Cinco Tentações de Sala de Aula no Ensino do Direito (A Partir do Ponto de Vista de um Filósofo)
Introdução
O texto abaixo assinala o estado atual das minhas reflexões
sobre como o ensino jurídico, especialmente o ensino jurídico de disciplinas
dogmáticas, poderia ser alterado e qualificado cognitivamente pela crítica da
filosofia. Escolhi a forma mais direta de cinco tentações, porque ela é
didática e útil para fins práticos do trabalho em sala de aula, mas o assunto,
sem dúvida, mereceria um desenvolvimento mais cuidadoso à luz de teorias da
educação, do aprendizado e do conhecimento, especialmente do jurídico. Mas
creio que o formato abaixo é o mais adequado para o tipo de postagens que
costumo publicar e divulgar por meios não acadêmicos e informais. Espero que
sejam reflexões que tenham valor e ressonância para a experiência em sala de
aula de meus colegas professores de direito, mas apreciaria as perguntas,
comentários, críticas e sugestões que queiram aduzir a este texto.
Antes, porém, uma advertência: O texto supõe um
professor bem preparado e bem intencionado. É claro que boa parte dos problemas
do ensino jurídico está ligada à falta de preparado dos professores em seus
respectivos assuntos de ensino e nas técnicas de planejamento, ensino e
avaliação correspondentes. É claro também que o problema se agrava pela falta
do pré-requisito de uma licenciatura em direito e pela pressão dos conteúdos
programáticos, da prova da ordem, dos concursos públicos etc. Mas estes já são
problemas conhecidos (o que não quer dizer que não sejam reais, graves e
urgentes de serem solucionados), para cuja percepção não é necessário o ponto
de vista mais reflexivo e crítico da filosofia. Por isso mesmo, tentei me
limitar a questões para as quais a filosofia teria uma contribuição mais
acentuada tanto na parte da análise do problema quanto da proposição de
soluções. Dito isto, podemos agora nos dirigir para a lista das cinco tentações
contra as quais gostaria de advertir meus colegas professores de direito.
1) Apresentar o assunto como continuidade com a experiência
pré-teórica do aluno
Ora, o aluno não está sendo apresentado ao direito; ele já
nasceu e foi socializado num universo permeado por conceitos e normas
jurídicas. Por isso, na maioria das vezes ele tem uma noção prévia do assunto
de que o professor quer falar, tornando grande a tentação de manter a abordagem
de sala de aula num contínuo cognitivo horizontal, isto é, numa linha de
continuidade com a experiência pré-teórica do aluno, como se fosse apenas um
esclarecimento e sistematização de intuições que o aluno já traz consigo. Mas
isto é um equívoco, que pode ter sérias implicações na formação do aluno. Se é
verdade que ele não está sendo apresentado ao direito, ele está, contudo, de
fato sendo apresentado ao estudo científico do direito, que é, nunca esqueçamos
disso, o verdadeiro objeto da aula. Então, o estudo científico da propriedade,
da pena ou do salário precisa produzir uma ruptura com o saber pré-teórico do
aluno sobre estas noções. É preciso que fique claro que o regramento positivo
de institutos como propriedade, pena e salário não é mero desdobramento
dedutivo do que seria de esperar de cada um destes institutos a partir das
intuições pré-teóricas do aluno. É preciso produzir em aula uma marcada ruptura
com o saber pré-teórico, para o qual é aconselhável apostar no maior número
possível de contrastes entre como as pessoas geralmente acham que as coisas
funcionam e como elas realmente funcionam no direito, contrastes que criam o
tipo de “frustração de expectativas” que desperta no aluno o sentido de
necessidade de um estudo dedicado e metódico do assunto. Sem esta ruptura com o
saber pré-teórico, o professor terá falhado com sua primeira tarefa em sala,
que é a de elevar o nível cognitivo com que o aluno se relaciona com o assunto
e converter a aula num ambiente científico de estudo.
