"Ser e tempo", de Heidegger (II): O Dasein (Ser-aí)
(Essa postagem dá seguimento a uma postagem antiga do Blog sobre Ser e Tempo, que você pode ler aqui. Escrevi-a em resposta a muitos pedidos para dar continuidade àquela abordagem da obra de Heidegger, mas, devo alertar, essa postagem é mais algo assim como um esboço, um panorama superficial, apenas para que o leitor do Blog não fique sem uma primeira introdução ao assunto. Espero que seja de alguma utilidade mesmo assim)
Segundo Heidegger, em Ser e Tempo, a pergunta sobre o ser não deve se basear no ser daquele ente que são as coisas, que consiste em simples presença no mundo, mas sim no ser daquele ente que é o homem, o único ente capaz de fazer-se a pergunta sobre o ser. O ser do homem não consiste numa simples presença no mundo, e sim num Ser-aí (Dasein), o qual pode ser definido a partir dos seguintes elementos:
- Trata-se um projeto indefinido, autodirigido e perpetuamente inacabado: O homem, ao contrário de uma faca, uma cadeira ou uma casa, não tem essência, no sentido de um conjunto pré-definido de propriedades e atributos que ele deve adquirir ou conservar para aí sim ser de fato um homem. O homem tem existência, no sentido de que está constantemente definindo que tipo de coisa ele é. O que ele é ele mesmo é que define. E essa definição é sempre projeção. Trata-se antes do que se quer ser e como chegar até lá. E não existe linha de chegada. Todo ponto final é ponto de partida de uma nova projeção. O homem está condenado a ser esse “espaço vazio” que pode conter e buscar qualquer projeção, mas jamais pode se deixar definir ou aprisionar inteiramente por ela. Mas essa projeção está sujeita a três condições (que são também limites), quais sejam:
i) O Ser-aí é um ser-no-mundo: A primeira condição (e também o limite) dessa projeção é a facticidade, quer dizer, aquele conjunto de circunstâncias que fazem com que um homem em particular projete certas coisas, e não outras, e seja capaz de alcançar certas projeções, e não outras. A facticidade (essa possibilitação, direcionalidade e limitação que o mundo em volta do homem exerce sobre suas projeções) se dá porque ele é um ser-no-mundo. Para Heidegger, não há que falar em homem em abstrato, fora de uma situação mundana específica. Ser homem é estar numa situação mundana em particular (nisso consiste sua “mundanidade”), situação a partir da qual certas projeções são possíveis (mundanidade como condição), mas a partir da qual também certas projeções se tornam impossíveis (mundanidade como limite). Para usar um exemplo simples de que parte da definição do homem é sua mundanidade, pense em como ser homem no Antigo Egito e ser homem no mundo atual são coisas distintas: não são ambos versões diferentes de um ser-homem em abstrato (o qual seria inclusive inconcebível), e sim duas coisas distintas, o ser-homem-no-Antigo-Egito e o ser-homem-no-mundo-atual. Para usar um exemplo simples de como a facticidade afeta as projeções, basta ver como o projeto de ser um ativista político influente não seria possível no Antigo Egito, enquanto o projeto de ser Faraó não seria possível hoje.
ii) O Ser-aí é um ser-com-os-outros: A segunda condição (e também o limite) dessa projeção é o mundo-da-vida, quer dizer, aquela rede de crenças, valores e afetos compartilhados pelos homens que vivem em certo meio social, rede que serve ao mesmo tempo de matéria-prima das projeções e de limite para elas. O homem é um ser social, não no sentido essencial de que ele quer ou precisa viver em sociedade, e sim no sentido existencial de que a definição de em que consiste seu Ser-aí se alimenta (como continuidade, renovação ou oposição) de uma massa de imagens e motivos que já existem antes dele e no qual cada homem se vê mergulhado ao fazer parte de um mundo social. Até mesmo a projeção de ser um eremita isolado só se torna possível a partir de certo mundo-da-vida no qual é possível pensar a figura do eremita como uma figura dotada de sentido. O “espaço vazio” do ser do homem precisa ser preenchido com sentidos, e sentidos são construídos, interpretados, mantidos e transformados socialmente. Esse mundo-da-vida como condição e limite existencial do homem é o ponto de partida da noção de “tradição” no mais famoso seguidor de Heidegger, Hans-Georg Gadamer. (Outro ponto importante, que vou apenas apontar aqui sem desenvolver, é o contraste entre a instrumentalidade das coisas, derivada do ser-no-mundo, e a não instrumentalidade dos outros, derivada do ser-com-os-outros, que, para Heidegger, tem não apenas as relevantes consequências éticas que Kant já havia apontado, mas também consequências existenciais para o tipo de projeto que é possível num mundo que se enfrenta em concurso com outros.)
iii) O Ser-aí é um ser-para-a-morte: A terceira condição (e também o limite) dessa projeção é a finitude temporal que se impõe a partir da consciência e certeza de que se vai morrer um dia. O perpétuo projetar não é eterno projetar: é constante por toda a vida, mas dura apenas enquanto durar esta última. A morte em si é só mais um elemento da facticidade, mas a consciência e certeza da morte é outra coisa completamente distinta. Sem consciência e certeza da morte, não existiria urgência nem de projetar nem de realizar os projetos projetados. Tal urgência só se mantém, além disso, porque a consciência e certeza da morte não implica consciência e certeza da data da morte. Pode-se ser jovem e morrer amanhã, ou ser velho e viver mais vinte anos. A consciência e certeza de uma morte certa em data incerta é que pressiona todo o período de vida a ser constantemente realização de um projeto. Existe, é claro, na chamada “civilização” uma série de mecanismos para inibir essa força opressora da morte, mas o ser-para-a-morte do homem, mesmo quando este está entorpecido por falsas certezas de completude e por temporários esquecimentos de sua mortalidade inevitável, nunca deixa de irromper de tempos em tempos na forma da experiência existencialmente liberadora da angústia. A angústia reconecta o homem com seu ser-para-a-morte e faz com que se relembre da sua incontornável condição de Ser-aí.
O desenvolvimento pormenorizado dessa “analítica existencial”, ou seja, dessa enumeração e revelação das condições (e limites) do Ser-aí do homem, enquanto ente que se faz a pergunta sobre o ser, é o que permite a Heidegger inverter o sentido tradicional da relação entre Ser e Tempo (a relação que dá nome ao livro). Se, na tradição ocidental, sob impulso de Parmênides e a partir do cânone de Platão, o tempo, como promotor do devir (o vir-a-ser, a mudança) havia sido sempre pensado como aquilo que é contrário ao ser (pois o ser, inspirado no ser dos entes que são as coisas, é aquilo que não muda, sempre permanece igual e idêntico a si próprio), agora, a partir da reflexão de Ser e Tempo, era possível visualizar o tempo como a condição sem a qual não existe o ser, desde que este seja entendido a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, isto é, a partir do ser do homem, o Ser-aí. Só no tempo é que o Ser-aí pode se projetar, só no tempo é que pode se enfrentar com o mundo em busca de seu projeto projetado, só no tempo, e na consciência do tempo e certeza da morte, é que pode reencontrar o sentido de seu Ser-aí para além de toda ilusão ou esquecimento. O tempo deixa de ser o temido inimigo do ser e passa a ser – de agora em diante – seu aliado necessário.
Comentários
Muito obrigada.
Manú.
Dani.
que canto eu cá
Hiedeggernianamente falando.
Gracio Reis
Agradeço desde já pela atenção.