Tragédia: sofrimento e razão

Toda tragédia é uma história sobre a liberação do sofrimento por meio do sofrimento extremo. Este tema é em si mesmo um paradoxo, cuja percepção e enunciação não escapou aos mais argutos filósofos do trágico, de Aristóteles a Nietzsche. De que modo o sofrimento pode liberar do sofrimento é a questão que toda tragédia deve responder à sua maneira, e em grande parte o sucesso de uma tragédia depende do quão inovadora e bem construída for sua resposta a essa questão. O Édipo Rei, que muitos reputam ser a tragédia por excelência, respondeu a ela dizendo que o sofrimento não é imposto pelo destino, mas pela tentativa do homem de fugir ao destino. Sófocles representou no tirano de Argos a própria encarnação da vontade arrogante do homem que não quer se submeter à vontade dos Deuses, dando voz à crítica conservadora contra as ousadias da razão que habitava a ágora. No Édipo, o sofrimento que o destino impõe é resposta à tentativa de evadir-se dele e cessa assim que se aceita submeter-se ao curso que ele projetou. Já a Orestéia, que é a grande adversária do Édipo pelo posto de maior tragédia antiga, respondeu diversamente, dizendo que o sofrimento resulta do crime e a liberação do sofrimento se alcança pela justiça. Ésquilo representou no jovem Orestes aquele que foi justo não porque não cometeu crime, mas porque cometeu um crime que punia um outro, antevendo, assim, o argumento filosófico que vê na pena um bem, porque repara o mal com outro mal. Na Orestéia, o sofrimento que o destino impõe é resposta à violação da lei, mas só precisou servir-se da vingança como sua executora enquanto não havia a justiça para dar a ela sua expressão mais racional. Se no Édipo a razão é a responsável pelo sofrimento, na Orestéia é dela que se pode esperar o fim do sofrimento.