2) Naturalizar as alternativas atualmente vigentes como se
fossem as únicas possíveis e racionais
É um desdobramento da tentação anterior. Manifesta-se na
opção do professor por dar um ar espontâneo ao fluxo da reflexão teórica,
gerando a impressão, não apenas com o que diz, mas com a gesticulação que faz,
o tom de voz que emprega, a expressão facial com que encara os alunos, que cada
um dos passos seguintes se seguem naturalmente dos anteriores e que o próprio
aluno poderia ter descoberto sozinho as consequências se tivesse pensado mais
detida e cuidadosamente a respeito. Nesta abordagem, o assunto parece menos
complicado e amedrontador, mas ao preço de ter sido naturalizado na cabeça do
aluno como se o curso de raciocínio que a dogmática jurídica sugere fosse o
único curso possível ou aceitável para teorizar sobre aquele tema. É o momento
em que o professor de civil dá a entender que, se o sujeito tem propriedade
sobre o bem, segue-se que pode usá-lo como quiser, donde se segue que pode
tirar proveito econômico dele, donde se segue que pode cedê-lo mediante uma
contraprestação, o que nada mais é do que o que chamamos de aluguel, donde se
segue que o aluguel nada mais é que um desdobramento natural do direito de
propriedade. Na verdade, uma legislação hipotética que protegesse a
propriedade, mas proibisse o aluguel é perfeitamente concebível e nada teria de
contraditória, ao passo que nossas legislações permitirem o aluguel tem mais a
ver com a função que esta operação tem no regime capitalista de trocas de
mercado do que com qualquer desdobramento conceitual a partir da noção de
propriedade. É o momento em que o professor de penal dá a entender que, se o
agente não cometeu o ato de modo consciente, segue-se que não era responsável
pelo que fazia, donde se segue que não pode ser punido pelo que fez, porque,
afinal, onde não há consciência não há responsabilidade e onde não há
responsabilidade não pode haver punição, naturalizando, assim,
o regime de tratamento da responsabilidade penal pela qual nossa legislação opta.
Na verdade, não haveria nada de contraditório numa legislação que punisse atos
cometidos sem consciência, como forma de desestimular que as pessoas se
engajassem em estados em que, estando menos conscientes, pudessem ser causa de
um crime, ao passo que a opção de nossa legislação pela punição em função da
responsabilidade consciente tem a ver com certa concepção de sujeito, de ação e
de responsabilidade devedora do iluminismo filosófico e que está longe de ser a
única existente e a menos carente de problematização. É o momento em que o
professor de trabalhista dá a entender que, se o salário é pago como
contraprestação pelos dias trabalhados, segue-se que dias não trabalhados que
não tenham sido justificados devem ser descontados do salário final de forma
proporcional, sendo, portanto, o desconto dos dias não trabalhados naturalizado
como sendo apenas o desdobramento dedutivo do conceito de salário. Na verdade,
não haveria nada de contraditório numa legislação que não considerasse o
salário final como uma quantia que remunera os dias de trabalho um a um, mas
sim o mês como um bloco, e que considerasse que dias de ausência não
justificada fossem motivo para dispensa do empregado, mas não para desconto de
valor correspondente de seu salário. Em todos estes casos, o que o professor
está fazendo, com a boa intenção de tornar o regime positivo atual
compreensível para o aluno num nível quase intuitivo, é naturalizar este regime
ao ponto de adestrar a mente do aluno para aceitá-lo como a única alternativa
justificada e embotar a imaginação jurídica e institucional dos estudantes para
supor qualquer outra possibilidade. Na verdade, seria muito melhor que, a cada
passo do ensino, o professor investisse numa desnaturalização do conteúdo,
questionando, explicitamente, de que outras formas as coisas poderiam ser e por
que, entre elas, nosso regime optou por aquela em particular em vez de outras e
até que ponto esta foi a melhor escolha, pesados prós e contras. Devemos
lembrar que o aluno deve, sim, compreender o assunto e ver de que modo
institutos mais avançados incorporam desdobramentos de conceitos mais
fundamentais vistos antes, mas nem por isso se justifica a “naturalização” do
assunto, porque é alto demais o preço de limitar a imaginação do aluno às
opções atualmente realizadas e de produzir uma aceitação acrítica do regime em
vigor. Em vez de veículo de saber, o professor se torna desta forma um veículo
de ideologia.
