.

Remi Barros
Débora Aymoré disse…
Olá, André.

De fato, parece-me que a parte mais difícil de aceitar inicialmente seria o item 1 (talvez porque seja profundo e a minha adesão seja posterior). Por outro lado, partindo do pressuposto de que "tudo é narrativa", que me parece ser a tese de fundo da sua ideia, seria necessário escrever um livro para demonstrá-lo. Parece-me que, infelizmente, como outras teses normativas (e que, portanto, se projetam para o futuro), apenas o desenvolvimento da história confirmaria ou não a permanência da tese. O que quero dizer é que talvez cada um dos autores contribuiram para a generalização em épocas que você apresentou, não tivessem em vista esta mesma generalização, que só foi possível depois de passados os séculos. Então, exorto-o veementemente a escrever logo as primeiras páginas da obra, para que eu possa lê-la, espero, nos próximos anos.

Além disso, um comentário pontual: você utilizou especialmente nos itens 7, 8 e 9, o termo "dado". Será que são seria o caso de substituí-lo por "evento", pois este segundo seria menos comprometido com uma visão objetiva da realidade? A não ser que seu pressuposto geral sobre a realidade guarde ainda, apesar do postulado narrativo, uma certa independência dos dados em relação à intepretação.

Por favor, escreva o livro. Este assunto me interessa bastante.

Abraço.
Fernanda disse…
Ótimas inspirações para escrever!!
Mas antes você vai escrever o "Com KANT, Contra KANT" XD

A respeito do tema, agora. Acho que esta nova leitura a partir da 'narrativa' é promissora e muito interessante. Como disse a Débora, é um tema que me interessa muito, e pretendo continuar nele depois do TCC.

Espero que continue assim. Se for preciso construímos uma cadeira 'daquelas' para você usar (escreveria todo o livro bem rápido XD). Ainda modelada igualzinha as cadeiras de avião.

Beijos!
Anônimo disse…
Remi, sinta-se livre para comentar sobre o brega, então. Espero pelo seu comentário na postagem de baixo. Abração!

Débora, obrigado pelo estímulo. Ainda vou tentar dar mais corpo a essas intuições antes de escrever exatamente o que eu quero. Sobre a coisa do "dado", você tem razão, levanta problemas epistemológicos, mas não posso usar "fatos" nem "eventos", porque considero que algo só se torna um "fato" ou um "evento" no interior de uma narrativa. Então, fica díficil escolher um termo para aquilo que é "posto" na forma de narrativa, para aquilo que se converte em fato ou evento na narrativa. "Dado" é um nome provisório, e até certo ponto infeliz, para um conceito no qual ainda preciso pensar melhor. Beijos!

Fernanda, vou ver em que minhas reflexões podem ajudar nas suas, ok? Sobre a cadeira, acho que não vai precisar. Se eu ficar indo e vindo na rota Belém-Florianópolis, vou ter várias oportunidades de ter meus "nap insights".
Débora Aymoré disse…
Incompreensões à parte, vou contar uma historinha (aproveitando que a postagem tem relação com narrativa). Outro dia estava saindo de uma defesa de mestrado e eu e uns colegas começamos a conversar lá fora sobre a dificuldade que é colocar as ideias no papel (ou no computador, tando faz). Não que você tenha esta dificuldade, na verdade, não tenho como afirmar isso. Mas, em todo o caso discutíamos sobre a teoria da "resistência do papel", que não tem nada a ver com o fato de ele ser áspero devido ao material de que é feito, mas sim com a uma questão recorrente para todo escritor: quando se trata de colocar as "ideias" no papel, parece que o papel não aceita qualquer coisa e nem de qualquer jeito. Bem, teorias metafísicas também à parte, acho que a melhor explicação seria a de que as ideias resistem a limitação. Além disso, é por saber da dificuldade que tenho quando tento colocar minhas ideias no papel que de algum modo sugeri que você escrevesse. Não a obra acabada, mas partes, ensaios, explicitações das ideias mais abstratas e subjetivas, pois, quem sabe ao objetivá-las, as ideias se modifiquem e, ganhando forma, cheguem a sua perfeição. Desculpe, acabei sendo literária demais.
Anônimo disse…
Sua historinha foi muito apropriada, meu bem. Eu acho que vou mesmo tomar o seu conselho e ir elaborando, pouco a pouco, na forma de pequenas postagens e ensaios, cada uma das premissas que esbocei na postagem. Eu já tive antes uma conversa com você sobre a teoria de que algumas ideias são muito elevadas ou profundas para serem postas em palavras, seja na fala, seja no papel. E naquela oportunidade já expressei a minha contrateoria: de que, na verdade, o texto da linguagem é um teste de qualidade; de que nossa dificuldade tem a ver com a falta de precisão, de clareza e de articulação de nossas ideias; de que, por estarem obscuras e contarem com nossa convicção, elas adquirem para nós um ar misterioso e místico; de que a expressão linguística nos causa frustração porque "naturaliza" nossas ideias, tornando-as ideias entre outras, arrancando-lhes a aura de intuições místicas. E, embora pense assim (na verdade, exatamente porque penso assim), concordo com sua sugestão da urgência de escrever essas ideias, mesmo que de modo gradativo e por tentativas modestas. Beijos!

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