Comentários

Débora Aymoré disse…
Oi, André, sou eu novamente. Resolvi ler todas as postagens novas. Sem dúvida, mais um tema de meu interesse. Considero que o tema geral tratado nas tragédias é o da relação entre liberdade e determinação, neste caso, aplicado ao campo da ação humana. Desconsiderando várias especificidades, gostaria de apresentar a ideia do filósofo Aristóteles, para que possamos de repente pensar conjuntamente esta relação. Aristóteles afirma que a ciência é a busca das causas, apresentando sua teoria as quatro causas e, quando trata do acaso e da necessidade, afirma que há várias posições que tentam explicar o acaso, sendo as três principais: 1) tudo é determinado (neste caso, para Aristóteles, uma desistência em relação a investigação); 2) natureza é gerada por acaso, depois segue por necessidade (provavelmente tese de Demócrito - atomista); e, 3) não é compreensível pela razão humana (embasado na religião grega). A relação que gostaria de estabelecer entre a discussão do Aristóteles sobre o acaso e a necessidade e a tragédia grega é a seguinte: se eu afirmo que o acaso (ou destino, para a tragédia) é gera mudança sem, no entanto, ser cognoscível, estou, para Aristóteles afirmando a impossibilidade de conhecimento e de ciência. Assim, falar em destino ou em ação divina é negar a potencialidade humana para descobrir a causa dos movimento (no caso, das ações humanas, que também é movimento, para Aristóteles). Deste modo, o acaso, para Aristóteles seria uma causa eficiente acidental, ocorrendo concomitante, ou seja, uma causa que ocorre simultâneamente com a causa "principal" e, portanto, poderíamos confundir com a principal, que, no caso das ações humanas seria a deliberação. Neste sentido, teríamos ainda uma dualidade entre liberdade e determinação, ou em alguns casos, como nos exemplos da tragédia em que a ação divina é colocada como provocando mudanças na vida dos homens, não teríamos apenas desistido da investigação sobre as causas "principais", e não nos concentrando nos eventos concomitantes? Desculpe, não sei se fui clara, mas, enfim, vamos conversando.
Anônimo disse…
Eu acho que a temática principal das tragédias não é tanto a inevitabilidade do destino, mas sim a irracionalidade do sofrimento, que atinge maus e bons às vezes de modo arrasador e sem razão aparente. A temática da inevitabilidade é marcante, por exemplo, no Édipo e na Antígona (inevitabilidade do destino imposto pelos deuses) e na Orestéia (inevitabilidade do destino tecido pelos próprios homens), mas não é assim no Ájax, no Prometeu Acorrentado, na Medéia, em Macbeth, em Júlio César, em Hamlet, em Romeu e Julieta etc. A temática que, essa sim, liga todos eles é a do sofrimento, sua gratuidade ou causação, e a postura que devemos ter perante ele, de evitação, de superação ou de resignação. A representação dos Deuses como seus causadores é apenas a de uma causa desconhecida, não inteiramente compreensível nem dominável, com que temos de lidar, porque estamos, queiramos ou não, sujeitos a ela todo o tempo.
Anônimo disse…
Sobre a teoria aristotélica das causas e do movimento, acho que ela é exatamente o exorcismo da tragédia, porque não deixa espaço para o irracional, simplesmente nega que existam coisas (e, portanto, inclusive sofrimentos) gratuitas e incompreensíveis e não coloca como problema os sofrimentos contingentes e injustos por que passam mesmo os homens bons (Na Ética a Nicômaco, Aristótles diz com toda tranquilidade que um homem justo a quem ocorresse uma grande fatalidade ou perda não seria feliz, embora não tenha tido qualquer culpa no mal que lhe ocorreu. Ele simplesmente deu azar. Acontece...). Assim, o racionalismo da visão aristotélica é, na sua filosofia da natureza, uma tentativa de afastar o fantasma do irracional e, na sua filosofia prática, uma resignação à contingência do mal. É assim que Aristóteles, na sua Poética, a propósito da tragédia, falará de "hamartia" ou falha trágica do heroi, aquela que detona toda a cadeia trágica que se abaterá sobre ele, incluindo nela não apenas o que o heroi faz de "mal" em sentido moral, mas também o erro que comete por ignorância, ingenuidade ou mesmo, veja só, por virtude. Como disse, para Aristóteles a gratuidade do mal que se abate sobre o justo não é absolutamente um problema a ser resolvido, mas um simples fato da vida a ser aceito.
Débora Aymoré disse…
Olá, André. Preciso ser muito franca e dizer que não conheço todas as tragédias que você citou, mas acho que seria interessante analisar cada uma e ver até que ponto a generalização tragédia = irracionalidade do sofrimento é válida. Vou pegar um exemplo que você citou, o Hamlet, pois este pelo menos eu já li e posso fazer algumas afirmações a respeito. A personagem principal desta tragédia, chamada Hamlet, é usualmente descrita como um homem em dúvida quanto a vingar-se do assassinato de seu pai. Parece-me que, neste caso, teríamos duas perspectivas a partir da qual analisar sua atitude: (1) Hamlet é uma personagem extremamente racional, que pondera suas ações. Ou, (2) Hamlet é uma personagem extremamente passional e, por isso, age sem ponderar suas ações. Em ambos os casos apresenta-se a relação entre razão e emoção ou paixão. Se compreendemos o homem como um ser duplamente determinado, por sua razão e por sua emoção, veremos que, na verdade, ele é um campo de batalhas entre "forças" em oposição. Assim, a depender do tipo de estímulo que receba, pode tender para uma ou outra. Relacionando esta análise com a tragédia, que me parece apresentar fundo ético, teríamos a situação do homem que, impulsionado por "forças" opostas, tem que decidir sobre que atitude tomar. Ora, no caso de Hamlet, temos alguns elementos interessantes: primeiro, uma aparição do "além", ou seja, a alma de seu pai que urge vingança; segundo, o Hamlet racional, que claudica, quesiona-se sobre a melhor atitude a ter; e, terceiro, o Hamlet emocional, que deseja a qualquer preço realizar a vingança. Desta caracterização, poderíamos destacar pelo menos três interpretações possíveis do desfecho da tragédia: (1)Hamlet realizou a vingança baseado em uma força sobrenatural ("alma do pai") que, desde o início da obra já determina o seu destino; (2) Hamlet realizou sua vingança porque decidiu que era a melhor atitude a ter, sendo, portanto, uma deliberação racional; e, (3) Halmet realizou a vingaça por falta de controle sobre as próprias emoções e, neste sentido, é um destemperado, determinado por suas emoções. Por isso considero que o tema da determinação está intimamente ligado ao tema da tragédia, pois, primeiro, este estilo literário parece estar vinculado à ética. Estando relacionado à ética é preciso, segundo, considerar alguma concepção de homem. Na análise rápida que apresentei de Hamlet, usei mais ou menos a ideia aristotélica de homem. E, terceiro, dependendo da consideração que se tenha de homem, pode-se considerar diferentes "forças" que o impulsionam a agir. Esta ideia, portanto, retoma a questão da filosofia da natureza de Aristóteles, pois conhecer as causas da ação, seria conhecer, de repente, essas "forças" e, afirmar o acaso ou mesmo o sofrimento sem causa equivaleria ainda a questão de "desconhecimento" e não à ausência de causa ou à irracionalidade. Espero ter ajudado na reflexão.
Anônimo disse…
Parece-me que o que vincula o Hamlet a uma temática ética não são tanto os elementos da peça, mas a abordagem que você fez deles. Se pressupusermos (i) o pano de fundo da antropologia grega e (ii) o conflito hamletiano como tensão (também grega) entre sobrenatural e mundano, entre passional e racional, então, sim, as conclusões seriam mais ou menos as que você esboçou. Mas sobre isso faço as seguintes considerações:

1. É improvável que a peça de Shakespeare assuma os elementos da antropologia e da ética gregas. Shakespeare reelabora a antropologia e a ética anteriores (grega, cristã e renascentista) e inventa novas formas de conceber as duas coisas. A helenização de Shakespeare me parece infundada.