3) Servir-se da positividade da lei como dispositivo de
descarga da justificação
Se seguir as duas recomendações anteriores, o professor de
direito estará confrontado com a necessidade de, a cada etapa do ensino,
justificar por que o regime jurídico atualmente vigente opta por tal
alternativa, em detrimento de outras possíveis, ou, o que é o mesmo, de
informar ao aluno se e até que ponto a alternativa contemplada pela lei é
racionalmente justificada. Esta não é uma posição confortável em que estar, e
por isso mesmo boa parte dos professores de direito podem se sentir tentados a
recorrer a uma falácia em sala de aula: Como o fato de que o legislador optou
por certa alternativa em detrimento de outras é o que dá a esta alternativa
obrigatoriedade jurídica, o professor pode sucumbir à tentação de fazer com que
seus alunos pensem que isto já basta como justificação racional. Neste caso,
ele terá convertido a positividade não apenas em fundamento de autoridade, mas
também em fundamento de justificação. Ele, então, dirá que, sim, de fato
existem outras opções e elas podem até parecer atraentes, mas a opção contemplada
pelo legislador foi esta aqui e é por isso que usamos esta, e não outras, e é
por isso que vocês, alunos, devem saber e aplicar esta. Ora, mas isto é
claramente uma falácia. A positividade pode me fornecer uma razão para obedecer
(há controvérsias também aqui, mas admitamos isto por ora), mas não uma razão
para aprovar. Sendo assim, não basta que o professor diga que, dentre as
alternativas, é esta aqui que se deve obedecer. É preciso que diga se esta que
se deve obedecer é também uma que teríamos razões para aprovar em comparação
com as outras, ou se, ao contrário, embora por ora a tenhamos que aplicar,
teríamos razões para querer e lutar por outra, melhor que ela. Não serve apenas
estimular a imaginação institucional do aluno pela informação de que existem
alternativas possíveis ao regime atual, mas é necessário levar este despertar
de ajuizamento crítico adiante e separar bem as duas coisas: de um lado, saber
que há certa alternativa X que, gostemos ou não, é a que está vigente e precisa
ser aplicada; de outro lado, saber que, além de X, existem também alternativas
Y, Z etc., cujos méritos, na comparação com X, podem ser maiores ou menores,
sendo esta conclusão importante para sabermos que ajuizamento crítico
deveríamos ter de X e até que ponto devemos nos engajar pela reforma do regime
atualmente contemplado. Do contrário, o professor estará promovendo a ideia de
que, como a positividade basta para a obediência, ela também basta para a
aceitação racional, o que é outra modalidade de ideologia.
4) Remeter todas as justificações para o mesmo esquema
teórico de fundo
Se o professor de direito seguir as duas primeiras
orientações e não sucumbir à tentação legalista contra a qual adverte a
terceira, ele se verá constantemente na necessidade de justificar (ou criticar)
cada uma das opções feitas pelo regime jurídico existente a partir de teorias
de fundo, geralmente teorias morais e políticas de fundo (insisto nesta
limitação a teorias morais e políticas porque, mesmo que a teoria de fundo
recorra a conhecimentos de física, química, biologia, psicologia, neurociência,
medicina, história, sociologia, economia, administração, comércio, relações
internacionais etc., estes conhecimentos, para estabelecerem um vínculo com o
regramento jurídico, terão que assumir posição no interior de uma teoria moral
ou política que diga que, dado que os fatos são tais e tais, o melhor
regramento de tal questão seria um que levasse os fatos tais e tais em conta de
tal e tal maneira). O problema mais grave aqui é de falta deste conhecimento da
parte da maioria dos professores de direito. Mas, como estamos lidando com o
horizonte de professores bem formados e bem intencionados, deixemos de lado
este problema e nos concentremos noutro, que surge no nível seguinte.
