Tragédia: sofrimento e razão
Toda tragédia é uma história sobre a liberação do sofrimento por meio do sofrimento extremo. Este tema é em si mesmo um paradoxo, cuja percepção e enunciação não escapou aos mais argutos filósofos do trágico, de Aristóteles a Nietzsche. De que modo o sofrimento pode liberar do sofrimento é a questão que toda tragédia deve responder à sua maneira, e em grande parte o sucesso de uma tragédia depende do quão inovadora e bem construída for sua resposta a essa questão. O Édipo Rei, que muitos reputam ser a tragédia por excelência, respondeu a ela dizendo que o sofrimento não é imposto pelo destino, mas pela tentativa do homem de fugir ao destino. Sófocles representou no tirano de Argos a própria encarnação da vontade arrogante do homem que não quer se submeter à vontade dos Deuses, dando voz à crítica conservadora contra as ousadias da razão que habitava a ágora. No Édipo, o sofrimento que o destino impõe é resposta à tentativa de evadir-se dele e cessa assim que se aceita submeter-se ao curso que ele projetou. Já a Orestéia, que é a grande adversária do Édipo pelo posto de maior tragédia antiga, respondeu diversamente, dizendo que o sofrimento resulta do crime e a liberação do sofrimento se alcança pela justiça. Ésquilo representou no jovem Orestes aquele que foi justo não porque não cometeu crime, mas porque cometeu um crime que punia um outro, antevendo, assim, o argumento filosófico que vê na pena um bem, porque repara o mal com outro mal. Na Orestéia, o sofrimento que o destino impõe é resposta à violação da lei, mas só precisou servir-se da vingança como sua executora enquanto não havia a justiça para dar a ela sua expressão mais racional. Se no Édipo a razão é a responsável pelo sofrimento, na Orestéia é dela que se pode esperar o fim do sofrimento.
Comentários
1. É improvável que a peça de Shakespeare assuma os elementos da antropologia e da ética gregas. Shakespeare reelabora a antropologia e a ética anteriores (grega, cristã e renascentista) e inventa novas formas de conceber as duas coisas. A helenização de Shakespeare me parece infundada.
2. Parece-me que na peça há um conflito:
a) entre loucura (acreditar no fantasma, entregar-se à vingança) e razão (acreditar no mundano, ser razoável e diplomático com a mãe e o tio), de modo que Shakespeare nos interpela: qual dos dois lados é a verdadeira loucura e qual dos dois é a verdadeira razão?
b) entre dever (a honra exige que se vingue a morte do pai) e liberdade (não se quer ser esmagado por um destino que não se escolheu), de modo que Shakespeare, novamente, nos interpela: qual dos dois é a verdadeira prisão (fazer o que se deve ou ceder às tendências naturais) e qual dos dois é a verdadeira liberdade?
3. Mesmo que o conflito fosse entre razão e paixão, não vejo por que o tema da determinação e do livre-arbítrio seria central. O destino - se é que esse elemento intervém na peça - seria, no máximo, a perspectiva de honra que se apresenta para Hamlet, mas que ele pode, se quiser, recusar. Então, ele não é um destino que suprime ou limita o arbítrio, mas sim que só através de uma escolha dele é que pode realizar-se. O que haveria nisso de determinação?
Depois desta pequena defesa da própria possibilidade do meu argumento, queria mostrá-lo para você em forma de estrutura, para ver se consigo provar que não falo nada absurdo. Deste modo, considero que poderia estruturar minha argumentação das postagens anteriores assim: (1) uma obra literária possui conteúdo ético, quando apresenta situações que, por exemplo, levante questionamentos sobre o agir ou não; (2) uma vez que cada situação-problema será resolvida de algum modo (ou a personagem agirá ou não agirá), podemos retirar disso o sentido ético geral; e, (3) este sentido ético geral aponta para certa concepção de homem (do autor ou do intérprete). Agora, retornando para Shakespeare, se ao invés de adotarmos a oposição razão-paixão, utilizamos a oposição razão loucura, parece-me que, ainda assim, estaríamos tratando de um jogo de "forças". Sendo assim, o homem, no caso, a personagem Hamlet não seria livre, pois não poderia escolher entre um terceiro que não estivesse presente na dualidade razão-loucura. Quer estejamos tratando do homem grego, ou dos elementos que você levantou como sendo próprios do homem shakespereano, o fato é que, em ambos os casos, temos sim uma determinação: racional-passional ou racional-louco. E, a consequência epistemológica que quero extrair disso é essa: as causas da ação (ou da não ação) estão imbricadas neste jogo de "forças" e, portanto, conhecer o homem é conhecer as causas do sofrimento. Já que atribuir a razão do sofrimento ao acaso ou ao destino ou à ação dos deuses ou da ação de forças sobrenaturais, seria, simplesmente, desistir de conhecê-las. Neste sentido é que digo que o sofrimento não é irracional, pois afirmar sua irracionalidade equivaleria, nesta tese, a desistir de buscar as causas.