2. Parece-me que na peça há um conflito:

a) entre loucura (acreditar no fantasma, entregar-se à vingança) e razão (acreditar no mundano, ser razoável e diplomático com a mãe e o tio), de modo que Shakespeare nos interpela: qual dos dois lados é a verdadeira loucura e qual dos dois é a verdadeira razão?

b) entre dever (a honra exige que se vingue a morte do pai) e liberdade (não se quer ser esmagado por um destino que não se escolheu), de modo que Shakespeare, novamente, nos interpela: qual dos dois é a verdadeira prisão (fazer o que se deve ou ceder às tendências naturais) e qual dos dois é a verdadeira liberdade?

3. Mesmo que o conflito fosse entre razão e paixão, não vejo por que o tema da determinação e do livre-arbítrio seria central. O destino - se é que esse elemento intervém na peça - seria, no máximo, a perspectiva de honra que se apresenta para Hamlet, mas que ele pode, se quiser, recusar. Então, ele não é um destino que suprime ou limita o arbítrio, mas sim que só através de uma escolha dele é que pode realizar-se. O que haveria nisso de determinação?
Débora Aymoré disse…
André, não acho que seja um problema exatamente aplicar uma ética de fundo grego para a análise de uma obra literária, que não pertence a mesma época dela. Tanto o texto pode ser objeto de interpretação de leitores que compartilham (ou não) o que seria, digamos, um certo "espírito" de época, como mesmo que eu seja da mesma época, posso não compartilhar o "espírito" de época da obra. Eu entendo que posso ter cometido uma "gafe acadêmica", no sentido de que não interpretei Hamlet do modo como a tradição o fez, de fato, como um autor de transição. Isso eu reconheço e assumo que pode ser em parte falta de estudo meu sobre o assunto. Apenas não acho que dentro da reflexão que vínhamos fazendo não caberia uma extrapolação dos "limites" de reflexão possíveis (e aqui estou tratando especialmente dos cânones de interpretação acadêmica), desde que de algum modo contribua para uma ampliação de nossos horizontes de compreensão da obra. Dito isso, não considero que meu argumento interpretativo possa ser acusado de helenização desta obra de shakespeare e, portanto, não é válido. Esta conclusão já assume o pressuposto de que, se um argumento for diferente do academicamente firmado como verdadeiro, logo ele é inválido. Não me parece que seja assim.

Depois desta pequena defesa da própria possibilidade do meu argumento, queria mostrá-lo para você em forma de estrutura, para ver se consigo provar que não falo nada absurdo. Deste modo, considero que poderia estruturar minha argumentação das postagens anteriores assim: (1) uma obra literária possui conteúdo ético, quando apresenta situações que, por exemplo, levante questionamentos sobre o agir ou não; (2) uma vez que cada situação-problema será resolvida de algum modo (ou a personagem agirá ou não agirá), podemos retirar disso o sentido ético geral; e, (3) este sentido ético geral aponta para certa concepção de homem (do autor ou do intérprete). Agora, retornando para Shakespeare, se ao invés de adotarmos a oposição razão-paixão, utilizamos a oposição razão loucura, parece-me que, ainda assim, estaríamos tratando de um jogo de "forças". Sendo assim, o homem, no caso, a personagem Hamlet não seria livre, pois não poderia escolher entre um terceiro que não estivesse presente na dualidade razão-loucura. Quer estejamos tratando do homem grego, ou dos elementos que você levantou como sendo próprios do homem shakespereano, o fato é que, em ambos os casos, temos sim uma determinação: racional-passional ou racional-louco. E, a consequência epistemológica que quero extrair disso é essa: as causas da ação (ou da não ação) estão imbricadas neste jogo de "forças" e, portanto, conhecer o homem é conhecer as causas do sofrimento. Já que atribuir a razão do sofrimento ao acaso ou ao destino ou à ação dos deuses ou da ação de forças sobrenaturais, seria, simplesmente, desistir de conhecê-las. Neste sentido é que digo que o sofrimento não é irracional, pois afirmar sua irracionalidade equivaleria, nesta tese, a desistir de buscar as causas.

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