Suponhamos que o professor conheça as teorias morais e políticas capazes de
sustentar e criticar as alternativas possíveis de regime jurídico. Mesmo assim,
ele não é neutro em relação a estas teorias, pois algumas têm mais apelo que
outras para seu convencimento pessoal, podendo até ser o caso de que o
professor seja partidário assumido de certa teoria em particular, em detrimento
das outras. Isto cria a situação delicada em que sua atuação em sala de aula
pode sair do extremo da mera reprodução da positividade jurídica para cair no
extremo oposto da catequese moral e política que aprisiona a mente do aluno ao
universo conceitual e argumentativo de apenas um tipo de teoria de fundo. Neste
particular, o professor de direito deve lembrar que ele é guia qualificado a um
universo plural de teorias, havendo duas formas como ele pode trair esta
função: uma é apresentando o aluno a apenas uma teoria entre várias, deixando
as outras simplesmente sem serem conhecidas; a outra é apresentando o aluno às
várias teorias existentes, mas fazendo em seguida a defesa qualificada de
apenas uma delas. Mesmo que, como teórico no mundo acadêmico, o professor em
questão seja advogado de certa teoria em detrimento das demais, como professor
em sala de aula ele não pode abusar do monopólio da palavra para converter
todos os alunos ao mesmo credo moral e político, mas deve ser um trampolim com
o qual o aluno pode ter oportunidade de qualificar qualquer que seja o modo de
pensar a que se sinta mais inclinado a aderir. O monopólio da palavra é um privilégio
cuja contrapartida moral é tornar sua palavra veículo de circulação por todo o
universo moral e político disponível para o assunto, inclusive as partes deste
universo com que ele menos concorda ou que ativamente rejeita ou despreza. Para
pegar um exemplo entre outros (mas cada um aplique isto para o seu caso em
particular) um professor socialista não terá se saído bem se os alunos com
tendência socialista tiverem tirado grande proveito de sua aula, enquanto os
alunos de tendência antissocialista tiverem achado sua aula uma grande perda de
tempo e tiverem sido obrigados a repetir, de modo cínico e descomprometido, seu
catecismo socialista nos debates e provas apenas para garantir sua aprovação na
disciplina. Pelo contrário, o professor socialista terá sido bem sucedido se,
em contato com ele, o socialista se tornou um socialista mais qualificado, o
liberal se tornou um liberal mais qualificado, o libertário se tornou um
libertário mais qualificado, e assim por diante. O professor deve ser um prisma
pelo qual cada raio que passa assume maior intensidade e definição, mas sem ser
obrigado a mudar de cor. É preciso saber que todos que passaram por você (e não
apenas os que concordavam com seu modo de pensar) tiverem neste encontro um
motivo e plataforma de crescimento pessoal e intelectual e que ninguém foi
obrigado a calar sua verdadeira opinião nem fingir que concordava com você. A
função docente tem a ver com desenvolvimento cognitivo em múltiplas direções, e
não com conversão ou partidarismo.
5) Revestir o assunto de mais certeza ou completude do que
ele de fato tem
Comentários
Parabéns pelo texto, e pelo blog, que é mesmo muito bom. Eu só recomendaria cautela no uso do exemplo do professor "socialista" no ponto 4. É que, neste ponto, pode ser que o texto sirva, para os seus leitores, como reprodução de um lugar-comum incorreto de que só o socialista é partidário ou ideológico (nas acepções negativas das palavras). Afinal, o senso comum é exatamente este: a neutralidade ou imparcialidade se confunde com a adoção de posições relativas à manutenção do status quo. Reclama-se de "comunismo nas escolas", mas nada se fala de "liberalismo nas escolas" ou de "neoliberalismo nas escolas". Enfim, acho que o argumento está claro.
Como o texto pretende desconstruir premissas naturalizadas, talvez fosse mais interessante o uso de um outro exemplo para criticar a postura de professores que não promovem um debate público de suas premissas políticas num nível academicamente aceitável e desejável: o exemplo mais comum, que é exatamente o do professor de "direita" que não se assume como tal, e que não pretende de forma alguma funcionar como prisma para um debate público e racionalmente motivado das diferentes concepções políticas e morais envolvidas na matéria que leciona (geralmente, tal professor sequer tem suas próprias premissas políticas racionalmente motivadas num estudo mais aprofundado de um Hayek ou de um Freedman, por exemplo).
Um abraço,
Henrique